Ela repousa logo ali, separada do presente pelo tênue fio
intangível da sucessão dos dias que se transformam em anos e estabelecem a
compreensão do passar do tempo. Observo meu rosto no espelho e tento encontrar
nele a permanência de traços que me remetam a ela ou que pelo menos insinuem a
existência de um elo concreto com uma época distante no calendário e, ao mesmo
tempo, tão presente nas manifestações da memória. Talvez os sinais dela se
escondam em meio às dobras das rugas que já raiam as esquinas dos olhos; talvez
seja possível seguir seu rastro contando os fios brancos de cabelo que já se
fazem incontáveis e irredutíveis em seu movimento de avanço; talvez a pista de
seu paradeiro repouse nos sulcos da testa ou no relaxamento das pálpebras. Não
sei.
Olho, olho e nada descubro. Algo me diz que a chave está
ali, em algum lugar, e devo continuar perscrutando. Talvez a resposta não se
encontre na mudança dos traços físicos e, sim, em algum aspecto que se mantém
imutável apesar da marcha das horas. Para encontrá-lo, devo reorientar o foco
do olhar. Percebo que o redirecionamento da linha de investigação me aproxima
da resposta. O segredo não está na transformação dos traços, mas na essência
intangível que os molda, cuja fonte reside na força vital e única que molda
cada ser.
Sim, acho que descobri. O segredo de seu esconderijo talvez
esteja exatamente na forma de olhar para si mesmo. Repousa no olhar, na
intensidade do brilho que toma os olhos quando se olha o mundo com o mesmo entusiasmo
de quando se veio há pouco a ele. Eis a chave. Redescobrir os traços da
infância, distanciado cronologicamente dela por décadas, requer prestar atenção
a alguns aspectos da capacidade infantil de seguir observando o mundo. É aí que
se esconde a infância que às vezes dizemos “perdida”, mas que, na verdade,
segue acompanhando nossa jornada diária de amadurecimento e de enfrentamento da
vida, sempre presente no moldar da história pessoal que a cada um de nós é dado
construir. Ela está no olhar e não nas rugas que envolvem e adornam os olhos.
Impossível não pensar nos tempos de criança neste 24 de
agosto, definido nos calendários oficiais como Dia da Infância, e evitar ser
invadido pela nostalgia inerente a uma época da vida em que o mundo ao redor
descortinava oceanos infinitos de possibilidades. Ao longo da vida vamos
escolhendo caminhos. Mas saber detectar a presença ainda em nós da criança que
fomos e que ainda podemos ser se configura em amparo crucial para seguir em
frente na companhia das rugas e das cãs.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 24 de agosto de 2016)
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