Hoje a crônica vai por conta da Madama. Não o texto em si
- até porque daí eu teria de partilhar parte de meus proventos decorrentes da
digitação diária destas mal-tecladas linhas e minha síndrome de Tio Patinhas
não o permitiria -, mas, sim, a essência do exposto, oriunda de uma pertinente
preocupação que a vem assombrando nesses assombrosos dias e que ela teve a
delicadeza de compartilhar com este escriba. Delicadeza aliada à esperteza, pois
que ela, no fundo, imaginava (e esperava) que eu acabaria transformando o
insumo em crônica e dando-lhe o crédito, já que isso sobre mim ela sabe:
mundano cronista, sim; larápio de autorias alheias, jamais! Apesar de não ser
banqueiro, sempre dou crédito a quem o merece.
Madama me confessou andar apoquentada (Madama é dessas
raras criaturas que ainda se apoquentam com as mazelas do mundo imediato ao seu
redor e também à distância, do Oiapoque ao Chuí; do Rio das Antas ao Deserto de
Gobi), apoquentada e incomodada (que ela também se incomoda) com essa epidemia
psíquica que anda contagiando as gentes de hoje, cegando-as em meio a uma
neblina espessa de preconceitos e ideias preconcebidas impossíveis de serem
removidas (as imagens literárias aqui usadas são de Madama, uma exímia escultora
de figuras de linguagem). “As pessoas botam uma coisa na cabeça e não há Cristo
que as tire; não há argumento, lógica ou razão capaz de remover o tijolo mental
que elas criam”, exclama Madama, olhos arregalados por trás do pince-nez
(Madama, elegante, equilibra há décadas um delicado pince-nez na ponta do discreto
nariz).
Verdade, Madama. Suas reflexões fazem o mundano cronista
evocar uma das mais famosas fábulas de Esopo, o filósofo-escravo grego do
século VI antes de Cristo: “O Lobo e o Cordeiro”. Era assim: O lobo viu o
cordeiro bebendo água num riacho e decidiu devorá-lo. Como precisava de uma boa
razão para isso, acusou-o de sujar a água que ele mesmo bebia, apesar de o lobo
estar bebendo na parte superior do riacho. “Como posso sujar sua água, se ela
vem daí de cima onde você está?”, argumentou o cordeiro. Desarmado no âmbito da
lógica, o lobo retrucou: “Sim, mas ano passado insultaste meu pai”. E o
cordeiro: “Eu nem era nascido”. Irritado e determinado, o lobo vociferou: “Se
não foi você foi seu pai, ou seu irmão, ou seu tio. Defenda-se como quiser,
pois não vou poupá-lo”, e devorou o cordeiro. Nem precisava, né Madama, mas
Esopo insiste em grafar a moral da história: “Quando alguém está disposto a nos
prejudicar, de nada adianta nos defendermos”. A alcateia assombra Madama.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 31 de agosto de 2016)