É preciso ter coragem. É preciso
ter sido moldado em boa cepa, evocar as próprias raízes, recordar dos
antepassados, seus feitos, sua glórias, e inspirar-se nelas. É preciso ter
determinação, garra, vontade de vencer. É preciso pensar no sabor da vitória quando
alcançada, na satisfação de um dever cumprido, na honra de transpor a muralha
da adversidade para romper com orgulho a faixa da chegada. É preciso reunir
todas as energias de que somos capazes de aglomerar em nosso íntimo mais
profundo. É preciso fazer um gesto rápido para jogar a pilha de cobertores para
o alto, saltar da cama, calçar as pantufas e correr para o banho antes que a
dimensão do imenso frio se apodere de todo o nosso ser e nos faça voltar
correndo para o leito quentinho e decididamente não sair mais de lá até que
chegue de novo a hora de vestir os maiôs e irmos para a praia no bom do verão e
seja lá o que Deus quiser.
Mas é preciso ter força. O
veraneio ainda está longe. Aliás, nesses dias de zero grau ao alvorecer, estão
mais longe do que nunca aquelas coisas de sunga à beira-mar tomando
água-de-coco e torrando os costados enquanto se decide por um mergulho no mar
ou por uma caipirinha geladinha embaixo do guarda-sol. Miragens, miragens, tudo
isso não passa de miragens, nada disso existe nem nunca existiu, são frutos de
nossa fértil imaginação, congelada em uma realidade apenas tecida em nossos
mais profundos sonhos e aspirações. Congeladíssima ali, por sinal. Muito,
muito, mas muuuito congelada ali.
A verdade é que não existe
verão, não existe praia, não existe areia escaldante. O que existe é esse pote
de manteiga que deixei fora da geladeira ontem à noite e agora no café da manhã
se apresenta tão dura quanto se tivesse passado a madrugada dentro do freezer.
Nem ouso ir conferir a temperatura das duas latinhas de cerveja que comprei
ontem no mercado e deixei guardadas no armário da despensa. Vai que estejam
congeladas e eu tenha de jogá-las fora.
Observo o forno de micro-ondas
com uma sensação estranha percorrendo meus pensamentos e me parece que uma
ideia estúpida se vai ali formando. Parece que estou dimensionando com o olhar
a largura e profundidade do interior do aparelho, para ver se dentro cabem meus
pés. Devo parar enquanto é tempo. Conduzo-me, determinado, rumo ao chuveiro.
Coragem.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 25 de junho de 2015)
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