terça-feira, 24 de maio de 2011

PALAVRAS

Na praça pública, o homem levantou-se e disse, enquanto ia mostrando um a um os dedos da mão direita:

“Destino
Presença
Catástrofe
Futuro
Passado”

“Está louco!”, pensaram vários.
“Está possuído pelo demónio”, disse um.
“É um profeta”, disse outro.
“A palavra mais importante é Destino”, gritou um terceiro.
“Não é, não, é Futuro”, berrou outro.
A confusão generalizou-se, com todos a gritar ao mesmo tempo, defendendo os seus pontos de vista.
E foi desta forma que nasceram os Destinólicos, os Presencistas, os Catastrofistas, os Futurólicos e os Passadistas, que desde então se têm digladiado continuamente, como rezam as crónicas da cidade.
Quanto ao homem na origem de tudo isto, cujo nome a história não registou, depois de ter falado, afastou-se calmamente, e nessa tarde, contemplando o sol poente, já não se lembrava do que tinha dito de manhã.

segunda-feira, 7 de março de 2011

Reader's block

Tiago ajeita os auscultadores que bombam Heavy Metal e olha de relance a televisão no canto do quarto que, com o som cortado, despeja imagens da SIC radical. À sua frente, o monitor do computador mostra a sua página do Facebook, e a pequena janela do Messenger, no canto inferior direito, altera-se sempre que chega uma nova mensagem. O telemóvel pisca, Tiago olha, vê quem é e rejeita a chamada. Suspira, pega de novo no livro e lê pela terceira vez, a meia voz:
"Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro. Uma lua quente de verão entra pela varanda, ilumina uma jarra de flores sobre a mesa."
O Facebook avisa-o de uma mensagem nova. Abre, lê, sorri, responde. Aproveita para expandir a janela do Messenger e responder às 3 ou 4 mensagens que chegaram nos últimos minutos.
A porta abre-se e a mãe entra no quarto. Tiago tira os auscultadores para poder ouvi-la.
"Não me ouviste bater à porta? Tens o som muito alto. Qualquer dia estás surdo. Está aqui o Artur."
O amigo entra no quarto. A mãe sai.
"O que estás a fazer, pá?"
"A ler, não vês? Tenho teste daqui a 3 dias e vai ser sobre este livro."
"Como se chama? Aparição? Vergílio Ferreira? Quem é o gajo? Ainda se te mandassem ler um daqueles de vampiros..."
"A setôra disse que este Ferreira foi um setôr no Camões. Olha, é uma seca! Já peguei nele três vezes e não passei das primeiras linhas. Queres ouvir?"
Tiago abre o livro e começa a ler:
"Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro. Uma lua quente de verão entra pela varanda, ilumina uma jarra de flores sobre a mesa."
Artur faz uma careta como se tivesse bebido uma colher de xarope amargo.
"Chiça, meu, e tu estás a pensar em ler este calhamaço com... deixa ver... 250 páginas? Arranja mas é um resumo... Eu falo com o meu primo que entrou este ano para a faculdade, para ver se ele tem ou se sabe quem tem..."
"E tu o que andas a fazer?"
"Vinha desafiar-te para sair. As garinas estão no Colombo, vamos até lá!"
Tiago hesita, pega de novo no livro, larga-o em cima da mesa, levanta-se.
"Bora lá. Que se lixe o livro! De qualquer maneira não devia conseguir passar da primeira página..."

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Era uma espada

Era uma espada.
E era a mão que empunhava a espada
e era o braço que movia a mão
e era o corpo que comandava o braço
e era o coração que impulsionava o corpo.

Uma flecha perdida encontrou o coração
que parou o corpo
que largou o braço
que soltou a mão
que abandonou a espada

que, livre da mão que a segurava,
passou a ser apenas um entre muitos objectos
enferrujando no campo de batalha.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

5 palavras - 5

Em resposta a um desafio do José Mário Silva no Bibliotecário de Babel, aqui ficam cinco "Tragédias em cinco palavras", que também coloquei lá na caixa de comentários. Em tempo de crise, poupar (também) nas palavras é uma virtude...

Nunca pensei que fosse fundo!

Acho que não está carregada…

A ponte é totalmente segura.

Distingo perfeitamente os cogumelos venenosos!

Isso é comigo, oh palhaço?

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Dom Fuas está doente


Dom Fuas de Calatrava
jaz em seu leito de enfermo.
E o povo, que penava,
entre dentes murmurava
"Nunca mais morre o estafermo!"

À volta se afadigavam
fidalgos e serviçais,
aios, pagens, camareiros,
e um grupo de carpideiras
soltando profundos ais.

"Está em estado estacionário",
anunciou o intendente.
"Trazei lá o escapulário,
mais o padre e o breviário,
pra deixar de estar doente."

Aos pés da cama conversam
três físicos, dois barbeiros,
um teólogo, um astrólogo,
o homem das sanguessugas
e um par de curandeiros.

Há um que sugere sangrá-lo.
Outro diz que é dos humores.
Este que foi mau olhado.
Mas não chegam a acordo
nesta roda de doutores.

E Dom Fuas, num rompante,
soerguendo-se na cama
diz com voz tonitruante:
"Mandai embora os doutores,
ficarei bom num instante!"

Escrito há uns meses para ser uma Cantiga de Escárnio e Mal-Dizer... o que talvez um dia venha a ser.

domingo, 23 de janeiro de 2011

O mercado rafeiro

Fiquei de boca aberta quando encontrei o Joaquim com um mercado pela trela. Um bocado rafeiro, mas na mesma um mercado...
"Como arranjaste esse?"
"Naquela rua junto à Bolsa, topas, dei com ele a vaguear. Acenei-lhe com um juro de 7 e meio por cento e ele veio logo a correr. Eu já tinha uma coleira preparada, e foi rápido. Mas só ando com ele na rua açaimado..."
"E o que lhe dás a comer?"
"Olha, quando o apanhei estava gordo, devia ter andado a comer dívida grega a 12 e meio por cento. Agora dou-lhe juros a 1 ou 2 por cento. Rosna um bocado mas vai comendo..."
"Isto está perigoso", disse eu. "Um tipo arrisca-se a andar na rua e saltar-lhe um mercado vadio às canelas da dívida."
"Este não me dá grandes problemas. Se ladra ou se rosna demais leva um puxão na trela e acalma logo. Tenho é que andar sempre preparado...", e tirou do bolso um saco de plástico enrolado que me mostrou. "É que esta raça em qualquer lado faz merda!"

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

O Mundo está a tornar-se um sítio perigoso!

Quando António entrou no bar e chegou junto dos outros, já sentados na mesa do costume, ainda ia ofegante:
"Fui atacado por um mercado!"
"Já não se pode andar na rua, coño", exclamou Pablo. "E conseguiste escapar?"
"Ameacei-o com a China, e ficou hesitante. Safei-me com um juro de 3,75% a médio prazo."
"Não foi mau, dadas as circunstâncias", concedeu Pablo. "Mas ouve só o que aconteceu aoKonstantinos."
O grego deu um gole na cerveja e começou a contar:
"Naquela zona mais escura da rua saiu-me ao caminho uma agência de rating. Queria baixar-me o rating para BB+, vejam só."
"E tu?"
"Apontei-lhe umas Eurobonds e ela (ou ele, não cheguei a perceber...) vacilou..."
"Mas as Eurobonds ainda não existem..."
"Pois não, mas o tipo (ou a tipa) estava ganzado, devia ter acabado de snifar coca, e no escuro um molho de contas por pagar passa perfeitamente por Eurobonds..."
Gargalhada geral em volta da mesa.
"Isto está a ficar perigoso", lamentou-se Patrick, o irlandês. "Os piratas já atacam em qualquer sítio. E os nossos chefes não fazem nada!"
"Eles estão feitos com os piratas, meu! Se não, por que é que deixam abertos os paraísos fiscais onde os tipos podem ir descansar entre os assaltos? Mercados, agências, é tudo a mesma mafia!"
O desalento espalhou-se à volta da mesa.
E em contraste com o ambiente acolhedor do bar, lá fora, na noite, sentia-se a presença dos predadores, vagueando, à espera...

domingo, 19 de dezembro de 2010

Perder a fé é muito triste...

Eleutério era um crente convicto. Acreditava no deus Mercado e seguia religiosamente os conselhos que lhe eram dados pelo seu banco, mediador entre ele próprio e a divindade. Mesmo quando as aplicações que o banco lhe aconselhava davam prejuizo, Eleutério ainda agradecia ao Mercado que o prejuizo não tivesse sido maior.
Alguns dos seus amigos e colegas eram clientes de outros bancos. A esses, Eleutério tentava por vezes aliciar para aderirem ao seu, mas face ao insucesso do seu proselitismo, consolava-se com a ideia de que, ao fim e ao cabo, todos adoravam o mesmo deus.
A fé de Eleutério começou a vacilar quando tomou consciência de que a sua antiga religião, tradicional e confiável, monoteísta, tinha dado lugar a uma outra, instável, volúvel, imprevisível, politeísta. Já não era "o Mercado", mas sim "os mercados".
E quando descobriu que os mercados pressionavam, exploravam, podiam levar empresas e países à bancarrota, provocando a ruína de milhões de pessoas, Eleutério perdeu a fé por completo.
No dia seguinte a essa epifania de sinal menos, Eleutério dirigiu-se ao banco, e como primeira atitude do seu recentemente adquirido estatuto de ateísmo militante, levantou até ao último cêntimo todo o dinheiro que tinha na conta, levou-o para casa e escondeu-o debaixo do colchão.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Prémio Dardos


A Luísa do blogue À ESQUINA DA TECLA, que já figurava aqui na lista ao lado, atribuiu-me o Prémio Dardos, o que muito agradeço.

Na sua definição,

"O Prémio Dardos é o reconhecimento dos ideais que cada blogueiro emprega ao transmitir valores culturais, éticos, literários, pessoais, etc.... que, em suma, demonstrem a sua criatividade através do pensamento vivo que está e permanece intacto entre as suas letras e as suas palavras. Estes selos foram criados com a intenção de promover a confraternização entre blogueiros, uma forma de demonstrar o carinho e reconhecimento por um trabalho que agregue valor à Web."

Cabe-me agora nomear 10 blogues aos quais reconheço as características que o prémio pretende distinguir. Haveria mais, mas esse é o problema de todas as selecções. Uns actualizados com mais frequência, outros nem tanto, esta lista documenta também a (demasiada?) dispersão dos meus interesses e afectos.

E sem mais justificações, por ordem desordenada, aqui vão:


Estrada de Santiago

Moura Aveirense

Rua dos Dias que Voam

Que Treta!

De Rerum Natura

Pó dos livros

Montag By their covers

Efeitos Secundários

A namorada de Wittgenstein

domingo, 31 de outubro de 2010

Magia no hemiciclo

Começou com aquele deputado que não sabia o que era a Ongoing e alguns meses depois estava a renunciar ao mandato para ingressar nos quadros dessa mesma empresa.
Depois foi o outro que disse num intervalo entre duas sessões do plenário: "Electricidade sei o que é; é aquilo que aparece quando a gente carrega num interruptor. Mas isso da Iberdrola o que vem a ser?"
Semanas mais tarde, era nomeado Director da eléctrica espanhola.
Aconteceu também com um terceiro que, a meio do almoço com uns colegas no Café de São Bento, exclamou: "Cimpor? O que vem a ser isso? Cimento? Não é aquele material que serve para fazer casas?"
No mês seguinte, pedia suspensão do mandato e ingressava no conselho de administração da cimenteira.
Enquanto a maior parte dos deputados cogitava sobre a empresa em relação à qual deveriam demonstrar publicamente a mais profunda ignorância, aconteceu o impensável. Aquele representante da Nação que se sentava sempre na última fila - ninguém sabia ao certo a que partido pertencia, porque nunca tinha aberto a boca desde a tomada de posse - foi subitamente despertado do seu torpor por uma frase dita em tom mais agudo pelo colega no uso da palavra, e exclamou, estremunhado:
"Portugal? O que é isso?"
Teme-se que venha a ser o próximo Presidente da República...

sábado, 25 de setembro de 2010

Coisas do baú (2)

Desta vez a culpa é do Luís Filipe Silva, que no seu site/blogue "ressuscitou" um poema com temática FC que escreveu há anos para a antologia Linhas Cruzadas, editada pela PT Telecom.
Ao ler o poema, lembrei-me de um outro com ambiente semelhante, escrito há algumas décadas e publicado então no Diário de Lisboa Juvenil.
Estávamos (e estaríamos!) ainda em plena guerra fria. Com o entusiasmo da adolescência, dei ao poema o duplo título "Pesadelo" ou "Poema para o desarmamento". Para minha surpresa, ou por opção do coordenador da página, ou por auto-censura ou por censura "da outra", foi dado à luz com o título que aqui se mostra... o que me deixou na mesma satisfeito!

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

A consulta

O consultório do psiquiatra era acolhedor. Paredes forradas a madeira, a luz exterior coada por cortinados nas janelas, um sofá confortável onde estava sentado um paciente, numa pose relaxada, enquanto o médico ocupava uma cadeira à sua frente.
"A sensação que tenho, senhor doutor, é que existem dois mundos no mundo."
"Pode ser mais explícito?"
"Há um mundo superficial, aquele onde as pessoas se comportam de forma civilizada, que segue regras, que cumpre as leis, e há um outro mundo subterrâneo, escuro, violento, onde quem tem poder exerce-o de forma arbitrária, onde impera a lei do mais forte, onde as actividades criminosas não encontram quaisquer barreiras... E este mundo subterrâneo controla o outro... Estou angustiado, doutor..."
"O senhor está a sofrer de hiper-reacção aos media. Não veja tanta televisão, está provado que os noticiários transmitem violência numa proporção superior à violência real que ocorre na sociedade. Vou prescrever-lhe um calmante ligeiro. Faça por se distrair, leia um bom livro, e gostaria de voltar a vê-lo dentro de uma semana."
Paciente e médico despedem-se com um aperto de mão. O paciente sai.
O médico fica uns segundos pensativo, senta-se à secretária e liga o computador, com o qual trabalha durante dois ou três minutos. Em seguida marca um número no telemóvel:
"Mais um que começou a suspeitar. Coloquei a ficha dele na lista. Podem ir buscá-lo a casa, é mais discreto. Vou já assinar a autorização de internamento."
Pega na folha de papel que acabou de sair da impressora, faz uma rubrica no canto inferior direito e coloca a folha no tabuleiro dos assuntos despachados. Suspira e prime o botão do intercomunicador:
"Isabel, pode mandar entrar o próximo doente."

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Coisas do baú (1)

Alguns textos com idades entre os vinte e os trinta anos, unicamente existentes em suporte papel, com tão má qualidade que nem o software OCR consegue "apanhá-los", o que implica introduzi-los penosamente palavra a palavra. Editei o mínimo, apenas gralhas, porque a ideia era mesmo mostrar coisas antigas. O que segue é um deles...

Linhas convergentes
"Tem toda a razão, minha amiga", disse o Conselheiro, pousando a chávena de chá na mesinha com incrustações de marfim. "Tudo está muito mudado actualmente. E infelizmente para pior." Isto dito, recostou-se mais confortavelmente na poltrona forrada de veludo e tirando um cigarro da cigarreira de prata, acendeu-o com meticuloso cuidado.
A sua interlocutora, os dedos brincando distraidamente com as pérolas do colar, continuou:
"Veja a política, por exemplo. O meu amigo recorda-se certamente do meu falecido tio. Ainda ontem, ao folhear o álbum de família, tornei a ver o seu retrato. Um aprumo! Uma personalidade! Pois ele era embaixador na Basluvónia na altura em que aquele primeiro-ministro (esqueci-me do nome) começou a tomar umas medidas, enfim, pouco próprias, nacionalizações, coisas desse género."
"E o exército resolveu intervir. E uma noite, havia um baile no Palácio Real (quem nos contou isto foi a tia, porque o tio era homem de poucas falas, como sabe) penso que era uma recepção ao corpo diplomático, e no meio de uma valsa, a orquestra parou subitamente de tocar. O general Zalovic, em uniforme de gala, entrou no salão, aguardou que se fizesse silêncio e dirigiu-se aos presentes: Excelências, (contava a tia que se poderia ouvir um alfinete a cair no chão) verificando que a política seguida por este país estava a torná-lo um foco de instabilidade nas relações internacionais, uma Junta Militar, a que presido, decidiu tomar nas suas mãos os destinos da nossa Pátria. O governo foi deposto e o parlamento suspenso. A Junta garante a protecção das pessoas e bens dos cidadãos estrangeiros. A legislação recentemente promulgada será reexaminada à luz dos reais interesses da Basluvónia. Disse isto, fez continência, deu meia-volta e retirou-se. No dia seguinte a cavalaria saiu à rua para dominar alguns pequenos tumultos, foram presos uns quantos agitadores e o país voltou à normalidade. Foi naturalmente imposta a censura à imprensa, o que fez respirar de alívio as pessoas de bem, cujos nomes eram contantemente enxovalhados nas folhas radicais.
Era assim a política nesse tempo. Era tacto, diplomacia, savoir-faire... não era nada desta confusão de agora! Desvios de aviões! Raptos! Sequestros!"
O Conselheiro sacudiu um imaginário grão de poeira do vinco das calças e abanou a cabeça enfaticamente:
"Plenamente de acordo. De resto, ainda há bem poucos dias, em conversa com o meu grande amigo (...)"

*****

"E tens a certeza que o António foi apanhado?"
"Absoluta. É a única coisa que o faria faltar ao encontro. Foi por isso que accionei o plano de emergência. Nunca se sabe quanto tempo se resiste lá dentro sem falar."
Dois homens num banco de autocarro. Um lê o jornal, o outro olha pela janela. A conversa é murmurada, apenas o necessário para se sobrepor ao ruído de fundo do trânsito à hora de ponta.
O autocarro pára. Eles descem. Na rua, um terceiro homem espera-os.
"Foram buscar o Roberto ao jornal! E estão a passar o nosso bairro a pente fino."
"Isso não nos deixa qualquer hipótese de escolha. Encontramo-nos no sítio combinado dentro de meia hora. Tenham cuidado."
Os três homens desaparecem em direcções diferentes. Anoitece.

*****

(...)
"Mas isso que constou a respeito dele seria verdade? Que eu nunca dou ouvidos a boatos, mas..."
"Calúnias, minha amiga, calúnias! Uma pessoa que chega onde ele chegou cria naturalmente inimigos. Invejas..."
"Note que eu sempre o considerei uma pessoa de sólida formação moral. Basta ver a forma como ele educa os filhos..."
O pêndulo do relógio brilha com o reflexo do fogo que arde na lareira. O Conselheiro pensa numa desculpa para se ir embora. (Esta velha quando começa a falar nunca mais se cala! Se não precisasse da influência dela para esta operação financeira...)
"Olhe, vou-lhe contar um caso que chegou ao meu conhecimento e que dá uma ideia do seu carácter. O caseiro de uma das suas propriedades..."

*****

Luís acende um cigarro e aspira profundamente o fumo.
"O.K., a casa é esta. A dona é velha, rica, família no governo e na banca e vive sozinha com uma criada. Mas hoje parece que tem visitas, a julgar pelo carro com motorista estacionado em frente da porta. Melhor!"
É noite completa. No bairro residencial quase o silêncio, como se a cidade fosse muito longe.
Luís a Pedro:
"Portanto tocas à porta da frente e tens que entreter a criada pelo menos um minuto, enquanto nós entramos por uma janela das traseiras. Depois aguardas, e quando vires a luz do primeiro andar apagar e acender três vezes, cavas e telefonas aos jornais. Sabes o resto, não sabes?"
Pedro fz que sim com a cabeça. Troca apertos de mão com Luís e Manuel e estes desaparecem ao longo do muro baixo do jardim que rodeia a vivenda.
Os dois homens estão agora junto de uma das janelas que dão para o jardim, ao nível do solo. Ouvem, amortecido, o som da campainha da porta. Aguardam alguns instantes e Manuel começa a trabalhar na janela, de modelo antigo, que cede ao fim de poucos segundos. Entram na casa. A luz da lnterna eléctrica revela móveis antigos, um baú, um armário. A porta!
Corredor. Alguns degraus até ao nível da rua. Ao começarem a subir a escada alcatifada que conduz ao piso superior, ouvem através de uma porta a voz da criada que fala com Pedro.
Reposteiros. Óleos nas paredes. Uma armadura. Porcelanas.
Luís e Manuel caminham ao longo do corredor. Param junto de uma porta. Luís espreita pelo buraco da fechadura. Endireita-se. Tira do bolso do casaco a pistola automática e destrava-a. Manuel faz o mesmo. A mão esquerda de Luís começa a rodar lentamente o manípulo do trinco. Empurra a porta que se abre sem ruído. Dentro da sala, uma voz masculina:
"(...) uma ideia do seu carácter. O caseiro de uma das suas propriedades..."

sábado, 14 de agosto de 2010

Gregor Samsa (6)

A 3ª Guerra Mundial
Gregor Samsa tinha lido que após uma guerra nuclear, os únicos sobreviventes seriam as baratas.
A cimeira EUA – URSS em Praga seria uma boa altura para começar. Em grande, com o assassinato simultâneo dos dois líderes...
O seu exército de pequenas carapaças negras já estava bem treinado...

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Gregor Samsa (5)

Teoria da evolução: adaptação ao meio
A alimentação foi inicialmente um problema, mas Gregor Samsa encontrou a solução de forma algo inesperada.
Quando aquele vizinho o encontrou na escada e começou a gritar histericamente, Gregor, em legítima defesa, atacou-o à dentada.
Os humanos podem ser muito irritantes, mas como fonte de proteínas não estão mal…

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Gregor Samsa (4)

Há que tentar sempre dar a volta por cima…
Uma vez passado o choque inicial, Gregor Samsa conformou-se e tentou ver o lado positivo da situação: É muito melhor ser uma barata gigante no reino das baratas do que um obscuro caixeiro-viajante, levando uma vida miserável no meio dos humanos…

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Gregor Samsa (3)

Sonhos…
A barata despertou do pesadelo com uma sensação de alívio…
Tinha sonhado que era um homem, um daqueles monstros que tentam pisá-la sempre que a encontram, atarefada nas suas andanças diárias. Lembrava-se que o monstro se chamava Gregor Samsa, e que estava angustiado porque pensava ser uma barata…

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Gregor Samsa (2)

Há situações em que ser pequeno pode ajudar...
Já transformado em barata, Gregor Samsa caiu no mesmo buraco onde Alice tinha caído noutra história.
Comeu da metade do cogumelo que fazia diminuir de tamanho e ficou realmente minúsculo…
A única consolação é que assim escapará mais facilmente às fúrias da Rainha de Copas…

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Gregor Samsa (1)

No mês passado, Sergio Vel Hartman lançou um pedido de textos com o máximo de 49 palavras, tendo como tema Gregor Samsa. Arranjei 5 (3+ 2) que lhe enviei e que ele teve a gentileza de traduzir para espanhol. Essas versões traduzidas apenas surgirão à luz quando o projecto em que se inserem aparecer. Mas os originais irão ser aqui divulgados, one by one
Vai hoje o primeiro.

O uno e o múltiplo
Gregor Samsa leu uma notícia que o intrigou sobre um Gregor Samsa que se tinha transformado numa barata.
“Curiosa coincidência”, pensou, e começou a sentir uma forte comichão nas costas, nas articulações, em todo o corpo…
A essa hora, um outro Gregor Samsa lia uma notícia…