segunda-feira, 29 de junho de 2015

O Homem que fala com sombras

N3:00 horas de uma sufocante noite de sábado. Sentado sozinho numa mesa de canto de um pequeno e escondido bar, ele observa as gotas de condensação que se formam no copo de whiskey. Não gosta de gelo nas bebidas, mas o calor da noite de início de Julho faz com que ele precise de algo gelado. Acende cigarros que deixa a arder entre os dedos da mão direita, mal lhes tocando, apagando-os por fim no cinzeiro. O bar está repleto, todas as mesas ocupadas. A decoração tenta imitar um regresso ao um passado que lhe fala ao coração, um misto de vitoriano com traços modernos integrados. Lembram-lhe bom gosto, etiqueta e poesia. E antiga, corrupção e morte também...
No meio da multidão de pessoas de estilos alternativos, na maioria vestidas de preto, ele quase passa despercebido. Amanhã é outra história. Levanta-se, resignado, engole o último quarto de dose dum trago e leva o copo até ao balcão, deslizando pela multidão como um felino.
Pousa o copo no balcão, faz sinal ao barman. Recebe nova dose de whiskey, desta vez sem gelo. Entrega uma nota ao barman, pega no copo e volta novamente para a sua mesa, escondido à vista, o seu canto e a sua mesa solitária, que ao chegar perto nota não estar tão solitária quanto devia.
Casaco longo de cabedal, botas militares, cabelo prateado apanhado atrás num rabo de cavalo, um homem que aparenta pouco mais de 20 anos espera-o, sentado na cadeira ao lado daquela que ele ocupava.
Senta-se, pousa o copo e acende um cigarro. Age como se o outro não estivesse ali, em sequer olhar na direcção dele. Passa alguns minutos em silêncio, puxando ocasionalmente um longo bafo do cigarro. Apaga-o com demasiada força no cinzeiro e bebe um longo gole do seu copo.
Ao seu lado, o outro homem finalmente se mexe, tira do bolso interno do casaco um envelope lacrado e entrega-lho. Ele observa atentamente o selo, e guarda o envelope no bolso do seu próprio casaco que jaz abandonado ao seu lado. Enquanto o faz, o homem de cabelo prateado levanta-se e caminha pela multidão, desaparecendo na direcção da saída, quase como se ele e a multidão existissem em planos distintos. Pensa abrir a carta, mas a esguia figura feminina que a ele se dirige faz com que ele se detenha. Sao os lábios que primeiro lhe chamam a atenção na face dela. Carnudos, apetecíveis, demarcados pelo Bâton vermelho vivo e pela sua pele clara. Ele demora uns segundos preso na imagem mental de provar, beijar, trincar aqueles lábios.
- Ola, Ângela.
- Hey! Como estás? Andas desaparecido. Que tens feito?
Ele odeia conversa fiada, barata, frases para encher chouriços. Força um sorriso, aponta na direcção da cadeira ao seu lado.
- Queres sentar-te?
- Sim, estou com dores nos pés.
Os saltos altos começam a magoar-lhe os pés depois de toda uma noite em cima deles.
- Mas conta lá, que é feito de ti? Estás a trabalhar?
- Mais ou menos.
- Mais ou menos?
- Vou fazendo uns trabalhos soltos por aí.
- E de resto?
- De resto o quê?
- Além do trabalho,conta mais coisas.
- Não há muito a contar.
- Ouvi dizer que tinhas uma namorada nova. Quem é?
- Não tenho. Não era namorada, e acabou antes de começar.
- Sempre fugir para trás das muralhas.
- O mundo está melhor assim.
Ele solta um suspiro ao proferir a última a frase. No fundo, a pergunta dela tocou em coisas que ele não quer relembrar, ecoou no vazio que sente no seu íntimo, acabando por se afogar no mar de culpa que ferve dentro de si. Força-se a sair desse ciclo de pensamento, a distrair-me com algo externo a si.
- E tu? Cheia de gajos atrás, não?
Ela sorri, e ele vê a mágoa atrás do sorriso. A resposta dela é evasiva, defensiva.
- Oh! Tu sabes como é. Quem i porta não vê, e quem vê não se importa...
- Falas como se te fosse difícil seduzir qualquer gajo aqui...
Nova onda de um tristeza abate-se sobre o sorriso forçado dela.
- Podia fazê-lo. Mas... Não sei...
- É como se faltasse algo?
- Realmente, só tu para perceberes...
- De que serve perceber, quando tudo o que me apercebo é do quanto todos sofrem em silêncio...?
O whiskey, quase intocado, desaparece dum trago.
- O que bebes?
- Hum? Não é preciso.
- Não perguntei se era. Perguntei o que bebes.
- Bloody Mary.
Um meio sorriso atravessa o rosto dele por um microsegundo.
- Venho já.
Ele torntorna a afastar-se da mesa com o mesmo andar felino, os olhos de Ângela presos em cada movimento dele. Volta pouco depois, whiskey numa mão, cocktail na outra. Pousa os copos na nessa e retoma o seu lugar, em silêncio. Acende um cigarro e olha o relógio. 3:35. Cedo demais para dormir, tarde demais para beber... Nao vai conseguir mais que uma lev sensação de alívio e uma irritante dor de estômago se tiver azar.
A voz de Ângela arranca-o do silêncio, invoca a sua atenção para longe daquele abismo pessoal onde ele se encontra perdido, devolvendo-o à realidade.
- O que se passa contigo?
- Nada.
- Como nada? Costumavas transbordar energia, alegria. Ultimamente pareces apagado, abatido, preocupado, triste... Não gosto de te ver assim.
- Nao se passa nada d esp3çial. so nao estou contnt com o rumo que a minha vida está a levar.
- Fala. Desabafa. Faz bem, sabias?
- Talvez. Mas eu não quero aborrecer-te com os meus problemas. Eu sobrevivo. Sempre o fiz.
- Sim. Mas quando planeias viver?
Ele não responde. Não há nada a responder, ela tem razão. Há anos que apenas sobrevive, nada mais. Vive um sequência de rotinas, um turbilhão de pequenas coisa quase iguáis que o matam por dentro aos poucos.
- Ângela, porque te preocupas tanto comigo?
- Apenas porque acho que mereces voltar a ser feliz.
- Voltar? Não me lembro de o ter sido.
- Já o foste, nem que por momentos.
- Talvez...
Ela chega-se próximo dele e abraca-o. Ele não reage. Ângela mantém a posição, envolvendo-o num apertado abraço. Ele sente o perfume dela, o calor do seu corpo tão próximo do dele. Deixa cair as defesas por um segundo e devolve-lhe o abraço, colando a face no pescoço dela, embriagado pelo aroma dela. Um momentos, meros segundos, e as defesas voltam. Ele afasta-se, quebrando precocemente o abraço, afastando de si aqueles deliciosos lábios.
- Tens-me em muito mais consideração do que eu mereço.
Olha novamente o relógio.
- Tenho que ir, e isto está a fechar. Queres que te deixe em algum sitio?
- Vais conduzir depois de beber tanto?
- Tanto?
- Sim. Eu vi-te chegar. Vi o que bebeste. Deves ir no sétimo ou oitavo copo. Se ainda sei alguma coisa sobre ti, aposto que não é apenas álcool que tens no sangue. Certo?
- Sim, mas eu não estou de carro. Vou apanhar um táxi, não me importo de fazer um desvio se for preciso.
- Acho que aceito a boleia.
Ele estende-lhe a mão, espera que ela a tome e leva- dali para fora.

***

A luz da manhã entra pela janela do quarto, directamente na face dele. Não consegue dormir, para não variar. As insónias tornaram-se uma constante. Senta-se na cama, tapado apenas com o lençol. Ao seu lado, Ângela embrulhou-se no cobertor, qual casulo de onde irá emergir a mais bela borboleta.
Ele inveja-a. Inveja a simplicidade do mundo dela e a sua forma de lu5ar, mesmo sem armas, contra tudo o que o mundo lhe atira. Inveja a capacidade dela de dormir descansada de sorriso no rosto, como se os seus problemas, se existiam, tivessem sido arrastados para longe pelos orgasmos e pela presença dele. Seria possível?
- É.
A voz existe apenas dento da sua cabeça.
- É verdade. Tu és o que ela deseja, e ela é o que tu precisas. Cumprimentos a tuas ordens e ela continuará a teu lado. Sabes o que deves fazer.
- Estou farto...
- Sempre estiveste. Não tens opção, sabes disso. O contrato ainda não foi cumprido.
- Tu quebraste o contrato.
- Olha para o teu lado, e verás que não. Pediste para ser amado, não para amar.
A voz desaparece, e ele deixa de sentir aquela presença. Levanta-se da cama e dirige-se para a casa de banho, para um bem necessário duche.
Veste uns jeans rasgados, uma t-shirt justa e calça a botas. A gata espera-o na cozinha, aguardando a sua refeição e um carinho. Servge-lhe comidq, mas leva-a ao colo para o quarto. Pousa-a na cama e fica a observar o pequeno animal a aninhar-se junto de Ângela, profundamente adormecida. É a deixa dele. Pega no envelope, coloca os óculos de sol e sai. Não sabe bem porque não fica em casa. Não incomodaria Ângela se ficasse na sala. Mas há coisas a fazer, e ela merece o descanso, e a ignorância inocente da sua própria imagem mental dele. Chega ao café habitual. Café e um shot de aguardente. Pouco passa das 9 da manhã, mas ele precisa acabar com a irritante sensação de ter a cabeça a latejar.
Senta-se, único cliente a está hora da manhã de domingo.
Pousa o envelope na mesa. Não anseia por conhecer o conteúdo. Passaria melhor se não tivesse que o conhecer. Sente um arrepio na espinha ao quebrar o selo.
Dentro do envelope encontra-se uma folha A4 dobrada em 3. Nas letras impressas encontra-se um conjunto de dados. Morada. Número de segurança social. Número de documento de identificação. Um nome... Ele não quer acreditar nos seus olhos ao ler...
Ângela Duarte...
***

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