A primeira vez que vim aqui, do
pouco que me lembro, foi reconfortante. Eu era gélida e pálida, sem vida e
poucas cores no meu rosto e na palheta de cores da minha vida. Eu bati na
porta, o jardim bem cuidado chamou-me atenção com suas grandes rosas azuis, eu
nunca tinha visto rosas azuis criadas naturalmente. Ele abriu a porta, seus
imensos olhos azuis, da mesma tonalidade das rosas. Não sorri, não me mexi, não
sei por que havia batido na porta, apenas senti que deveria.
Ele
sorriu e estendeu a mão, já era idosa assim como o seu rosto, o bigode branco e
espesso escondia algo nele, assim como o seu cabelo penteado com o maior
cuidado para o lado esquerdo, e os cachos no final. Subimos a escada e ele
abriu uma porta e me deu um giz, sorriu mais uma vez e a fechou. Eu apaguei.
Acordei
no dia seguinte no meu quarto, o velho quarto pálido de todos os anos, mas lá
estava o giz do dia anterior, sobre a escrivaninha. Simplesmente pus na mochila
e me fui para a escola, já era tarde naquela manhã de inverno.
Enquanto
caminhava avistei novamente a casa, parei, mirei o relógio e andei em direção à
casa. Bati na porta e recuei. Ninguém apareceu, repeti a ação umas duas ou três
vezes, até me cansar e perceber a quão atrasada eu estava. A ação repetiu-se
mais quatro, cinco vezes naquela semana, sem resposta.
Desenhei
um círculo no chão do quarto, afastado da cama e da escrivaninha, conseguia
deitar sobre ele, abrir os braços e até fazer um anjo de neve de madeira. Um
anjo tão branco, uma madeira tão escura, bela comparação do que eu era. O rosto
não escondia a quão branca eu era e os olhos e cabelos escuros, cores de
pinheiro se sobressaíam, era como a neve sobre a madeira. Desenhei alguns
flocos no círculo, eram irregulares, parecidos com o que eu havia visto nestes
anos de neve. Eles pareceram frios, molhados, reais, e quando os toquei percebi
que se desfaziam em pequenas poças de água. A madeira estava molhada e talvez
até um pouco mais funda, as poças foram caindo e caindo, como se passassem para
o primeiro andar, mas eu não via buracos. Eram aprofundamentos na madeira, com
as bordas escuras, cheias de água. Toquei uma delas e eram tão cristalinas.
Aumentaram e aumentaram até o círculo se transformar em um pequeno lago no meu
quarto. O fundo era escuro e eu não conseguia ver a pureza da água, mas o
simples toque já revelava o quanto ele era gélida e perfeita. Olhei para a
porta, e para a janela, vi a neve retendo-se no peitoril. Olhei para o lago e
imergir, sem pensar no que estava do outro lado, se existisse.
Como se
fosse negro, como se fosse bruma, como se fosse a morte. Sensações que me
levavam a querer sumir do mundo, dos pensamentos. Estava naquela pequena
imensidão e sentia que nunca acabaria. Emergi, estava cega, via um clarão e
nada mais. Tudo parecia ter desaparecido. Abria os braços e não encontrava a
borda, não havia fundo, eu estava cansada. Nadei para qualquer lugar, para
qualquer direção. Não me dei com a borda, apenas mais água, mais líquida entre
as minhas mãos que faziam movimentos iguais. Os braços iam se cansando, minha
alma caía, e eu me deixava levar pelo fluxo, até a hora que parei de nadar.
Despertei
na grama, o cheiro de terra molhada, a pele espetada por algo tão fresco como
orvalhos na grama verde. Ouvia o barulho da água, a mesma água onde eu me
encontrava antes. Folhas umedecidas cobriam os meus olhos, e eu sentia algo macio,
suave. Preenchia os meus olhos, aliviava a minha dor.
-
Melhor?
Levantei-me
rápido e tirei as folhas do meu rosto, abri os olhos. Apenas um clarão. Abri os
braços e tentei apalpar alguma pessoa, encontrar quem havia feito a pergunta.
- Não,
não. Você tirou curativo. Errado, muito errado. Terei que começar novamente.
Por que vocês nunca ficam quietos?
- Quem
é você?
- Eu me
chamo Luter, agora se deite novamente para eu começar todo o trabalho, sua
desastrada.
- Por
que eu não consigo enxergar? Onde está você? – Eu perguntava, balançando as
minhas mãos histericamente.
- Se
não parar com esse comportamento estapafúrdio a sua pessoa voltará para a água
de onde te tirei.
- Você
me salvou? E o que eram aquelas folhas no meu rosto?
-
Folhas de aveleira com pétalas de edelwaiss amassadas. Muito bom para fazer a
visão voltar, mas demora um tempo enorme para isso. – Ele enfatizou o enorme
tempo. – Buscar mais folhas, sim, buscarei mais. Não saia deste lugar.
E eu
pensava que lugar era aquele. Esperei, deitei na grama e fechei os olhos, não
pude dormir, eram tantas coisas passando pela minha cabeça, onde eu estava
naquele momento. Dormindo, em outro mundo ou do outro lado do meu?
Luter
voltou com as folhas e fez outro curativo, amarrou parte de uma folha de
bananeira que circundava minha cabeça, fazendo que o curativo se mantivesse
preso. Ele bocejou algumas vezes, e só depois vim a perceber que ele repetia
demasiadamente este ato.
- Por
que está sempre bocejando?
- Eu
não sou muito do dia, gosto mais da noite, momentos de crepúsculo onde posso
comer sossegado e pensar sobre a vida. Só que é meu dever cuidar do lago, o
mesmo lago que te salvei e que está bem na sua frente, lamento por você não
poder admirá-lo. Com isso perco muitos dias de sono, e acabo por não dormir o
suficiente.
- Você
poderia passar sua tarefa para outra pessoa.
-
Jamais! – Ele gritou. – Cuido deste lago desde que nasci! Meu bisavô cuidou,
meu avô cuidou, minha mãe cuidou e comigo não seria diferente, oras pois.
- Sim,
eu entendo, é um dever hereditário, mas você não perde mais dias de vida com
isso?
-
Entenda uma coisa, pequena desastrada, o que perco acabo ganhando de outro
modo, ou em outro momento. No dia que não me ouvir bocejar, pode ter a certeza
de que este lugar foi engolido pelo lago e que nada, jamais, voltará a ser a
mesma coisa.
- Bem
lembrado, onde eu estou?
-
Perdeu o caminho de casa? Posso te emprestar uma bússola. Não há de me fazer
muita falta.
- Não,
eu lembro que estava no meu quarto e mergulhei em uma poça de água no chão,
acordei aqui.
- Isso
é comum, não se preocupe. Muitas pessoas aparecem por aqui vindas de quartos,
praças, teatros. Gizes foram espalhados pelo mundo afora, onde você conseguiu o
seu?
- Foi
um homem idoso, que mora perto da minha casa.
- Oh
sim, deixe-me explicar: poucos gizes existem, eles são raros e como sabe, eles
se desgastam com o uso. Eles criam portas para este lugar, mas muitas pessoas
não sabem como usá-los. Já vi de tudo por aqui, crianças que desenharam na
parede, alunos com uma professora que explicou a matéria no quadro negro,
meninas que desenharam no muro o nome de seus amados com um grande coração. Se
a ponta de uma linha se junta à outra ponta dela mesma, uma porta de abre. Se
for grande o suficiente você poderá entrar e ver o que tem do outro lado. Só
que poucos conseguem ver, poucos conseguem esperar o tempo necessário para o
curativo fazer efeito. E eles se vão, tiram os curativos, gritam, fazem
perguntas demais. E a mais frequente é como achar o jeito de voltar. Como não
tenho permissão para fincar alguém no chão, digo a saída e os deixo ir.
- E só
existe o lago como entrada?
- Não,
há mais entradas, na floresta, nas montanhas, nas árvores. Não em todas, claro,
mas cada uma tem o seu guardião.
Ele continuou
contando-me coisas maravilhosas, que ás vezes me espantava, e outras me faziam
rir. Mesmo com a venda nos olhos eu podia ver que aquele lugar era bom, sentia
isso em cada gota do meu ser. Eu estava realmente longe de casa, e feliz por
isso, tudo era muito sem cor por lá.
Não me
lembro de como voltei, ou o que realmente passei lá. Apenas acordei no chão de
madeira do meu quarto, o círculo ainda desenhado, minha memória afetada. Eu
acordei diferente, sentia-me mais viva e mais disposta a encarar o mundo. Não
era mais tão gélida, meu coração estava aquecido. Eu estava feliz por dentro,
mesmo não sabendo as razões.
Lembrava-me de Luter e de nossa
primeira conversa, mas todo o resto se apagou da minha memória. Conto aqui o
que aconteceu de início para que vocês saibam da minha experiência, porque
tenho esperança que alguém tenha passado pela mesma coisa, ou por algo
parecido. Tenho esperança que alguém tenho ido para esta outra terra, tenha
falado com Luter ou com qualquer outra pessoa.
Peço,
do mais fundo do lago que me levou até lá, digam-me que não enlouqueci e que há
um jeito de voltar. A casa que a princípio bati na porta não está mais lá, mas
sim um campo deserto. Não tenho mais daquele giz, e sei que as possibilidades
de encontrá-lo são remotas.
Minha
única esperança é que alguém se lembre, porque nem eu tenho mais certeza se
Luter era uma pessoa ou uma lontra.