Não há crônica inédita hoje. Mas tem essa aqui, escrita há um ano e que fala sobre o homem mais especial e enigmático da minha vida: o HOMEM QUE FABRICA ELEVADORES.
Boa leitura e até semana que vem.
Huck
Entro no meu carro e ainda não amanheceu. É segunda-feira e tudo parece estático. A vida pendurada na previsibilidade de um prego invisível e rotineiro. Antes de sair procuro uma música no iPod, a trilha sonora que abrirá mais uma semana de sono e cansaço. Penso nele. Ele não combina com meu iPod. Eu não combino com o mundo. Talvez ele não combine com nenhum dos dois.
Eu passava dos 30 quando, num domingo despretensioso, ele beijou pela primeira vez a minha testa e disse “eu te amo, minha filha”. Ali, ele salvou minha vida. Resgatou de uma só vez sua ausência brusca, bruta, pouco lapidada. Eu e meu pai somos dois desconhecidos que se amam. Ele é um homem calado, pouco sei dos seus segredos. Ele pouco sabe dos meus. Nossos silêncios gritam.
Ligo o carro. O iPod toca uma música calma, quase calada. Continuo pensando nele. Uma lágrima quer saltar dos meus olhos. Uma vontade de gritar. Uma traqueia oclusa no tempo – meu e dele. Uma consciência tão exata de que depois da sua morte, eu não serei mais eu. Eu não terei mais ele. Ele não terá mais ninguém.
Durante a madrugada, no pouco dos sonhos que consigo lembrar, ele morria. Sou uma pessoa que não lembra de nada quando acorda. Mas ao abrir meus olhos de lágrimas, ali estava ele. Algumas realidades aguardam o momento infalível de estrearem no palco dos nossos dias. Às vezes, a vida é um anúncio gritante em outdoor.
Procuro pelos meus olhos no retrovisor do carro. Encontro minha covardia. Um dia ele não mais estará ao alcance do meu abraço.
Tenho quase 40 anos e poucos medos acumulados. Logo cedo o seu silêncio áspero me ensinou a não temer a vida. Ele não me emprestou um dos seus elevadores pra que eu subisse ou descesse com segurança. Disse pra eu fazer tudo usando cordas, escalando o bem e o mal. Hoje muita coisa mudou. Deixamos de ser tão silenciosos em nossos encontros. Há poucas sombras entre nós. Há muitas sobras. Hoje quem o leva ao médico sou eu. Sou eu quem escolhe a armação moderna dos óculos que ele usa. “Pai de artista deve usar óculos de artista”, brinco, enquanto o faço comprar uma armação preta e amarela. Ele sorri e me pergunta se está bonito, só depois que garanto o sim, ele saca o cartão e paga a minha escolha para os seus olhos. Hoje é ele quem precisa confiar em mim. Hoje sou eu quem anseia um outro beijo em minha testa antes da sua fria partida.
Nos últimos dias abraço o desespero diário da sua ausência. Sofro calada um futuro próximo que mudará nossas sombras.
A morte é a única certeza da biografia.
Desço do carro e chego ao trabalho. Aperto o botão do elevador e ao entrar, procuro ávida a marca do equipamento. Sorrio. Ali está as mãos do meu pai. Estou salva naquele cubículo de metal. Meu pai é um homem que fabrica elevadores. Em seu ofício de garantir a subida ou a descida do coletivo anônimo.
Cresci procurando pela cidade os elevadores que ele criou. E quando entro em um que não há as mãos dele, não me sinto segura. Sempre tenho medo de cair. Sempre acho que alguma coisa não vai dar certo e a claustrofobia fica perto de mim na subida incerta. Só nos elevadores feitos por este homem é que me sinto livre.
O elevador sobe macio enquanto leio as quatro letras que compõem o nome da empresa das suas caixas de metal. As últimas duas letras também estão no meu nome: “IS”. Pura coincidência. Aposto que meu pai nunca pensou nessa relação. Sou eu quem precisa da segurança dos seus elevadores. Ele só precisa da minha segurança em aquecer suas mãos enquanto o levo ao médico.
O elevador chega. Sou a última a sair. Procuro mais um pouco do seu abraço metálico. Ali, sempre estarei segura.
Olho a cidade cinza, mais um dia nasce. O homem que fabrica elevadores também já está trabalhando. Sorrio. Do meu lado a certeza de que passarei a vida inteira notando todos os elevadores só pra saber se foi ele quem fabricou. Só assim saberei que as pessoas estarão a salvo quando subirem ou descerem. Eu também estarei. Sim, meu pai é um homem que fabrica elevadores. Os melhores elevadores do mundo.
Décimo sétimo andar. Portas em perfeito alinhamento se abrem. Posso começar a escalar o dia.