Não gosto de misturar coisas tão diferentes como a
Prelo e o Esplanar, mas já tinha dito que iria escrever sobre estes dois livros aqui e falta-me tempo para criar algo de raiz. Ficam amostras (anteriores à revisão de texto) do que está na revista.
O primeiro foi mencionado várias vezes e, tal como as Obras de Aristóteles que o seu autor organiza na INCM, tem passado em silêncio, o que só comprova o que tenho escrito sobre crítica, moda e afins.
«António Pedro Mesquita,
O Pensamento Político Português no século XIX, INCM Lisboa, 2006, 570 pp.
Este longo estudo de António Pedro Mesquita constitui a nosso ver o mais original e bem sucedido trabalho publicado nos últimos anos sobre o século XIX português. E dizemos século XIX por, apesar de o seu foco ser o pensamento político, nunca nele a política se encontrar reduzida a intrigas palacianas ou a uma romanesca sucessão de factos, ainda que tudo isso seja mencionado. Pelo contrário, como o autor começa por esclarecer (no Preâmbulo e em Parte I, capítulo 1) com este trabalho vemos suprida a carência até aqui apenas demasiado evidente de uma abordagem filosófica as correntes mais características do nosso século XIX (este livro revê e amplia o contributo de A. P. Mesquita para o quarto volume da
História do pensamento Filosófico em Portugal, publicado pelo Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e pela Caminho). E por perspectiva filosófica entenda-se um estudo dos documentos em que as doutrinas e ideologias do período se encontram, remetendo a informação biográfica para uma função ancilar e evitando exibir simpatias e antipatias estranhas por definição ao trabalho da análise (o que não impede, bem pelo contrário, que a escrita sempre formal e contida de A. P. Mesquita seja pontuada por notas de humor e comparações com outros dados da história portuguesa, sobretudo recente).
A falta que esta análise faz à historiografia portuguesa é, ou deveria ser, evidente. Sem ela, termos como «liberalismo», «reacção» ou «republicanismo», tão frequentes nos estudos sobre este período carecem de sentido, e, como escreve o autor limitam-se a transpor para a realidade portuguesa conceitos que nela não iluminam antes confundem. Sem surpresa, António Pedro Mesquita entende ser preciso começar o seu percurso com uma breve (para as dimensões do livro) referência ao pensamento político do século XVIII português (citando o estudo de José Esteves Pereira, também na INCM,
O Pensamento Político Português no século XVIII), para melhor enquadrar o leitor mais desatento na realidade da modernidade portuguesa. Esta é singularmente problemática o que se encontra bem nítido no cariz simultaneamente iluminista e autoritário da acção política do Marquês de Pombal, dando aliás origem a uma relação problemática dos liberais do século XIX com o grande reformista do século anterior. E «os liberais», aqui, são realmente vários: a primeira parte do livro intitula-se literalmente «Os Liberalismos» por distinguir sistematicamente (um termo muito adequado à escrita bem organizada e clara do autor) o liberalismo entre «reformismo» e «democratismo», ambos liberais mas com uma série de divergências relevantes o suficiente para o primeiro se perder com a passagem do século e o segundo evoluir para o republicanismo que, juntamente com o socialismo (este, na verdade, outro plural), constitui o tema da terceira parte do volume. Pelo meio, a segunda parte dedicada à «contra-revolução» não constitui tanto um estudo de uma alternativa a estas correntes pós-revolucionárias como a documentação da falta de tal alternativa, deixando bem documentado o mero conservadorismo sem soluções dos seus proponentes.
Ora tudo isto contribui para instalar em pleno século XIX uma «questão política», no sentido amplo e não especializado do termo, já bem conhecida dos estudiosos do século XX e, igualmente, dos séculos XVII e XVIII: a da modernidade portuguesa como experiência cultural em contraste com a da generalidade da Europa (e a Europa das Luzes bem o percebeu). Noções como liberalismo, contra-revolução ou socialismo reportam a uma experiência social (política, portanto, num sentido maior do que o da ciência política) complexa que em Portugal só muito parcial, deficitária e tardiamente se produziu. Pelo que, como António Pedro Mesquita sobriamente vai notando a respeito dos nossos liberais, reaccionários, socialistas, republicanos e anarquistas, os contributos teóricos (pois que é desses que a perspectiva filosófica se ocupa) dos autores portugueses para as doutrinas que defendem são quase sem excepção extremamente pobres. Para dar apenas um exemplo, em poucos lugares como neste livro palavras tão severas, mas tão equilibradas, sobre o pensamento político de Antero terão sido escritas sem intenção depreciativa. E se em Portugal o liberalismo fez o século XIX, como sucedeu na Europa ocidental em geral, isso não significa que o tenha feito do mesmo modo; pois criar instituições e leis não foi o bastante para suprir a falta da cultura liberal que na Europa se formou ao longo dos dois séculos anteriores (e, com ela, a classe média que ainda hoje nos falta), enquanto em Portugal a sociedade dual persistia incólume. O nó górdio da modernidade portuguesa encontra-se neste problema, cremos, e António Pedro Mesquita ilustra-o com felicidade ao dedicar aos liberalismos a parte de leão do seu trabalho.
[…]»
Este, já o referi, em troca de galhardetes com o Eduardo Pitta, há mais tempo.
«Francis Fukuyama,
A Construção de Estados, Gradiva, Lisboa, 2006, 145 pp.
Não deve haver melhor explicação para o discreto acolhimento entre nós desta boa tradução (de F. J. Azevedo Gonçalves) de um livro ainda recente (2004) de um dos mais influentes cientistas sociais e analistas políticos do mundo do que a sua pertinência. Em menos de 150 páginas não deve haver em Português melhor discussão, nem mais actualizada, do que esta sobre assuntos «quentes» já na teoria, já na prática política, como o Estado (tema da primeira parte do livro), a administração pública (tema da segunda parte) e o Direito internacional (terceira parte). E em meios pequenos e tendencialmente fechados, com reprodução de ideias simples como se fossem enormes novidades, um trabalho acessível, metódico e imparcial como este transtornaria muitas «caixinhas» fáceis de arrumar (a começar com a classificação do autor, tratado quer por detractores quer pelos restantes como se fosse apenas mais um «neocon», que nunca foi e com os quais, desde há três anos, decididamente rompeu).
A primeira parte, «As dimensões perdidas do Estado» é um clarificador exercício de história e teoria da ciência política em torno de um dos seus temas maiores, a definição do âmbito das funções do Estado e a capacidade deste para as cumprir. Longe dos lugares comuns inconsequentes do Estado «máximo» ou «mínimo», Fukuyama nota como as diversas opções quanto ao âmbito das funções do Estado na sociedade são legítimas, sempre em função de procedimentos que cada vez mais são os democráticos liberais, mas salienta como é a capacidade do Estado para exercer competentemente as suas funções que define os bons regimes, «Estados fortes» (cf. p. ex., pp. 32/3). Fora, portanto, da gritaria sobre o neo- e o anti-liberalismo (sobre isto, ver em particular pp. 18/9), Fukuyama acentua a centralidade das instituições dentro da vida social, na linha do que já fizera em trabalhos anteriores (pelo menos desde Confiança, também traduzido pela Gradiva).
A questão está contudo, em o conhecimento sobre boas instituições não ser facilmente transferível de uma sociedade para outra, variando mesmo consoante o tipo de instituição em causa. Além disso, mesmo uma boa instituição pode ficar sem procura social, o modelo económico do mercado não se aplica aqui sem muitas reservas. Daí que a segunda parte do livro, «Os Estados fracos e o buraco negro da administração pública» não se centre na pluralidade de formas de organização das instituições tanto no sector privado como no público, não permitir identificar uma única como óptima em detrimento das restantes. Os vários casos identificados pelo autor (Portugal não surge, mas Timor-Leste sim) são bem reveladores da necessidade de, em vez de reclamar mais ou menos Estado, se atender à cultura local, às instituições que nela actuam e, a partir desse trabalho, os modos de reformar as instituições que se revelem mais eficazes, sem pretender generalizar (e, igualmente, sem pretender importar modelos oriundos de tempos e culturas diferentes daquela em que se intervém). Este trabalho, como Fukuyama nota (p. ex., p. 57), opta por uma tradição sociológica (largamente weberiana, ainda que modificada) em detrimento da predominância da economia na teoria social durante as décadas de 1980 e 1990. Isto não é negar vaidade à Economia, mas privilegiar um entendimento dela diverso do da «ciência-raínha» cuja quantificação soluciona qualquer problema de modo automático (o diálogo com Hayek é sobre isto muito relevante). Reencontramos, de novo, temas já presentes noutros trabalho de Fukuyama, como a margem de «decisionismo» subsistente nas nossas democracias (cf. pp. 83/5), e toda a argumentação procede por salientar as diferentes ênfases que processos de reforma podem conhecer, que devem conhecer.
[…]»
CL