Levantou-se cedo, vestiu uma justa bata preta, abotoava a fileira de botões com a mesma delicadeza de quem toca flauta. Dedos fluindo pela incorpórea linha que une o queixo e o umbigo. Deu um nó ao cabelo, perto do cocoruto da cabeça, dois ganchos segurando madeixas indomáveis. Fechou a porta sem fazer barulho, desceu as escadas sem qualquer ruído. Rimou o silêncio com o cuidado de o ter. Consigo levou apenas uma mala rectangular, de aspecto antigo e gasto, umas sabrinas escuras e um sorriso matreiro, as unhas pintadas de um vermelho vivo, um vermelho-escárnio. Misturou-se com a multidão da cidade, de quando em quando passeava a mão pelo cabelo muito apanhado no cima da cabeça, domado num nó firme e dois ganchos robustos. Dizem que numa noite dormira com o senhorio e lhe pagara a renda com o dinheiro que então lhe roubara, enquanto aquele ressonava sonhos pesados. Sem fazer ruído, todos amaldiçoavam aquelas matreiras sabrinas, escuras e silenciosas como uma noite leve. O senhorio roubado, a mulher do senhorio traída, os amigos do casal e familiares do maldizer. Do escárnio encarnado daquelas unhas desavergonhadas. Dizem que nunca se soube o seu verdadeiro nome, que o imitava de senhoras sérias que conhecia nas estações de caminho-de-ferro, a vadia! A ladra! A putéfia de bata preta...! Diz-se que nenhuma alma viva viu a sua mala aberta, a rectangular e velha, a única que consigo trazia. A única que consigo levou. Talvez lá guarde a vergonha que não tem na cara, ou na alma, pensava o senhorio, a ex-mulher e os amigos do mexerico.
Na cidade, ela sorria matreira entre a multidão. Abriu o primeiro botão da bata preta, não se podia com o calor. Entrou no primeiro comboio, sem comprar bilhete nem verificar destino. Cidades são apenas isso, nomes. Por falar nisso, precisava de um novo. Olhou uma senhora idosa que trazia um cão ao colo e um "bom dia menina" nos lábios. Sem fazer ruído, sugou-lhe a identidade com um brilho nos olhos escuros, escárnio vivo, e meia dúzia de perguntas discretas. Guardou-a na sua mala rectangular, já gasta, passou ao de leve a mão pelo cabelo preso. Tudo em ordem, confirmava.
apesar de não comentar muito aqui, devo dizer-te que adoro ler o que escreves. mesmo!
ResponderExcluirum beijinho*
contas-me de gente que vem e que vai.
ResponderExcluirE ainda falas de mim. :D
ResponderExcluirGostei muito desta Lady Madonna, muito senhora de si. Escreveste tudo duma forma simples e rápida, tal como a sua vida.
Não quero saber do que achas que o outros acham. E tens o dom das palavras, da pontuação, das metáforas e tudo isso. Tens o dom e a alma em ti. E depois tens estes textos, que acho só fenomenais.
ResponderExcluirQuero escrever assim. *