terça-feira, 30 de junho de 2009

Profecias encantadas.

Nasci numa sexta-feira quente de 89. A minha avó rezou terços até lhe doer a língua porque só os endiabrados nascem às sextas-feiras, diz. A minha prima diz-me que é endiabrada que baste e nasceu numa terça, enquanto a minha avó vaticinava profecias do meu futuro. Confessou à minha mãe que foi, contudo, um bom ano para nascer. Sem perceber nada de astros que não seja reconhecer os pontos do céu como estrelas, a minha avó previa em voz alta, em serões familiares, como a menina ia nascer com a graciosidade dos anos 90 e a tendência para os mil. Vai ser uma acelerada, a rapariga. Riam-se muito, diziam que a avó dizia coisas disparatas.
Quando toda a gente viu o meu cabelo nascer fino e liso, a minha avó avisava que viriam, na sua época, cachos de caracóis como de uvas, fortes e frescos, soltos e grandes. Uvas sumarentas que haveriam de povoar o fino cabelo liso da menina e ninguém lhe deu ouvidos. Fiz seis anos e o cabelo deixou de ser tão liso, ou tão fino, povoavam-me a cabeça uvas gordas, uvas soltas, fortes e frescas. Cachos na nuca e a minha avó sentada na sua cadeira de baloiço acenando afirmativamente. Juntava as mãos como se rezando, contando às vizinhas, até lhe doer a língua, que tivera um diabrete de neta. Não me deixava comer pão e nos meus ingénuos seis anos fui incapaz de perceber o que ela quis dizer com senhoras que atacam no pão fazem-no para esconder males maiores que a fome. Não tenho nenhum buraco na alma e continuo a ter queda para o pão, catorze anos depois disso.
Endiabrada e nascida a uma sexta-feira quente de 89, costumava levar muitos raspanetes da minha mãe quando saíamos de casa. Mãos nos bolsos e pés no chão, dizia-me, quando entravamos em lojas com jarras de vidro, mesas espelhadas ou apetrechos frágeis. Olhavam-me de soslaio, diziam que a miúda era um diabrete e não me dava jeito nenhum andar com as mãos nos bolsos, os cotovelos espetavam-se para os lados e faziam-me facilmente perder o equilíbrio. Apesar da vigilância apertada da minha mãe parti sempre qualquer jarra de vidro, qualquer mesa espelhada, qualquer apetrecho frágil, numa qualquer loja em que entrássemos. Diziam que a miúda era um diabrete e a minha mãe cerrava-me o olhar como quando me apanhava a comer pão às escondidas do pai, que tinha medo que eu me entalasse com tanto miolo e tão poucos dentes e fossemos todos de urgências para o hospital porque a menina não respira!.
Uma chuvosa noite de Novembro de 90 e coisa, já o meu irmão berrava os seus recém-nascidos pulmões horas a fio, o tecto da casa na Circunvalação cedeu e vi o céu com os meus pequenos olhos cor de avelã. Sempre tive pena de não herdar os olhos azuis de cinema do meu avô, essa coisa dos genes é traiçoeira como um telhado de vidro. O meu cedeu, choveu-me na cama, nos caracóis como em cachos de uvas, e não chamei a mamã porque não quis que a avó dissesse que foi Demo para me castigar, ou Cristo para me benzer. Mudámos de casa pouco depois, para um apartamento onde a tijoleira do chão explodia a cada dez dias e onde rebentou uma guerra entre condomínio e residentes até se ouvirem tiros e a polícia interrogar um grupo de miúdos que jogava à bola nas traseiras. O senhor agente perguntou a um menino cuja face lembrava uma bolacha se sabia quem tinha a pistola. O menino respondeu que só tinha um arco e duas flechas de penas e já velhos, porque uma vez a irmã, que tem os olhos cor de avelã e caracóis fortes e gordos, certo Carnaval, vestiu-se de Pocahontas, mas que o Miguel tinha duas pistolas porque fora de Cowboy. Contou ao senhor agente, do alto da sua sabedoria de quem tem sete anos, e em segredo, que achava que a irmã gostava de casar com o Miguel. O senhor agente coçou a testa, perguntava-se porque não tinha ficado com o turno da noite. A minha avó não ousou dizer que anteviu tudo, mas todos lho soubemos ler no acenar afirmativo, enquanto juntava as mãos como se rezando. Certo dia, descansados os ânimos na vizinhança, perguntei à minha avó como podia ver o futuro como ela. Não ousou explicar-me, disse-me só que nascera em mim a magia no dia em que brotaram uvas do meu fino cabelo liso. Sorri, a avó sempre disse coisas que não percebera - estaria a falar dos ataques de asma que perdi subitamente, como que por magia, aos seis?
Liga-me todos os anos para me felicitar pelo aniversário, conta-me como me viu nascer diabrete e crescer uma senhora, diz até que sou a única da família que sabe ter postura de realeza no andar e às refeições e rio-me muito, a avó sempre disse coisas disparatas. Diverte-me vê-la empenhada nas suas profecias, entusiasmada com o meu futuro e as minhas possibilidades. Sim, para a minha avó é bem provável que eu fuja de casa e me case com um músico aluado da Europa culta porque, nascida numa sexta-feira quente de 89, tenho o diabo no corpo e tendência para a aceleração.






Hoje foi a primeira a telefonar, Parabéns diabrete.
Sorrio, a minha avó sempre me fez sonhar, tivesse eu a idade que fosse.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

É já amanhã, diz-se.

Este ano sei bem que desejo pedir quando soprar as vinte velinhas do bolo.

A culinária do amor: na dose errada.

Cá por casa todos gostam de um bom salame caseiro. Bolachas Maria ao desbarato, trituradas e feridas e cuidado com o chocolate que o teu irmão gosta dele bem forte e docinho, diz-me a minha mãe.
Tenho-me sentido um bom salame caseiro, na dose descuidada de chocolate. É. Também gosto dele bem forte e docinho e deixaram-me em banho-maria, amolecendo em ponto de rebuçado. Esmagada, fui bolacha Maria. Descuidaram-se com o chocolate, amoleci depois de mexer bem devagar e manter em lume brando. Esperei que alguém fizesse frutos da vontade, que é como quem diz da vontade um salame, uma mousse até, cobertura para um qualquer bolo que fosse. Esperei e nada aconteceu que não fosse ficar eu amolecida e untada, como se faz com as formas antes de irem para o forno para que o bolo não fique lá colado. Não resultou comigo que, untada pelo beicinho, em ponto de rebuçado, colei a um qualquer balcão de cozinha. Um qualquer não, o balcão de cozinha dele, o Senhor Banho Maria. Dancei numa pasta achocolatada com os restos da bolacha triturada, a manteiga quente e pestilenta. E, esquecida, fui dose descuidada de chocolate no balcão da cozinha porque, senhor de todos os trends e highlights culinários desta estação, ele se lembrou que bom bom é tarte de maracujá. Ó exótica tarte de maracujá, que nem precisa de ficar em ponto nenhum, já vem no ponto. Feita em três tempos, mas com todos os cuidados, o Senhor Banho Maria olha de soslaio para a pasta de chocolate em cima da banca. Vai perguntar-se que borra ficou ali, parece um resto queimado de qualquer coisa. Não lhe dá grande atenção. Não me dá muita atenção e, como resto queimado de qualquer coisa, ou de coisa nenhuma, fico untada e pestilenta à espera de ficar pronta, à espera de ficar no ponto. À espera, fui salame caseiro em banho-maria.

Nunca mais cá por casa se fez um bom salame caseiro. Digo à minha mãe que não tenho paciência para a migalhice que as bolachas Maria fazem, trituradas e feridas, e explico ao meu irmão que bom bom é tarte de maracujá - não quero deixar ninguém em ponto de rebuçado e, no final de contas, faço da vontade frutos. Maracujá seja e não fica ninguém em banho-maria no balcão da minha cozinha.

domingo, 28 de junho de 2009

Um quente e frio.

Deu-me hoje uma súbita saudade do Inverno. Uma pontada saudosista da chuva fria, inclinada pelo vento forte, os assobios das ruas cinzentas. Vontade de ver os telhados das casas orvalharem como plantas chorosas e quebrarem o horizonte em tons de um cimento mesclado, um cinzento húmido.
Deu-me hoje uma espontânea vontade do bom Inverno, aquele invernoso a valer, do quente apenas da luxúria, quente somente dos beijos, quente tão-só de corpos dormentes em vestes rigorosas, vestes pesadas. Os colarinhos subidos, as palavras roucas, as golas altas. As cores mortas e as vontades perto disso. Botas em poças de água, poças de chuva e poças para a chuva! Inexplicavelmente, apetece-me provar o casaco comprido e soltar o cabelo para não ter frio nas orelhas também. Sim, apetece-me sentir frio nas orelhas, no fundo das costas quando me sento e me sobem as camisolas, quais colarinhos, também eles subidos, barreando o vento forte, a chuva inclinada - poças para o vento!
E porque o sol fosco lá fora me atrapalha a vista, hoje abateu-se em mim o gosto pelo chocolate quente nos lábios gretados do frio, cieiro nos nós dos dedos e cotovelos crespados sob vestes rigorosas, pesadas vestes. E hoje fui apenas uma voz saudosista e rouca da chuva fria, inclinada pelo vento forte, assobiando nas ruas cinzentas, mescladas e húmidas. Hoje fui apenas um sopro súbito das cobertas quentes, a luxúria que o calor emana, senhor e rei.

Só estou bem onde não estou e não sei bem onde isso fique.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

First in line.

Esperem, é suposto eu fazer o meu discurso. Dêm-me dois minutos da vossa atenção, não tenho jeito para declarações públicas, olho sempre para alguém de confiança, pode ser aquela menina de olhos escuros e de permanente no cabelo, não me posso demorar porque gaguejo em palavras simples como quando tentei explicar à turma de secundário o que era uma selecção genética e tossi no "né" do "genética" até cuspir no colega da frente. Já me tinha acontecido isso, cuspir no colega da frente, na apresentação final de Área de Projecto, em que não sei que fazer aos braços e não gosto de pegar em canetas como o resto do grupo porque tenho tendência para as pôr na boca e roe-las até ficar com os dentes manchados de tinta e isso não daria postura positiva como oradora. Portanto, sem pressas nem demoras ou canetas na mão, vou focar-me naquela rapariga de confiança, a de sorriso grande e permanente no cabelo, e fazer o meu discurso.


Estou de pé e esforço-me para não tremer. Estou nostálgica, emotiva, esqueço-me do que queria dizer. Pergunto-me se o meu cabelo não me pregou uma partida e não tenho um nó no cocuruto da cabeça e por isso olhem todos para mim. Queria que olhassem para mim porque tenho um discurso importante a fazer. Estou nostálgica, emotiva, esqueço-me do que queria dizer e passo a mão no cabelo só para me certificar que não há partidas no cocuruto da minha cabeça. Há-as no meu coração, sinto-o vulnerável - nunca fui boa em declarações públicas.
Peço-vos dois minutos da vossa atenção, é importante. Estou nostálgica, emotiva e vulnerável, mas sei perfeitamente o que tenho a dizer.
Boa noite.
Arranco com a voz fraca, fico um bocadinho irritada porque se perde um pouco o impacto inicial. Vamos lá tentar de novo, agora com firmeza Joana.
Boa noite.
Muito melhor. Piscam-me os olhos, atentam nas sílabas que se escapam dos meus lábios - não quero tossir até cuspir em alguém.
Sempre me disseram que tenho jeito com as palavras. Eu conheço quem o tenha de facto, quem me tenha dispensado esse dom nas horas vagas, nas horas mortas, nas horas tristes. Os conselhos que delas vieram ficarão para sempre comigo, vá para onde for. Vá para lado nenhum. Sempre me disseram que tenho jeito com os gestos. Eu conheço quem o tenha de facto, quem mos tenha dispensado em qualquer hora, em hora nenhuma, por razão alguma. Os que apareceram só porque me faria sorrir, os que, sumidos, mandaram um abraço de saudade, um beijo de carinho. Ficarão para sempre comigo, os sorrisos, os abraços e os beijos. Sim, ficarão para sempre comigo as palavras e os gestos. Hoje ficam comigo todos vocês, e torno-me responsável por mais que as minhas vontades. Recolho as vossas, que me guiam os dias em mais sorrisos, mais abraços, mais beijos de carinho. Angario as vossas palavras, mendigo por um gesto vosso, peço-vos atenção. Sempre me disseram que tenho jeito com as palavras e com os gestos. Eu conheço quem o tenha de facto, jeito com as palavras e os gestos, porque vos conheço. Vocês, que me dispensaram horas - mortas, vagas, tristes, todas e qualquer uma mais -, ficarão para sempre comigo. Vá para onde for, vá para lado nenhum, hoje sei que quero ter jeito aqui. Aqui onde há sorrisos, abraços, beijos, carinho, saudade e rostos de confiança. Confiança. Quero ter jeito nessa desgraçada também. Hoje não vou escutar o que os outros digam porque os outros não são vocês. E são as vossas palavras, os vossos gestos, de facto, um dom como nenhum outro. Boa noite, porque aqui, onde moram sorrisos, abraços, beijos, rostos de confiança e até saudade, não moram despedidas. Vá para onde for, hoje sei que, sem vocês, não vou a lado nenhum.


Eu disse que era importante. Olho em volta, rostos de confiança que me acenam. Não cuspi em ninguém e disse exactamente o que queria dizer. Sorrio, por fim, nostálgica e emotiva.

Filho do exército e do infortúnio - II.

Querido Carlos,

Recebi todas as tuas cartas e li-as avidamente, como li a primeira. Todas as noites adormeço rezando a Deus que te traga em breve, como havias prometido, e todas as manhãs acordo amaldiçoando essa Regência que te levou para longe de mim e do teu filho. Está para nascer o bebé e há-de ter o nome do teu avô, os meus olhos e o teu sorriso. Dá-me pontapés de noite, zangado com a tua ausência, meu amor. Não sei durante quanto mais sou capaz de responder à tua mãe, que insiste em ligar, que não, ainda não voltaste e que quando voltares a avisarás. Não sei durante quantos domingos sou capaz de falar com o Padre Jorge que diz que Itália conjura uma guerra que há-de implodir nas almas dos extremistas e explodir corpos dos defensores. Entras aí meu amor, tu vem-te embora. Saúda a desgraçada da cúpula, ou lá da base que foste benzer, e vem para Casa. Não sei quanto tempo vou demorar a superar o ódio que tenho ao Partido por ter falado em três meses e ter falado mentira - sei bem como essas coisas nunca cumprem horários nem calendários, sim, mas nem te chegaste a despedir. Beijamo-nos a última vez quando compramos o berçário para o menino, a tua camisa cheirava a sabão e suor quente e os meus caracóis caíam nos teus ombros. Não quero que seja a última vez e o Padre Jorge diz que pensamentos destes fazem mal ao pequeno. Dá-me pontapés quando penso coisas dessas, zangado com a tua ausência e o meu pessimismo. O pequeno, bem entendido, porque o Padre Jorge limita-se a dar-me um abraço de compaixão e três Avés Marias em teu nome, Carlos.
Também tenho saudades tuas e não tenho quem pontapear. Limito-me a receber o abraço do Padre Jorge e a esforçar-me por não esquecer como o teu era reconfortante e acolhedor. Terno, longo abraço teu.
Amanhã vai ligar a tua mãe e perguntar se já voltaste, se deste notícias por carta ou se o Partido já vos soltou das obrigações civis. Obrigações o tanas, não quero saber dos Sindicatos, meu amor, quero saber de ti. Quero-te em casa e que não seja para breve - seja para agora. O menino está para nascer e há-de ter os teus olhos, fitando-o babado. Prometeste.
Volta para Casa.

Tua,
Nora.

terça-feira, 23 de junho de 2009

Problemas de vida real, sem recorrer à calculadora.

É favor calar com a história dos limites, dos logaritmos e dos cis de argumentos!

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Gostas de Caeiro porque és ele.

Odeio Alberto Caeiro.

Filho do exército e do infortúnio.

Nora minha querida,

Recebi hoje uma carta selada do Partido, querem que vá para Itália em nome do Regimento. O Conselho da Regência alega que o período em missão é temporário e não excederá os três meses, explicam que vamos apenas inaugurar a nova base militar perto de Sardegna, mas sabes como estas coisas nunca cumprem horários nem calendários, meu amor. Os sindicatos por cá andam numa barafunda confusa sobre os impostos do exército e refugiamo-nos num outro país que não nos chateie com burocracias governativas, sabes como o Governo gosta de apertar connosco até sermos obrigados a esconder o lixo debaixo do tapete. Farei voluntariado nos espaços livres da bajulação à nova base, posso final e realmente ajudar alguém, Nora. Sabes como sempre quis credibilizar os desempregados, alimentar os famintos e educar os analfabetos. Ias gostar de lhes ditar as tuas histórias, treinavas as tuas Línguas e não ficaríamos separados tempo algum - o quanto me vai custar, meu amor.
Não me permitem que mais me alongue, tenho malas para fazer - a partida é já pela madrugada, Nora. Dizem que por lá faz frio nesta época, estivesses tu aqui para me ajudar a escolher entre pólos e bombazines. Serão meses breves, prometo. Voltarei em breve, Nora. Prometo-te.
Amo-te a ti e ao meu bebé que carregas no ventre como a uma semente - uma que nascerá fruto credibilizado e educado, faminto apenas do carinho dos pais babados. Estarei então por casa, prometo. Verei então o bebé que carregarás no colo como a um fruto fresco. Não há Governo que me separe de ti, Nora. Não há frio ou vento que supere o que em mim reinará, estes três breves meses. Breves, acreditemos.

Com amor,
Carlos.

domingo, 21 de junho de 2009

Fez-me companhia, o comboio da manhã.

Acordo e o teu corpo quente do meu lado faz-me calor. Respiras para cima da minha cara e questiono-me como pude achar este cenário amoroso, fazes-me calor. Sacudo os lençóis como a um leque, saio da cama sem rodeios. Não sei se te acordo, dirijo-me para o lavatório do quarto de banho que partilho contigo há já não sei quantos anos. Dois meses? Pareceram décadas, meu amor. Estiveste a fazer a barba e deixaste uma imundice de pêlos e espuma na loiça branca do lavatório onde tencionava lavar a cara - tenho calor. Dispo a camisa de noite, dirijo-me nua para o frigorífico. Deixaste o pacote do leite aberto em cima da mesa, com um resto já alagado em natas pestilentas, e descascaste fruta para cima do balcão. Há um pouco de sumo de laranja no frigorífico, está fresco e bebo-o de um copo alto que tiro do armário sob o balcão - tenho calor mas modos também. Deito fora as cascas de fruta que vieste comer pela noite, chegas à cozinha e trincas os lábios às minhas costas nuas. Volto-me e encaras-me com um abraço - fazes-me calor e dois meses pareceram décadas, meu amor. Desculpo-me com pressas para o trabalho, Tenho mesmo de me vestir. Vejo-te desanimar com o meu tom seco e descascar mais fruta, procuras bolachas Maria para um batido qualquer. De banana, quase poderia apostar, enquanto regresso ao quarto que nos adormece os dias. Odeio banana.
Enfio um vestido curto, colorido como os teus olhos, pego na pasta e saio de casa sem grandes despedidas: Até logo, amor.

Na rua, o vento ainda dorme. Não respira na minha cara e é uma pena porque tenho calor. No comboio para o escritório vou ver gentes de todos os géneros. Mães e meninas, rapazolas e homens de barba rija, multidões a tempo e horas e sujeitos atrasados para a escola. Mulheres de bagagem, homens de bagagem numa mente já pesada de si. Óculos escuros, fatos-gravata, saias travadas, vestidos coloridos. Pergunto-me se não deveria seguir rumo com a massa anónima de gentes que partilha sempre comigo o comboio da manhã. Se não terei mais em comum com estas mães, estas meninas, estes rapazolas e estes homens de barba rija que contigo, meu bem. Eles não me fazem calor e quase aposto que mais de metade não tem o teu vício de beber leite do pacote e deixá-lo no balcão a alagar em natas pestilentas. Óculos escuros, fatos-gravata, saias travadas, vestidos coloridos.
A meio caminho do escritório um rapaz senta-se do meu lado. A meio caminho de casa reparo como tem um corpo robusto, entroncado e o cabelo escuro como os óculos daquela senhora. Veste algo simples, talvez a tenha enfiado sem rodeios nem preocupações, qual vestido colorido no meu corpo quente.
- Faço-te calor?, pergunto.
- Não, fazes-me companhia.
Encara-me com um sorriso fresco. O vento acorda com o seu pestanejar, um clarão que desperta das suas pestanas com a veemência de um calor arrebatador. Adivinho no seu rosto que não tem os teus vícios de descascar fruta para o balcão e sigo rumo consigo, no comboio da primeira manhã da minha vida. Adeus, amor, odeio banana e bolacha Maria dá-me sede.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Hum.. pensemos:

Físico-Química, para que vos quero?!

Na foto: Joana David.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Hoje em dia paga-se o preço por tudo e não se conhece o valor de nada.

Procurar-te.

IMP.: Os satélites geostacionários apresentam uma órbita equatorial e um período de, aproximadamente, 24 horas.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Há dias e dias.

Há dias em que me sinto uma força da natureza.
Outros que nem tanto.


Hoje nem tanto. Talvez amanhã seja um dia daqueles, dos outros.

A despedida.

Olho-te nos olhos, sem sorrir.
Tenho tanto medo que os músculos do rosto paralisam, gelam no teu olhar.
Olhas-me nos olhos, sem sorrir.
Perguntas-te porque não estou alegre como de costume e o medo gela-te os gestos.
Não me quero ir embora e quando for quero saber quando volto. Tenho medo porque não sei.
Temes que seja isso, que vá embora sem saber quando volto, os teus braços tremem na veemente ideia de ausência, latejam carência e estou a dois passos de ti. Queres perguntar, mas o medo paralisa-te os músculos do rosto.
Olho-te nos olhos, Amo-te.
Eu amo-te muito.
Então é isto a despedida. Nos filmes parece sempre tão bonito, meu amor.
Nunca é, sabemo-lo tão bem.
A dois passos de ti, estendo-te a mão.
Estás a dois passos de chorar, quebrar como uma criança perdida, mas seguras-me o pulso.
Sentir a tua mão no meu pulso, os teus dedos contando-me os poros, dá-me vontade de chorar, quebrar como uma criança perdida.
Dançamos horas intermináveis, até os ponteiros do Tempo agoniarem, gelados pelo medo de nos verem parar. Quando a balada terminar estarei longe, sem saber quando volto.
E tu estarás aqui, olhando o vazio que deixo no lugar que foi sempre o nosso, perdendo contas ao Tempo cujos ponteiros falecem, numa dança fúnebre.
Amo-te.
E eu amo-te muito.
Olhamo-nos nos olhos, nenhum de nós sorri - a despedida não é coisa bonita e somos duas crianças perdidas, geladas de medo num dia de Verão quente.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

O meu nome é Hanna.

A Hanna é uma menina alemã de longos cabelos escuros. Diz-se que quanto mais se sobe pelo mapa mais loiros são os longos cabelos das meninas, mas o da Hanna não. Tem o cabelo escuro como uma portuguesinha, bem comprido e com muitos caracóis, como não se vê pela Alemanhã e tanto se vê por Portugal. Às vezes os ditos enganam-se. A Hanna tem uma pacata quinta para os subúrbios, quase na fronteira de um outro país que desconhece, nem Geografia foi o seu forte. De fronteiras conhece apenas as da sua cerca, a que montou num Verão ameno para que as suas cabras não fujam. A Hanna não gosta quando uma das suas cabras foge porque as outras, matreiras como raposas, vão atrás e fogem também. São cabras e é o que sabem fazer, ir umas atrás das outras pulando a cerca que uma menina de longos cabelos escuros montou uma vez, num Verão ameno. Não tem só cabras mas vive sozinha, a Hanna. Usa lenços na cabeça e tranças que asfixiam os caracóis em ziguezagues firmes. Tem sempre laços nas pontas das tranças, sempre um de cada cor. Às vezes uma das cabras come um dos laços, quando a menina alemã se baixa perto delas, são matreiras como se raposas. Às vezes os ditos enganam-se, matreiras são as cabras. À noite, quando já dormem e digerem laços às cores, a menina alemã costuma sair de casa de motoreta. Comprou-a num Inverno chuvoso, farta dos lamaçais da rua e das galochas pesadas. À noite, Hanna sai de motoreta vestida de cabedal. Solta as tranças e os caracóis libertam-se dos laços às cores. Não usa capacete porque não há movimento nos subúrbios e gosta de sentir o vento na cara, o vento no cabelo, na garganta quando canta pelo caminho. A Hanna é uma menina alemã, de longos cabelos escuros, que vestida de cabedal e cantando ao vento lembra uma portuguesinha leviana.
Numa dessas noites, num Verão ameno depois do da construção da cerca, uns quantos depois das fugas das cabras, também, Hanna saiu vestida de cabedal, montada na sua motoreta. Faz muito barulho, a motoreta, e por isso a menina canta por cima do ruído das engrenagens do motor. Ou o que julga serem as engrenagens do motor da motoreta, a Hanna não percebe muito de Geografia nem de Mecânica, não se sabe bem ao certo do que percebe a menina alemã. Talvez de cabras.
Numa dessas noites, num Verão ameno, cantando ao vento, qual portuguesinha leviana, Hanna conhece um menino sentado na berma da estrada. Não lhe sabe dizer a nacionalidade, mas percebe-lhe pelo ar que não é de cá. O cabelo é claro e médio, sob o curto e sob o comprido, lembra um portuguesinho porque os ditos enganam-se e às vezes é quanto mais descemos no mapa que mais loiros são os cabelos dos meninos. Não lhe sabe o nome mas julga que quando o ouvir, lhe soará familiar. Vai encostar a motoreta barulhenta perto do menino sentando na berma da estrada.
- Tens sorte que não chove, senão isto estaria um lamaçal, comenta Hanna estendendo a mão.
O menino loiro, cabelo curto e comprido, olha-a. Tem os olhos muito claros e baços, como fica o vidro da janela no quarto de banho da Hanna, quando toma banho com água muito quente, água a escaldar. Estende-lhe a mão, diz-lhe o seu nome. Soa-lhe familiar, e a pronúncia lembra a de um portuguesinho simpático. Dirá que vem de Itália, tem lá família mas que gosta de viajar sozinho e que um desencontro amoroso o deixou ali, sozinho.
- Isto é tudo menos um desencontro, riposta a menina alemã.
O menino italiano, que lembra um portuguesinho simpático, pensará como aquela menina de cabedal tem razão, talvez seja isto um encontro, um dos felizes até. Vestida de cabedal e de caracóis muito escuros, vai pensar como ela lembra uma portuguesinha leviana. Mas uma portuguesinha simpática, das que sonham com pacatas quintas e cercas nos subúrbios para as cabras.

Not guilty.

Somos todos marionetas e, perdoem-me, é uma merda.

domingo, 14 de junho de 2009

Monólogos da Vagina.

Tenho uma mala cheia na bagagem do jipe. Confirmo que enchi depósito, sempre compensou guardar umas poupanças e gostava de poder falar em cilindradas e cavalos, mas de cilindros só sei áreas e de cavalos só de corridas, tu também não ligas nada a isso portanto nem importa. Pus na caixa de CDs os nossos preferidos - e tu repara que já não digo CD's em possessivo, porque CDs não é CD's e eu muito aprendo contigo -, estou a divagar e queixo-me que não dá para mais de dez. A viagem é longa, a mala vai cheia como o depósito e queixo-me que não teremos música para ida e volta, mas pelo menos gasóleo não faltará. Sempre compensou guardar umas poupanças, cilindradas e cavalos ao desbarato, não importa que tu também não percebes nada disso e eu gosto é de divagar.
Chego ao teu portão, pergunto-me se estarás em casa, devia ter-te ligado. Vou sempre a tempo agora, chama e a tua voz soa com o habitual "Entãão?" animado. Então desce. Então entra no jipe e repara como o depósito vai cheio, denunciador da longa viagem que nos espera. Sim, a nós, é esse o Então de hoje. Enquanto toca o primeiro CD dos dez e trauteias as músicas que já sabemos de cor, procuro no porta-luvas os bilhetes, dá lá um jeitinho aos joelhos e não espreites, repara no depósito com as minhas poupanças numa pasta preta peganhenta. Encontro-os finalmente e agito-os na frente dos teus olhos. Calas-te com a música que já sabemos de cor e perguntas-me O que é isto.
O que te parece?
Seguras num dos bilhetes, analisas cuidadosamente. Vamos para Lisboa? Quando?
Os teus olhos abrem-se muito, como quando estás ansiosa e repetes muitas vezes uma pergunta, à qual já sabes de cor a resposta.
Hoje, é esse o nosso Então.
Vais-te queixar que nem avisaste os teus pais, que é tarde e tens de deixar comida à gata, mas já combinei tudo com a tua irmã e trago na mala cheia roupa para as duas.
Os teus olhos abrem-se muito, como quando estás animada e te inclinas para a frente ansiosa.
Tens o depósito cheio, reparas.
Denunciador da nossa viagem, poupanças numa pasta preta peganhenta, mas sempre compensa. Põe o sinto, vamo-nos fazer à estrada.
Oh, não sei, não avisei os meus pais, é tarde e tenho de deixar comida à Iris, vais repetir.
Arranco devagarinho, o motor dá sinal de resmunguice. Ignoro-a, ou teria de ouvir a tua também. Encolho os ombros e digo-te, satirizando a tua preocupação, que Paciência, a capital não espera.
Tenho a mala cheia na bagagem do jipe, olhas os dois bilhetes, O raio da gata não há-de morrer faminta.
Não, respondo-te, e fome tenho eu, de dias assim. Agora põe lá um dos CDs que sabemos de cor e repara como já não digo CDs em possessivo, muito aprendo eu contigo.

sábado, 13 de junho de 2009

A medida do homem.

"Apreciamos a inteligência como se fosse uma espécie de dom supremo. Falamos dela como se fosse uma qualidade intrínseca a alguns, que se afatam da mediana e brilham resplandescentes do alto da sua capacidade de raciocinar, tematizar, argumentar, invocar factos, recordar eventos, saber pormenores que nos escapam ou relacionar odens de acontecimentos que acrescentam qualquer coisa àquilo que tínhamos por adquirido. Em certas fases da vida, sobretudo no ínicio da idade adulta em que começamos a perceber que a beleza pode ser apenas uma questão de "produção", viramo-nos para a inteligência como se nela estivesse contida uma qualquer essência maior, mais plena ou mais definitiva.
Por aí, deixamo-nos fascinar por algumas raras personagens que, pela qualidade do que pensam, pelo fulgou ou facilidade com que usam parcelas de conhecimento, nos fazem antever outros mundos e, por essa via, nos abrem portas a uma pertença de entendimento, que nos promove e qualifica como sendo também inteligentes. Muito inteligentes.
Um bocadinho mais à frente nesse percurso que vai construindo sentido de vida, começamos a dar conta que, às vezes, aquilo que designámos por inteligência é uma característica específica, valorizável em certos contextos mas desprezível noutros.
Descobrimos, habitualmente por experiência própria, que aquelas criatuas muito doutas que citam os clássicos sabem sempre quem disse o quê, quando e a que propósito patinam na resolução de problemas triviais e quotidianos. Que o «crânio» que brinca com os números como se fossem simples e fáceis emperra em algumas habilidades sociais que diríamos básicas. Que o escritor laureado ou o artista plástico cotado distinguem-se tanto pelas suas produções quanto se tornam invisíveis ou desinteressantes nos seus juízos e nas suas acções sobre o mundo que os cerca. Que o líder carismático que empola massas em discursos fluentes e inflamados funciona na intimidade como uma criança mimada ou insegura. Que escapar a um pormenor de excepcionalidade atribuível à tal da inteligência, mantendo alegria, boa disposição, senso comum e capacidade de envolvimento com os outros, é tão rara que fica por validar se é assim tão bom ser especialmente inteligente.
Por todas essas coisas que se aprendem, lentamente, umas ao longo da história da humanidade, outras ao longo das nossas próprias vidas, é que é importante ir dizendo aquilo que o Jay Gould explicou tão bem: que a inteligência não é a medida dos homens."


Isabel Leal in «Notícias Magazine».

sexta-feira, 12 de junho de 2009

O quadrado, a mulher e o Dragon qualquer coisa em inglês.

Chego a casa cansada e vens-me falar da tua banda desenhada. Estou cansada, não me venhas falar da tua estúpida banda desenhada. Passo-lhe os olhos, para que não digas que nem a isso me presto e folheio sem ver duas ou três páginas, permaneço muda. Não fizeste nada para o jantar e até te liguei a avisar que chegava tarde, que raio andaste tu a fazer? Continuo calada, é como estou melhor - estou cansada, não me venhas explicar o que estiveste a fazer para nem ao jantar te prestares. Tencionas comer? Pois fá-lo tu que eu vou-me deitar, é tarde e não estou para grandes conversas. Espero que o tenhas percebido com o olhar que te atiço como a uma faúlha, continuo calada e nem entro na cozinha - aposto que nem descascaste batatas. Bem me avisaram que estava cega, quando pisei o altar do teu lado. Eras um miúdo encantador e eu uma miúda cega. Cresceste um pacóvio amante apenas da tua estúpida banda desenhada, eu cresci cansada, mulher muda.
Chego tarde a casa, cansada e muda, deito-me no quarto. Apareces-me à porta, seguras um dos teus livros aos quadradinhos, perguntas-me que bicho me mordeu que nem te oiço a contares-me as maravilhas e os poderes do Dragon qualquer coisa em inglês. Responder-te-ia que foste tu, o bicho que me mordeu, mas não me lembro da última vez que me tenhas tocado, com esses teus lábios de miúdo encantador, homem pacóvio. Tencionas discutir? Pois fá-lo sozinho que eu estou-me a deitar, é tarde e não estou para grandes conversas. E diz lá que bicho te mordeu mulher!, quando nem batatas soubeste descascar.
Sou bicho ferrado, mudo, deitado na cama. Desistes e vais ler mais um bocado para a sala grande, a que julguei para os nossos filhos e amigos, a cores que não as da tua estúpida banda desenhada. És quadrado, meu amor, como os dos livrinhos que lês antes de dormir, se é que tu dormes.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Nota mental.

No dia vinte deste mês vou fazer uma fogueirinha nas traseiras da casa com os manuais, os livros de exercícios, as fichas, os cadernos, os apontamentos, a capa da explicação, os enunciados de exame e intermédios, mais caderninhos e livros de outras editoras e tudo que diga «FÍSICA» ou «QUÍMICA» e ai de quem na minha rua ligue o 117 porque estou a praticar um bem comum. Pessoal é-o de certeza! Vou poupar a máquina de calcular porque preciso dela para o exame de dia vinte e três e tenho um irmão que diz que quer ficar com ela para o ano que vem. Esse ano, que nunca mais chega!

terça-feira, 9 de junho de 2009

Fala-me; abisma-me.

Questiono-me se alguém te contou essas coisas que falas. Pergunto-me se te terão dito que eu gosto dessas coisas que falas, para que pense como somos parecidos, enquanto contas essas coisas que falas. Tenho esta mania de divagar, enquanto te escuto. Não é que não te preste atenção, é que sou distraída por natureza. Por natureza, também, sempre gostei de arquitectos, engenheiros. O plano de uma qualquer casa numa folha do tamanho de uma pessoa, enrolado num tubo de guardar tacos de bilhar sempre teve, a meu ver, classe. Qualquer ser que domine essa arte da geometria descritiva tem, a meu ver, um cérebro de louvar. O que foi que disseste agora? Desculpa, estava a pensar como se pega direito num esquadro, o meu cérebro coitado.. Diz? Gostas muito de arquitectura? És louco por arquitectura? Estou a ver.. Questiono-me se alguém te contou essas coisas que falas, que admiro e que nunca te disse eu. Não me vou pôr a divagar, mas a cultura é um ponto muito importante nas relações. Não te disse? Eu acho que é. Uma conversa não tem sumo sem cultura. E depois, que coisas novas traria eu à tua vida se não te contasse o que acho do cinema, do teatro ou do museu do carro eléctrico? Gosto muito, se nunca te disse. És viajado e trazes na pele recordações como recortes, carimbos de uma vida sem fronteiras. Gosto muito de falar sobre o mundo. Uma vez fui a Florença e beijei a arte com o rosto, porque lá toda a brisa é fresca e artística. Vêem-se miúdos a correr e motoretas e pessoas a fazer de conta que são estátuas, pessoas a fazer de conta que são turistas. Pessoas a fazer de conta que são almas gémeas, também, mas mais em Veneza, já não gostei tanto. Fala-me de sítios que tenhas beijado como a um rosto, também. Falas e, sem te dizer, abismo com o quão somos parecidos. Diria que gostas de arquitectas, pessoas que fazem de conta que são estátuas e pessoas que fazem de conta que são almas gémeas. Podíamos sê-lo, também. Penso muito nisso, divagando enquanto me falas. Não é que não te preste atenção, gosto muito de te ouvir. Trazes sumo à minha vida, como um carimbo na minha pele, mas tenho esta mania de divagar enquanto te escuto. É que sou distraída por natureza e nunca tinha conhecido, beijado como a um rosto, alguém capaz de falar por mim. É isso, falas por mim e questiono-me se alguém te contou essas coisas que falas e que admiro, venero e gosto muito. Talvez para que pense como somos parecidos, porque o somos. Talvez a Joana, penso.

Surpresa!

Oi, como assim, exames nacionais para a semana?!
Numa outra vida fui louca e boémia.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Saudade muda.

Quero sentar-me contigo, no café do costume, pedir água das pedras que odeio e que tu não, o meu café forte e comprido, por favor. O rapazinho, o do café do costume, vai sorrir porque a nossa presença é já habitual, confortavelmente habitual. Vai trazer-nos as bebidas, perguntar se precisamos de mais alguma coisa e já não o ouvimos porque estamos entretidas em conversas paralelas. Vai sorrir porque é já hábito que não lhe respondamos, estamos a pôr em ordem e dia as conversas paralelas da semana - oh, confortável hábito. Vai voltar para o balcão, pegar num pano cor de parede e limpar pires enquanto admira as duas amigas faladoras. O café costuma ser calado, só na zona de fumadores tem mais alarido e de vez em quando um desastrado parte um copo aqui ou além. Limpam-se os cacos, pedem-se desculpas e diz-se que não tem mal, porque aquele é o único alarido que o café conhece, habitualmente calado, até chegar a sexta-feira e, com ela, as duas amigas que se sentam sempre perto da porta, onde há claridade e luz. Pedem água das pedras e um café, de vez em quando um bolo para a mais gulosa das duas, dão as mãos e falam alto. Conversas paralelas dançam no café, ouvem-se na rua onde a multidão canta hinos próprios, seus. Podia-se imaginar como se conheceram. Talvez num comboio pelo estrangeiro, duas portuguesas que se cruzam e fazem pactos de sangue, de uma vida. Quem sabe se num bar, dançando solteiras e de braços no ar, saltando como só elas gostam de saltar. Dir-se-ia que se conhecem há muito, talvez sejam amigas de infância, desde nascença, primas até podem ser.
Uma é alta, a outra mais baixa e mais larga. Riem-se distintamente, um riso alto que faz fechar-lhe os olhos e darem a mão. Uma tem um cabelo liso um tanto hollywoodesco, um ar felino nas pestanas grandes e nos tons escuros do olhos. A outra, que lhe dá a mão e lhe fala alto, tem o cabelo em cachos não se percebe bem de que cor, lembra um gato malhado. Orgulham-se do que falam, do que contam e discutem, entretidas em conversas paralelas, água das pedras e um café forte e comprido. Dão a mão e, sob o olhar atento do rapazinho do café do costume, que limpa pires com um pano cor de parede, orgulham-se do que sentem. Não explicam porque nem precisam, tão-pouco o dizem.

Passam-se semanas, meses longos. O rapazinho do café do costume é chamado à zona de fumadores porque se partiu um copo, desculpe mas ele é um descuidado. Não tem mal, não tem mal, limpam-se cacos do chão ferido. Passa a esfregona e o café parece emudecer. Calar-se-á, há quanto não se ouve aqui um riso alto, hoje até é sexta-feira. Olha, de relance, para a mesa perto da porta. Há luz e claridade e um casal beberica uma meia de leite. Sorri, nostálgico, lembrando a mistura que costumava levar, confortável hábito, de água das pedras e um café forte, comprido como mandava o pedido, por favor. Não sabe o que é feito das duas amigas. Talvez tenham partido num comboio pelo estrangeiro, berrem ao vento os vícios que esqueceram, uma de bolo na mão e a outra queixando-se que não gosta de chocolate. Quem sabe se não foram cumprir pactos de sangue, de uma vida ou por bares procuraram namoros, acasos encontros felizes. Dir-se-ia que podem até viver juntas agora, na volta até eram irmãs e não primas e mudaram-se para o sul que por lá o tempo está de bom grado. Será que ainda dão a mão, cumprimentando a multidão com um riso alto? Devem continuar orgulhosas do que sentem, disso não duvidará o rapazinho do café do costume.
Passam-se semanas, meses longos. Não partiram num qualquer comboio nem se encontraram em bares com rapazes ou consigo próprias. Não vivem juntas, não são primas sequer. Não deram mais a mão nem explicaram mais o que sentiam. Mas uma delas, aquela mais baixa e larga, que lembra um gato malhado, sim, a tal gulosa, ainda se orgulha do que sente. Tem saudades da amiga que tem como a uma irmã e do seu ar felino hollywoodesco, das suas grandes pestanas e dos seus olhos a fugir para o escuro. Principalmente, tem saudades das sextas-feiras confortavelmente habituais, falando e rindo hinos próprios, seus. Di-lo ainda, de si para si.

domingo, 7 de junho de 2009

O bicho do sono.

Nunca vou ser eu a levar-te o pequeno-almoço à cama, porque eu só durmo, durmo, durmo.


Traz-mo tu.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Adeus secundário, foi um prazer.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Sê gigante, formiga.

terça-feira, 2 de junho de 2009

O pianista.

Sentas-te ao piano, pedes-me que te acompanhe cantando. Vou fingir que não gosto de cantar, clamar que não o sei fazer e que desconheço a música que toques. Vais tocar a que mais gosto, a que me guia os dias em cânticos que me fazem sorrir e cantar também, porque gosto tanto de cantar. Sentas-te ao piano e genuinamente pedes-me que te acompanhe. Dou-te a mão e falo-te em mentiras piedosas, não gosto de cantar e não conheço essa música, a minha preferida. Sorrio.
Vais tocar a que mais gosto e vou apertar a minha mão como se fosse a tua, ocupada em teclas brancas, teclas pretas. Há um poder indescritível em cada som, indizível. Mentiria se dissesse que não me maravilhou e comoveu, como menti dizendo-te que não gosto de cantar e que essas notas, nos teus dedos finos e em danças frenéticas por teclas brancas e pretas, não me guiam os dias em cânticos sorridentes. Pudesse eu parar o tempo que nos foge como fugazes sons, teclas brancas e teclas pretas, esse que me priva de alongar esta tua melodiosa companhia. Guias-me os dias, os sonhos neles, sem to dizer, porque minto e finjo, pousando a mão no teu ombro, já que as tuas estão ocupadas, teclas brancas, teclas pretas. Que o tempo passe e que os teus dedos de pianista bailem sempre coreografias frenéticas, fugaz felicidade a que sorrio, comovida e maravilhada. Embevecida, orgulhosa. Não to digo, porque te minto e finjo, tacanha e piedosamente.
Devo-te um dueto nas devidas condições. Nas genuínas condições, bem entendido. Um em que estarás ao piano, cantando músicas que me guiam os sonhos, os dias neles, e no qual te acompanharei com gosto e alma. Cânticos sorridentes, porque gosto tanto de cantar e gosto tanto de ti.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Eterna infância, Miguel.

Deitada no seu quarto, de barriga para o ar, pensa no que há-de fazer para o jantar. Acabaram-se as batatas ontem, o Miguel não gosta de massa e ovos acha só ter um. Está demasiado cansada para ir até à loja comprar o que lhe falta, dirá que está demasiado ecológica para pegar no carro e demasiado velha para ir a pé tão longe. Está velha, pensa, deitada de barriga para o ar, na cama do seu quarto. Talvez faça uma salada, o pequeno ainda tem um bife que sempre alimenta mais que meia dúzia de folhas de alface e logo com quem, que torce nariz a tudo que seja verde e esteja no prato - dir-se-ia demasiado ecológico para digerir plantas precisas à saúde dos Homens. Ri-se, deitada de barriga para o ar, pensando no pequeno ser que reteve como a uma prenda no seu ventre, contando nove meses como quem espera um aniversário. O que viria a ser o do Miguel, ainda tão pequeno. Esquece-se do jantar e pensa como será possível ganhar-se vontade própria, torcer nariz às saladas e verduras, cansar-se para não pegar no carro e ficar deitada só porque assim lhe apetece, quando foram apenas seres retidos como prendas, em ventres como embrulhos. Ri-se, tolices para se pensar na hora do jantar, está mesmo velha. Qualquer dia falará sozinha, depois de contar vezes infindas às vizinhas e sobrinhas como o seu pequeno Miguel está um bonito galã na faculdade.
Está para se levantar e finalmente decidir a quem vai atribuir o ovo que lhe resta no frigorífico, salada será, um bife para o pequeno, quando ele entra no seu quarto.
- Mamã, estás a dormir?
- Não, a mamã está só a pensar, Miguel.
- Também quero pensar, então.
O pequeno sobe para a cama, deita-se de barriga para o ar na cama da mãe. Sorrindo, ela vai cruzar as mãos e segurar a nuca, cruzar as pernas à frente. Num instante, Miguel imita-a. Rindo, esquece-se do jantar e de que está velha, prenda já cansada e gasta, ser retido em lidas domésticas chatas e aborrecidas.
- Não queiras, meu pequeno. Não queiras pensar.
- Porquê mamã?
- Porque devias ser para sempre criança.
- O que é uma criança?
- És tu Miguel. A mãe é adulta, tu és criança. O pai também é adulto. Aquele teu amigo João também é criança.
- Eu gosto do João.
- Sê sempre criança, Miguel.
- Mãe, porque é que o pai não é criança?
- Porque cresceu, como a mãe.
- Mas a mãe é adulta, o pai é criança.
- Porquê Miguel?
- A mãe faz o jantar.
Há uma pausa no quarto, na cama onde mãe e filho se deitam de igual, conversando sem sentido.
- Hoje não.
- Então a mãe hoje é criança.
- Sim, hoje a mãe é criança contigo, Miguel.
Esquece-se do jantar e de que está velha, prenda já cansada e gasta, ser retido em lidas domésticas chatas e aborrecidas e abraça o filho com um carinho infindo. Indizível.
Sorri, hoje é criança e haja quem pense no jantar por ela.



Hoje, somo-lo todos.