Nasci numa sexta-feira quente de 89. A minha avó rezou terços até lhe doer a língua porque só os endiabrados nascem às sextas-feiras, diz. A minha prima diz-me que é endiabrada que baste e nasceu numa terça, enquanto a minha avó vaticinava profecias do meu futuro. Confessou à minha mãe que foi, contudo, um bom ano para nascer. Sem perceber nada de astros que não seja reconhecer os pontos do céu como estrelas, a minha avó previa em voz alta, em serões familiares, como a menina ia nascer com a graciosidade dos anos 90 e a tendência para os mil. Vai ser uma acelerada, a rapariga. Riam-se muito, diziam que a avó dizia coisas disparatas.
Quando toda a gente viu o meu cabelo nascer fino e liso, a minha avó avisava que viriam, na sua época, cachos de caracóis como de uvas, fortes e frescos, soltos e grandes. Uvas sumarentas que haveriam de povoar o fino cabelo liso da menina e ninguém lhe deu ouvidos. Fiz seis anos e o cabelo deixou de ser tão liso, ou tão fino, povoavam-me a cabeça uvas gordas, uvas soltas, fortes e frescas. Cachos na nuca e a minha avó sentada na sua cadeira de baloiço acenando afirmativamente. Juntava as mãos como se rezando, contando às vizinhas, até lhe doer a língua, que tivera um diabrete de neta. Não me deixava comer pão e nos meus ingénuos seis anos fui incapaz de perceber o que ela quis dizer com senhoras que atacam no pão fazem-no para esconder males maiores que a fome. Não tenho nenhum buraco na alma e continuo a ter queda para o pão, catorze anos depois disso.
Endiabrada e nascida a uma sexta-feira quente de 89, costumava levar muitos raspanetes da minha mãe quando saíamos de casa. Mãos nos bolsos e pés no chão, dizia-me, quando entravamos em lojas com jarras de vidro, mesas espelhadas ou apetrechos frágeis. Olhavam-me de soslaio, diziam que a miúda era um diabrete e não me dava jeito nenhum andar com as mãos nos bolsos, os cotovelos espetavam-se para os lados e faziam-me facilmente perder o equilíbrio. Apesar da vigilância apertada da minha mãe parti sempre qualquer jarra de vidro, qualquer mesa espelhada, qualquer apetrecho frágil, numa qualquer loja em que entrássemos. Diziam que a miúda era um diabrete e a minha mãe cerrava-me o olhar como quando me apanhava a comer pão às escondidas do pai, que tinha medo que eu me entalasse com tanto miolo e tão poucos dentes e fossemos todos de urgências para o hospital porque a menina não respira!.
Uma chuvosa noite de Novembro de 90 e coisa, já o meu irmão berrava os seus recém-nascidos pulmões horas a fio, o tecto da casa na Circunvalação cedeu e vi o céu com os meus pequenos olhos cor de avelã. Sempre tive pena de não herdar os olhos azuis de cinema do meu avô, essa coisa dos genes é traiçoeira como um telhado de vidro. O meu cedeu, choveu-me na cama, nos caracóis como em cachos de uvas, e não chamei a mamã porque não quis que a avó dissesse que foi Demo para me castigar, ou Cristo para me benzer. Mudámos de casa pouco depois, para um apartamento onde a tijoleira do chão explodia a cada dez dias e onde rebentou uma guerra entre condomínio e residentes até se ouvirem tiros e a polícia interrogar um grupo de miúdos que jogava à bola nas traseiras. O senhor agente perguntou a um menino cuja face lembrava uma bolacha se sabia quem tinha a pistola. O menino respondeu que só tinha um arco e duas flechas de penas e já velhos, porque uma vez a irmã, que tem os olhos cor de avelã e caracóis fortes e gordos, certo Carnaval, vestiu-se de Pocahontas, mas que o Miguel tinha duas pistolas porque fora de Cowboy. Contou ao senhor agente, do alto da sua sabedoria de quem tem sete anos, e em segredo, que achava que a irmã gostava de casar com o Miguel. O senhor agente coçou a testa, perguntava-se porque não tinha ficado com o turno da noite. A minha avó não ousou dizer que anteviu tudo, mas todos lho soubemos ler no acenar afirmativo, enquanto juntava as mãos como se rezando. Certo dia, descansados os ânimos na vizinhança, perguntei à minha avó como podia ver o futuro como ela. Não ousou explicar-me, disse-me só que nascera em mim a magia no dia em que brotaram uvas do meu fino cabelo liso. Sorri, a avó sempre disse coisas que não percebera - estaria a falar dos ataques de asma que perdi subitamente, como que por magia, aos seis?
Liga-me todos os anos para me felicitar pelo aniversário, conta-me como me viu nascer diabrete e crescer uma senhora, diz até que sou a única da família que sabe ter postura de realeza no andar e às refeições e rio-me muito, a avó sempre disse coisas disparatas. Diverte-me vê-la empenhada nas suas profecias, entusiasmada com o meu futuro e as minhas possibilidades. Sim, para a minha avó é bem provável que eu fuja de casa e me case com um músico aluado da Europa culta porque, nascida numa sexta-feira quente de 89, tenho o diabo no corpo e tendência para a aceleração.
Hoje foi a primeira a telefonar, Parabéns diabrete.
Sorrio, a minha avó sempre me fez sonhar, tivesse eu a idade que fosse.
Endiabrada e nascida a uma sexta-feira quente de 89, costumava levar muitos raspanetes da minha mãe quando saíamos de casa. Mãos nos bolsos e pés no chão, dizia-me, quando entravamos em lojas com jarras de vidro, mesas espelhadas ou apetrechos frágeis. Olhavam-me de soslaio, diziam que a miúda era um diabrete e não me dava jeito nenhum andar com as mãos nos bolsos, os cotovelos espetavam-se para os lados e faziam-me facilmente perder o equilíbrio. Apesar da vigilância apertada da minha mãe parti sempre qualquer jarra de vidro, qualquer mesa espelhada, qualquer apetrecho frágil, numa qualquer loja em que entrássemos. Diziam que a miúda era um diabrete e a minha mãe cerrava-me o olhar como quando me apanhava a comer pão às escondidas do pai, que tinha medo que eu me entalasse com tanto miolo e tão poucos dentes e fossemos todos de urgências para o hospital porque a menina não respira!.
Uma chuvosa noite de Novembro de 90 e coisa, já o meu irmão berrava os seus recém-nascidos pulmões horas a fio, o tecto da casa na Circunvalação cedeu e vi o céu com os meus pequenos olhos cor de avelã. Sempre tive pena de não herdar os olhos azuis de cinema do meu avô, essa coisa dos genes é traiçoeira como um telhado de vidro. O meu cedeu, choveu-me na cama, nos caracóis como em cachos de uvas, e não chamei a mamã porque não quis que a avó dissesse que foi Demo para me castigar, ou Cristo para me benzer. Mudámos de casa pouco depois, para um apartamento onde a tijoleira do chão explodia a cada dez dias e onde rebentou uma guerra entre condomínio e residentes até se ouvirem tiros e a polícia interrogar um grupo de miúdos que jogava à bola nas traseiras. O senhor agente perguntou a um menino cuja face lembrava uma bolacha se sabia quem tinha a pistola. O menino respondeu que só tinha um arco e duas flechas de penas e já velhos, porque uma vez a irmã, que tem os olhos cor de avelã e caracóis fortes e gordos, certo Carnaval, vestiu-se de Pocahontas, mas que o Miguel tinha duas pistolas porque fora de Cowboy. Contou ao senhor agente, do alto da sua sabedoria de quem tem sete anos, e em segredo, que achava que a irmã gostava de casar com o Miguel. O senhor agente coçou a testa, perguntava-se porque não tinha ficado com o turno da noite. A minha avó não ousou dizer que anteviu tudo, mas todos lho soubemos ler no acenar afirmativo, enquanto juntava as mãos como se rezando. Certo dia, descansados os ânimos na vizinhança, perguntei à minha avó como podia ver o futuro como ela. Não ousou explicar-me, disse-me só que nascera em mim a magia no dia em que brotaram uvas do meu fino cabelo liso. Sorri, a avó sempre disse coisas que não percebera - estaria a falar dos ataques de asma que perdi subitamente, como que por magia, aos seis?
Liga-me todos os anos para me felicitar pelo aniversário, conta-me como me viu nascer diabrete e crescer uma senhora, diz até que sou a única da família que sabe ter postura de realeza no andar e às refeições e rio-me muito, a avó sempre disse coisas disparatas. Diverte-me vê-la empenhada nas suas profecias, entusiasmada com o meu futuro e as minhas possibilidades. Sim, para a minha avó é bem provável que eu fuja de casa e me case com um músico aluado da Europa culta porque, nascida numa sexta-feira quente de 89, tenho o diabo no corpo e tendência para a aceleração.
Hoje foi a primeira a telefonar, Parabéns diabrete.
Sorrio, a minha avó sempre me fez sonhar, tivesse eu a idade que fosse.