quarta-feira, 23 de maio de 2018

O Relógio e o Verme

Hoje, do meu pensamento desabrochou um rio de palavras. E do sono leve, um mau tempo de sentimentos. Dormi o castigo do mortalidade e vi o relógio que guarda o verme que cresce ávido no vazio dos ponteiros, para um dia se tornar em traça de asas felpudas, sair do relógio e habitar o meu coração podre.

Tic-tac Tic-tac.

Sonhei também acordado que a morte os levara e eu desamparado teria então de tomar conta da minha pupa, sozinho; com um medo que persegue alimentado pela solidão sombria que cresce com a idade, fazendo sombra nos lugares onde nunca pensamos faltar luz. E a solidão era profunda e quanto mais se adensava maior cresciam os medos velhos, as loucuras, as manias e as obsessões.

Tic-tac Tic-tac.

Tornamo-nos então em espectros dançantes ao som de um longo Requiem sem esperança de ter um novo andamento. Tocamos a peça a ritmo lento, para não acabar, mas vamos cometendo mais e mais erros nos compassos e nas cadências. Decadências. É o mistério da lagarta e da traça. Do relógio e seu espaço entre os ponteiros. Saber viver com ela sem que nos coma todo o espaço das horas com menos medo. Abro olhos para não adormecer, pois sinto que a largata se torna verme ávido pela noite, quando não estou atento. 

Estou na Holanda e tenho pais. Foi um sonho; acordado. E eles têm relógios e espaço entre os ponteiros. 


Tic-tac Tic-tac.

Tic-tac Tic-tac.

Tic-tac

Tic...

terça-feira, 28 de junho de 2016

Saudade, talvez

Seria mentira dizer que o sopro da vida me abandonou,
que o verde do jardim enfraqueceu depois das nossas Primaveras,
ou que o mar já não é salgado pelas lágrimas que verti nele em desespero de ti.
Mas eu sei que o meu sorriso nunca mais foi o mesmo.
Provavelmente estará também com o meu calmo sono
, que hoje, pouco ou nada me visita.

Tal como em qualquer inverno me pergunto se a Primavera virá,
pergunto-me também se algum dia virás devolver-me aqueles anos.
Talvez, de facto, sejamos como 
Psyche e Cupido,
ou talvez não, pois nem sequer coragem de aceder a vela tenho.

Desde então
, apenas vagueio dentro de mim mesmo.
Mais um ano e outro insuportável Outono que passa.
Pelo menos antes tinha algo para festejar para além dos (teus) tons castanhos.
Agora só as nuvens me acompanham
, chorando por mim.

Seria tolo dizer que ainda te amo, pois o amor não é eterno
Mas seria ainda mais tolo dizer que já não sinto amor.
Talvez o que queria dizer é que tenho saudades tuas.
Se não tivesse cosido a boca, dir-te-ia, com um sorriso.
Mas a vida obriga-me a sussurrar e eu sei que não ouvirás.

Despeço-me, com um sorriso.

quinta-feira, 21 de abril de 2016

To my grandmother

It was when she died that finally I realize that distance is a mere illusion created inside ourselves. One that is as painful as feeling that death is an end. I came across with this feeling while facing death, not mine but of hers. The night she died I was sleeping in the expectation of seeing her the day after to say a last good goodbye. It was in this wondrous world of dreams, where life sometimes seems more realistic than real life that I dreamed of her.  We were at Gerês, a lovely protected forest in the North of Portugal. A dearest place in my heart that made part of my childhood and stayed in my heart so fiercely that today I still feel the need to go there at least twice a year. Gerês has relatively big mountains where small rivers are born from the peaks, descending in dazzling waterfalls of pure nature power. When I go to the waterfalls there is always a fair climbing protocol that must be followed. My grandmother was climbing the path towards the waterfall when I said “Grandma, I came from the Netherlands to visit you and seeing how you were. I thought you were weak in the hospital.”. She replied “give me a hand in this rock so I can climb. Don’t you worry. You know them, always worried…I’m fine”. The day after I was in my office in the Netherlands while leaving a meeting that finally I read in my phone a message from my mother saying that she has died. Now at last I see that distance  is not dependent of geographical position but rather of how far a heart is from another. I know now that she wanted herself to also say goodbye to me and that if dreams that are the other face of the world as we see it might not mean anything, I would say that for me would be hard to believe in that. I truly think that we can be with each other only by the longing feeling of missing someone or wishing to be with that someone. Once in a while I guess I’ll be able to see the waterfalls again with her as I still have been travelling a lot overnight with my other grandfather and through this cosmic experiences as distant as they might be, I’m still very close to them and so I’ll continue to be. And I know that for both of them, a rock in the way would never be a stop, but rather an adventure.


21.4.16

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

É com a morte que me lembro da vida

Apenas me lembro vivo quando sou assolado pelas foices da morte. Consigo-me então lembrar da minha existência e, mais ainda, da minha consistência orgânica, ditada pelas regras biológicas de um principio e um fim. Lembro-me que pouco mais sou que um fluido comprimido entre barreiras de osso, musculo e pele numa organização que ainda hoje faz maravilhar qualquer curioso pela sua harmonia e fluidez. Um liquido em transformação constante, revolto no seu interior, que mantém a outra parte não material que somos nós ou aquilo que é a nossa consciência. É com a morte que me lembro que o tão perfeito sistema foi desenhado para falhar um dia. Que a vida é um janela aberta num dia de verão, mas que deve ser fechada ao cair da noite para evitar o esfriar do anoitecer.

O meu avô costumava dizer que “andamos aqui a arrastar a carcaça”. Pois se de facto nos tornamos ilimitados pela nossa mente, somos ainda dependentes desta matéria que nos foi emprestada com um prazo de validade do qual não sabemos adivinhar e com o qual não podemos contar. Uma eternal dúvida se de facto um fim é um fim, ou se um fim é um inicio, tal como o Outono nos leva as folhas para mais tarde nos recompensar com outras cores em tempos mais primaveris. Se pelo menos pudéssemos fazer planos calculados Segundo o dia em que fica então terminada, pergunto-me como seria então a vida. Aliás, pergunto-me agora se, mesmo não sabendo, como devo planear a minha vida se os seus fios são tão frágeis como as sementes de dente-de-leão, mas no entanto nos agarram tão fortemente à terra pelas raízes mais fortes de uma árvore que parece tão frágil.

Dizem que a morte é apenas mais uma etapa desta viagem. Se assim o é, devo dizer que desconheço o seu destino e começo a duvidar de que malas hei-de levar. E se o destino é o nada, então qual o propósito de sequer as fazer? No fundo será como partir num comboio sem destino, sem saber as paragens e chegar ao final da linha sem saber, com malas vazias, pois já não lembramos, nem sabemos lembrar o que nelas havia. Se assim for, a morte é injusta, mas pior ainda será a vida que nos mostrou a sua beleza para que no fim nem sequer sejamos capazes de a lembrar. Uma fugaz visão da luz, como o homem da caverna que certamente depois de ver a Luz, nunca mais se contentará com a sombra.


Nas manhas de verão, voltamos a abrir a janela para deixar entrar o Sol que nasce de manha, na esperança que nos aqueça o coração esfriado pela geada. Talvez neste fugaz intervalo entre o amanhecer e anoitecer possamos ver as Luzes que pelo mundo brilham. E que neste incessante pulsar dos dias fique sempre a esperança de uma Primavera no fim de um Inverno rigoroso.

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Falsas memórias

Quantos jogos de verdade e mentira fazemos, tal e qual como um jogo de xadrez connosco próprios, para nos cegarmos de uma verdade mais difícil de acreditar? 

Será que podemos dominar racionalmente o coração? Somos senhores da nossa razão, soberana sobre os sentimentos que nos assolam e nos consomem num crescendo de agonia e pavor face à impotência de sermos incapazes de domar esse tão selvagem animal que facilmente se desprende das correntes da racionalidade que tão bem arquitectadas foram? 

Ficamos eternamente presos aos prazeres que outrora sentimentos, de tal forma encruzilhados numa teia sem fim de sentimentos, agarrados à nossa memória por raízes mais fortes que centenárias árvores que testemunharam o passar dos tempos pacientemente percorrendo todas as primaveras e invernos, das mais belas aos mais rigorosos, respectivamente, que parece já não sabermos o sabor destes. Passamos a associar os tão estimados prazeres às memórias daquela pessoa, ou daquele tempo em que a Luz era mais clara e a Escuridão menos arrebatadora. Porque o amor tem o poder de nos fazer ver este mundo com mais ânimo, que por vezes se apresenta tão desfocado e desprovido de cor, que a ideia de o vivermos todos os dias nesta solidão de alma é mais aterradora que a própria morte. 

É então que mergulho no ridículo de pensar de mim para mim naquela rua, naquela roda-gigante, naquela música sem sequer ter oportunidade de prender de novo o indomável animal que teima em se escapar por entre os interstícios de mim mesmo. O amor é um vírus que nos consome os nutrientes na sua fase proliferativa, deixando-nos embriagados num febre temporária, até esta desaparecer e ficarem os resquícios dos seus competentes e finalmente cair na dormência, ou seja, sem nunca sair do nosso corpo. De tempos em tempos, como um vulcão pensado extinto, volta para nos assombrar o sistema imunitário. 

No entanto, após visitar lugares que se cristalizaram na minha mente como sagrados e grandes pedaços de um sentimento, igual àquele amigo que não desejo rever, apercebo-me que já não são os mesmos. Que os mesmo lugares são agora outros disponíveis a novas memórias e que o que, tal como no famoso cemitério dos famosos, o Père-Lachaise,  onde já não se encontram as pessoas, mas sim um pedaço quase invisível do que elas foram, chega-se à conclusão que a ansiedade de reencontrar estes lugares rapidamente se apaga com um sopro como a chama de uma vela ao dormer. E, na verdade, tal como a ansiosa espera de sentirmos algo com as campas daqueles que admirados, sentimentos nestes locais outrora cristalizados exactamente isso, nada. E hoje esses mesmos sentimentos que se apresentavam como os próprio Atlas do nosso parasita sentimental, da nossa obsessão pelo um passado que foi perfeito, são hoje apenas túmulos, estátuas, raízes e pedaços de pedra abandonados num lugar que já não é o mesmo. Fico aliviado por saber que o tempo, tal como a Justiça, tem os olhos vendados, castigando imparcialmente. Consigo ver as cicatrizes que carrego na cara desses sentimentos que tão estimáva e penso: quando é que eu me dediquei a amar tanto isto? Afinal, de facto, o amor e os seus sentimentos são passagens regularmente acompanhadas de delírios da nossa percepção, fotografias tiradas com os olhos durante uma viagem de comboio em que os pormenores se apresentam indistintos e desfocados pela velocidade da viagem. Voltando atrás aquele tempo vejo o quão ignorante era e isso faz-me lembrar duas coisas: o quanto cresci e me expandi como um gás compresso numa pequena botija e quanta ignorância tenho ainda a perder até ao fim da minha vida. Ai que vontade de ver todos os pores do Sol, de acompanhar o principezinho na sua viagem pelos planetas e poder sentar-me e levanter-me para ir vendo um constante pôr do sol no seu planeta. Que liberdade!

sábado, 8 de agosto de 2015

De um lado para o outro.

Enquanto finjo ser um malabarista do meu próprio corpo numa viagem oscilante entre dois carris de ferro presos ao chão questiono me sobre a vida de quem me faz companhia. Cada um de nós leva consigo uma série de bagagens intermináveis que talvez possam passar despercebidas num primeiro olhar mas que facilmente fluem até nós como água num milagre osmotico de sentimentos e sensações escritos num código tão antigo quanto a nossa espécie.

Esta bagagem pessoal prende se na cor da pele das crianças negras que se sentam ao meu lado, com o seu cabelo encaracolado e as suas caras curiosas, cheias de vida e verdadeira felicidade. Aquela ingénua de quando nada se sabe porque pouco se viu ou pouco se soube ainda. E assim se vão divertindo a tirar fotos a si próprios com caras de tigre ou leão enquanto o pai, livre como todos os outros passageiros, carrega ao pescoço uma corrente de elos metálicos que outrora poderiam ter outro significado mas hoje é apenas um adereço da Dolce&Gabbana, aproveita o lugar sentado para dormitar. Enquanto me distraio pela trepidação vejo uma idosa, sentada duas cadeiras à frente, que veste umas roupas largas e soltas com padrões orientais. Poder-se-ia dizer que sobre ela se abate todo o cansaço de uma vida. Por detrás dos seus óculos elípticos existe um peso que faz tombar os seus olhos intervalado pelo esforço inútil de os manter abertos e desportos ao mundo. O peso vence mesmo sob o burburinho atrevido que se faz sentir na carruagem. E nem mesmo o som das crianças atrás parece ter efeito perante o embale da viagem. No entanto, nem o entardecer do dia, com as suas cores mais quentes reflectidas nas paisagens bucólicas que intercalam uma civilização da outra, nem o cansaço físico que finalmente encontra descanso nos estofos azul-turquesa do comboio parecem vencer a senhora de cabelo cor de trigo que se encontra justamente sentada ao lado da personificação do sono. Pelo contrário esta leve senhora, claramente uma turista, mas não de longe já que fala francês fluentemente, traz vestido um calção branco curto com uma camisa às riscas azuis e brancas. Tão profundamente posta em si mesma quase sobre um código de estritas regras, são poucos os músculos da sua face que se mexem face ao ambiente irrequieto que agora se faz sentir ou tudo o resto que esta viagem proporciona. Delicio me com a sua calma inviolável e a sua simplicidade tão complexa que lhe fez escolher uma pulseira de pedras azuis e transparentes que combinam com os seus olhos azuis safira, também estes cansados mas de uma forma diferente da sua vizinha.

Pergunto o que pensarão eles de mim enquanto penso neles e em todos os outros que já entraram e já saíram. Sempre associei viagens de comboio à própria vida. Fico aqui a assistir a entrada e saída das pessoas sendo tocado por elas por laços invisíveis tornando me eternamente ligado por frágeis fios de seda. Afinal de contas que poderá ser a vida senão mesmo uma viagem de várias cores e sentimentos. Um cruzar de vezes, com reencontros esporádicos. Uma viagem de várias paragens em que todos sabemos o início e o destino, sem saber o percurso, mas sempre com a certeza de poder apreciar quem viaja connosco e quem nos gentilmente oferece sorrisos sem esperar nada em troca. Não tarda nada já saímos na última estação.

terça-feira, 21 de julho de 2015

Talvez morrer seja devolver algo que pedimos por empréstimo.

Por vezes acredito que só consigo ser feliz quando estou triste. Talvez assim faça sentido esta dualidade de forças contrárias, outrora explicadas na física e as suas leis. Se existe uma força, existe outra contrária. Os momentos mais felizes quase sempre são resultado da ausência da infelicidade. Tal como a saúde é um estado transitório da doença, como dizia o meu Avô. Engraçado como parece que andamos todos a fazer coisas contrárias àquelas que queremos ou mesmo cultivar imagens de nós próprios que não são aquelas com as quais nos identificamos ou queremos que sejam reconhecidas pelos outros.

Tal como quando duas forças de sentidos contrários se anulam quando os seus valores se igualam, também nós parecemos não nos movermos no espaço e no tempo, presos num referencial, numa translação estática, sem sentido, perdidos pela falta de moção. Num jogo de forças neuronais, qual vence? Serei puxado para um dos lados ou simplesmente flutuo pelas minhas memórias, estagnado, gravitando entre as lembranças, num país que já não aparece nos mapas e que figura apenas em livros de História?

Sempre lamentarei a vitória só corpo sobre a minha mente, ou da minha mente sobre o meu corpo. Ainda não sei distinguir. Talvez de facto aqui gostasse que a força resultante foça nula e que a soma dos meus pensamentos fosse igual a subtracção da minha componente orgânica, à qual todos nos achamos dependentes até ao fim da sua função. Ora aqui fica evidente que o corpo ganha este jogo de regras subtis, uma vez que toma decisão sobre o seu fim, mesmo que a mente não tenha encontrado em si o mesmo destino, a mesma decisão de término. Ou talvez será de facto a mente que, ao se enrolar em si própria num novelo sem pontas, acaba por dar vários nós ao corpo que gentilmente os vai tentado aceitar e resolver, talvez mesmo se adaptar até já não haver solução.


Acredito mesmo que somos invariavelmente a resultante de todas estas forças e que elas não se aplicam a nós, como a tudo o que envolve. E que por cada acção que praticamos, um outra é desencadeada numa cascata de acontecimentos que pouco ou nada somos capazes de prever. Tão fácil como saber que por cada semente que plantamos, mais oxigénio do qual somos dependentes estará mais disponível. Talvez morrer seja apenas devolver algo que pedimos por empréstimo.