Vivemos um período em que a condição humana passa por profundas transformações. O homem moderno vem perdendo progressivamente a sua compreensão dos valores e o seu senso de proporções. Essa inaptidão para entender realidades essenciais é extremamente séria, levando de modo infalível à violação das leis fundamentais do equilíbrio humano. No domínio da música, as consequências desse equívoco são as seguintes: por um lado, existe a tendência de afastar o espírito do que chamarei de alta matemática da música, de modo a degradá-la a uma utilização servil, de vulgarizá-la adaptando-a às exigências de um utilitarismo elementar - como logo veremos ao examinar a música soviética. Por outro lado, como o próprio espírito está enfermo, a música de nosso tempo, especialmente a música que advém de si mesma e que se crê pura, traz com ela os sintomas de um defeito patológico, e espalha os germes de um novo pecado original. (...)
Vamos lembrar o que está escrito: Spiritus ubi vult spirat (São João 3:8); "O espírito sopra onde quer". O que é preciso reter nessa proposição é sobretudo a palavra QUER. O espírito está, assim, dotado da capacidade de querer. O princípio da volição especulativa é um fato.
Ora, é justamente esse fato que se pretende agora contestar. As pessoas questionam a direção que o vento do Espírito está tomando, não a correção do trabalho do artista. Assim fazendo, sejam quais forem os seus sentimentos para com a ontologia, sejam quais forem as filosofias e as crenças que abracem, vocês devem admitir que estão realizando um ataque à própria liberdade do espírito - quer vocês escrevam essa grande palavra com letra maiúscula ou não. (...)
Seria bom observar que nunca há qualquer discussão quando o ouvinte extrai prazer da obra que está ouvindo. O menos informado dos melômanos apega-se de bom grado à periferia de uma obra; ela lhe agrada por motivos que, na maioria das vezes, são totalmente alheios à essência da música. Esse prazer lhe basta, e não demanda qualquer explicação. Mas caso aconteça de a música lhe causar desprazer, nosso melômano lhe pedirá uma explicação para o seu desconforto. Pedirá que expliquemos algo que é, em sua essência, inefável.
Pelo fruto nós julgamos a árvore. Julguem, então, a árvore por seus frutos, e ignorem as raízes. A função justifica o órgão, por estranho que o órgão possa parecer aos olhos dos que não estão acostumados a vê-lo funcionar. Os círculos esnobes estão recheados de pessoas que, como um dos personagens de Montesquieu, se admiram de que alguém possa ser persa. Eles sempre me fazem pensar na história do camponês que, vendo um dromedário no zoológico pela primeira vez, examina-o cuidadosamente, balança a cabeça e, já a ponto de sair, diz, para grande diversão dos presentes: "Não é verdadeiro".
É assim, através do pleno exercício de suas funções, que uma obra se revela e se justifica. Estamos livres para aceitar ou rejeitar esse exercício, mas ninguém tem o direito de questionar o fato de sua existência.
Igor Stravinsky, Poética Musical (em 6 Lições), Jorge Zahar, 1996; cap. 3, A Composição da Música.
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