Friday, April 30, 2010


















Comecei a fumar para te pedir lume.
Para arranjar um motivo. Para.
Tens lume? Perguntei-te.
Sim. Disseste. Levaste a mão ao bolso.
Engatilhaste o zippo. Todo prateado.
Abeiraste-te e fizeste concha com a mão direita.
Eras canhoto, como o coração.
Agora. Disseste.
E levei o cigarro até à chama.
Já está. E sorriste.
Importas-te que te acompanhe? Perguntaste.
Não, claro que não. Claro que não.
Está frio. Disseste. E esfregaste as mãos.
O cigarro sempre aquece.
Sim. Tossi.
Estás bem? Perguntaste.
Estou muito bem.
Óptimo. Disseste. E sorriste.
Aquele café além é acolhedor. Não tomas nada?
Um chá fazia bem à tosse. Perguntaste. E disseste.
Sim, um chá calhava bem. Estava mesmo a apetecer-me.
Parece que adivinhei. Disseste. E aí sorri eu.
Tomámos chá e de imediato fizemos planos de vida
Que correram mal, imediatamente mal.


Comecei a fumar para te pedir lume.
Para passar o frio.
Descobri que não viria a morrer
Nem de cancro pulmonar, nem de amor,
mas da própria morte, mal o lume se apagou
e o café fechou as portas. Para sempre.

Ana Salomé → via O Cicio de Salomé, 21 de Janeiro de 2009


***

A Música Que Toca Sem Parar:

Renato Braz canta O Amor, poema de Vladimir Maiakovski , musicado por Caetano Veloso e Ney Costa Santos.


Talvez quem sabe, um dia
por uma alameda do zoológico
ela também chegará
ela que também amava os animais
entrará sorridente assim como está
na foto sobre a mesa
ela é tão bonita
ela é tão bonita que na certa eles a ressuscitarão

o século trinta vencerá
o coração destroçado já
pelas mesquinharias
agora vamos alcançar
tudo o que não podemos amar na vida
com o estrelar das noites inumeráveis

ressuscita-me
ainda que mais não seja
porque sou poeta
e ansiava o futuro

ressuscita-me
lutando contra as misérias do quotidiano
ressuscita-me por isso

ressuscita-me
quero acabar de viver o que me cabe
minha vida para que não mais existam amores servis

ressuscita-me
para que a partir de hoje a partir de hoje
a família se transforme

e o pai seja pelo menos o universo
e a mãe seja no mínimo a terra
a terra
a terra

Thursday, April 29, 2010

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Esta semana, excepcionalmente, estarei publicando neste espaço a crônica de um outro autor.
Fernando Sabino foi para mim, muito mais que um conterrâneo fazendo e ganhando a vida nas letras.
Ele foi um ponto de referência, um escritor de extremo talento, e um personagem luminoso.
Dele li tudo o que pude ler.
Fui e sou um grande fã.
Durante os anos oitenta ele viveu por algum tempo em Nova York e mais do que uma vez pensei em procurá-lo para uma entrevista.
Não o fiz e hoje me arrependo com alguma amargura.
Tenho que me contentar em ter conhecido parte de sua obra, inventiva, inquietante e cheia de vida.
E tão somente.
De seus escritos fui buscar uma crônica que, ironicamente, se chama “A última crônica”.


A Última Crônica

(Fernando Sabino)



A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever.

A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: “assim eu quereria o meu último poema”. Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.

Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.

Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho — um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular.

A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.

São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: “parabéns pra você, parabéns pra você...” Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura — ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido — vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.

Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.

Texto extraído do livro “A Companheira de Viagem”, Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1965, pág. 174.

****

PS: Antes de morrer, Fernando Sabino pediu que escrevessem em sua lápide a seguinte frase: “Nasci homem, morri menino”.


*


A Música Que Toca Sem Parar:
De Milton nascimento, Bola de Meia, Bola de Gude

Wednesday, April 28, 2010

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"Escuta, escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém - mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?

Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
que vem vindo devagar.

São três, quatro palavras, pouco
mais. Palavras que te quero confiar,
para que não se extinga o seu lume,
o seu lume breve.
Palavras que muito amei,
que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua."


Eugénio de Andrade




A Música Que Toca Sem Parar:
Beto Guedes, dele e de Ronaldo Bastos, Sal da Terra.

Anda!
Quero te dizer nenhum segredo
Falo nesse chão, da nossa casa
Bem que tá na hora de arrumar...

Tempo!
Quero viver mais duzentos anos
Quero não ferir meu semelhante
Nem por isso quero me ferir

Vamos precisar de todo mundo
Prá banir do mundo a opressão
Para construir a vida nova
Vamos precisar de muito amor
A felicidade mora ao lado
E quem não é tolo pode ver...

A paz na Terra, amor
O pé na terra
A paz na Terra, amor
O sal da...

Terra!
És o mais bonito dos planetas
Tão te maltratando por dinheiro
Tu que és a nave nossa irmã

Canta!
Leva tua vida em harmonia
E nos alimenta com seus frutos
Tu que és do homem, a maçã...

Vamos precisar de todo mundo
Um mais um é sempre mais que dois
Prá melhor juntar as nossas forças
É só repartir melhor o pão
Recriar o paraíso agora
Para merecer quem vem depois...

Deixa nascer, o amor
Deixa fluir, o amor
Deixa crescer, o amor
Deixa viver, o amor
O sal da terra

Tuesday, April 27, 2010

O dublê


O dublê é aquele indivíduo que faz as cenas perigosas dos filmes de cinema e televisão.
Acho que toda pessoa deveria ter o direito a um, mocinhos e mocinhas que somos, dos filmes de nossas vidas.
As mulheres, por exemplo, poderiam ter sua dublê naqueles dias do mês.
A dublê sofreria as agruras da TPM e passaria todo o ciclo menstrual no pequeno inferno astral que acomete todas as Penélopes do mundo.
Na gravidez, a dublê seria fundamental.
Enquanto a dublê estivesse engordando, ganhando estrias e tendo desejo de comer doce de jaca às duas da manhã, a mocinha estaria se bronzeando em Bali.
Quando um político tivesse que ir a uma coletiva para explicar um escândalo como o do mensalão, o dublê iria em seu lugar.
O dublê responderia às perguntas irritantes dos jornalistas.
O dublê se constrangeria.
O dublê receberia as vaias na saída.
Enquanto isto, aquele que ele estiver representando poderá estar numa igreja rezando, pedindo perdão a Deus. Ou fazendo mais uma negociata, conforme for a sua vontade.
Ao dublê do goleiro que leva um frango, estariam reservados os apupos.
Ao similar do amante que falha na hora do amor, a frustração, as mãos à cabeça e a obrigatoriedade do bordão "isto nunca me aconteceu antes"...
Ele buscaria a sogra no aeroporto às cinco da manhã. E conviveria com ela pelos próximos cinco meses.
O dublê levaria o pé-no-traseiro, da namorada.
Ele encontraria, na cama, a esposa infiel e seu amante.
Dublê de sujeito casado com mulher feia, ou vice-versa, receberia em dobro.
Vida de dublê não é fácil.
Mas o meu não teria grandes assombrações. Não teria que se atirar de penhascos, saltar de pára-quedas ou participar do capotamento de um veículo durante intensa fuga policial.
Mas seria a ele seguir as recomendações do meu médico.
Ele comeria os vegetais e as frutas diariamente.
Ele caminharia os 5 quilômetros receitados todas as manhãs.
Ele faria a dieta.
Ele ficaria abstêmio.
Enquanto isto, eu estaria em meu bar favorito, comendo picanha, lingüiça, bebendo chope gelado e fumando uns cigarrinhos.
Meu dublê amarraria meus sapatos, todas as manhãs.
Ele faria o tratamento de canal, no dentista.
Ele iria ao proctologista todos os anos, fazer ‘aquele exame’ de rotina.
Afinal, já passei dos quarenta.
Ele me representaria em almoços realizados em restaurantes vegetarianos e beberia cerveja sem álcool.
Ele assistiria todas as derrotas do meu time.
No show de Zezé di Camargo e Luciano em Jaguariúna, imposição de um compromisso profissional meu, ele injetaria breganejo nas veias.
Ele votaria em Lula.
Ele faria aula de dança de salão e saxofone, duas frustrações, dois desejos não realizados por mera preguiça.
A coisa só se complicaria um pouco mais para o lado dele, quando chegasse a minha hora de partir dessa pra uma pior.
Enquanto Ele estivesse prestando contas a Deus pelos pecados que cometi, Eu estaria em casa, largadão no sofá, lendo um livro, ou simplesmente exercitando os dedos no controle remoto da televisão.

Monday, April 26, 2010

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O Poema do Semelhante
(Elisa Lucinda)

O Deus da parecença
que nos costura em igualdade
que nos papel-carboniza
em sentimento
que nos pluraliza
que nos banaliza
por baixo e por dentro,
foi este Deus que deu
destino aos meus versos,


Foi Ele quem arrancou deles
a roupa de indivíduo
e deu-lhes outra de indivíduo
ainda maior, embora mais justa.


Me assusta e acalma
ser portadora de várias almas
de um só som comum eco
ser reverberante
espelho, semelhante
ser a boca
ser a dona da palavra sem dono
de tanto dono que tem.


Esse Deus sabe que alguém é apenas
o singular da palavra multidão
É mundão
todo mundo beija
todo mundo almeja
todo mundo deseja
todo mundo chora
alguns por dentro
alguns por fora
alguém sempre chega
alguém sempre demora.


O Deus que cuida do
não-desperdício dos poetas
deu-me essa festa
de similitude
bateu-me no peito do meu amigo
encostou-me a ele
em atitude de verso beijo e umbigos,
extirpou de mim o exclusivo:
a solidão da bravura
a solidão do medo
a solidão da usura
a solidão da coragem
a solidão da bobagem
a solidão da virtude
a solidão da viagem
a solidão do erro
a solidão do sexo
a solidão do zelo
a solidão do nexo.


O Deus soprador de carmas
deu de eu ser parecida
Aparecida
santa
puta
criança
deu de me fazer
diferente
pra que eu provasse
da alegria
de ser igual a toda gente


Esse Deus deu coletivo
ao meu particular
sem eu nem reclamar
Foi Ele, o Deus da par-essência
O Deus da essência par.


Não fosse a inteligência
da semelhança
seria só o meu amor
seria só a minha dor
bobinha e sem bonança
seria sozinha minha esperança


A Música que Toca Sem Parar:
Elisa Lucinda se recita, O Poema do Semelhante.

Sunday, April 25, 2010




A certa altura da vida começamos a aprender
a esperar o tempo. A certa altura da vida o que
nos mata não são as horas. O que nos mata são
as palavras e a ausência de palavras.

Baptista Bastos
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Que fazes aqui?

Julgava que te tinha dito adeus,
um adeus contundente, ao deitar-me,
quando pude por fim fechar os olhos,
esquecer-me de ti, dessas argúcias,
dessa tua insistência, teu mau génio,
tua capacidade de anular-me.
Julgava que te tinha dito adeus
de todo e para sempre, mas acordo,
encontro-te de novo junto a mim,
dentro de mim, rodeias-me, a meu lado,
invades-me, afogas-me, diante
dos meus olhos, em frente à minha vida,
por sob a minha sombra, nas entranhas,
em cada golpe do meu sangue, entras
por meu nariz quando respiro, vês
pelas minhas pupilas, lanças fogo
nas palavras que minha boca diz.
E agora que faço?, como posso
desterrar-te de mim ou adaptar-me
a conviver contigo? Principie-se
por demonstrar maneiras impecáveis.
Bom dia, tristeza.



Amalia Bautista

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A Música Que Toca Sem Parar:
Zeca Baleiro, se sua autoria, Meu Amor meu Bem Me Ame.

Friday, April 23, 2010

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Onde Fica Istambul


Eu não estava muito interessado em estudar.
A escola era, para mim, naqueles dias de final dos sessenta, início dos setenta, oportunidade de socialização.
Eu jogava bola com os meninos, apaixonava-me platonicamente por cada nova menina que via, e o dever de casa ficava para um momento qualquer do futuro.
O sistema de ensino do Brasil daquele período consistia em quatro anos do curso primário, admissão, quatro anos de ginasial e três anos de curso colegial, ou científico, que é como alguns chamavam o segundo grau. E, depois, o vestibular e a universidade.
Após termos cumprido o curso primário, passávamos por uma espécie de purgatório, batizado de Admissão.
Terá existido nesta vida, algo mais inútil que a admissão?
A admissão era o dente do siso do ensino brasileiro. Não servia para nada e ainda doía de vez em quando, se levarmos em conta que os alunos eram obrigados a comparecer às aulas.
Felizmente, o ministério da Educação acabou com a Admissão dois anos antes de eu começar a cursar o ginasial. Ainda bem. Pelo menos deste purgatório, escapei. E dei com a cara na parede tão logo me matricularam no Ginásio Duque de Caxias.
Não gostei do que vi, nem ouvi.
Português, matemática, educação moral e cívica, educação física, educação artística, geografia e história: o curso ginasial se resumia a estas matérias. Ainda assim fui um aluno medíocre.
No que me dizia respeito, matemática era complicada demais e a lingual portuguesa ora seduzia, ora amaldiçoava.
Minha professora de história era uma pessoa infeliz que semeava nuvens e sombras sobre seus alunos. Ministrava aulas sinistras, sombrias, que pareciam ter o cheiro mofado da profundeza das bibliotecas. E muito de dor.
Já uma outra matéria do currículo escolar, ninguém levava a sério.
Não demorou muito para eu entender.
Educação Moral e Cívica, eu viria a descobrir rapidamente, se tratava de uma imoralidade e uma afronta ao civismo.
Vivíamos uma ditadura militar e nos obrigavam, crianças inocentes, a entrar em fila e a cantar o hino nacional todos os dias.
Patéticos meninos calçando fedorentos congas e cabelos cortados rente ao couro, enfiavam-nos em uniformes branco-azul marinho.
Quando chegava o dia 7 de setembro, desfilávamos de calças curtas para homens grisalhos de estrelas nos ombros.
Rufavam bumbos, surdos, taróis e pratos. Batíamos o pé, seguíamos em passo de ganso.
Bandas marciais ventavam marchinhas ufanistas e outras heresias pseudo-patrióticas.
Não sabíamos da barra pesada daqueles tempos.
Nada sabíamos.
Afinal, aquele era um país que ia para frente.
Eram tempos milagrosos, dias em que Deus, O Brasileiro, operava milagres verde-amarelos.
Tempos em que o presidente da república mandava até na escalação da seleção de futebol.
Tempos de Dario Peito de Aço e do AI5.
Tempos de Sérgio Paranhos Fleury e de vidas desperdiçadas nos porões da ditadura.
De bom nos meus quatro anos de ginásio, restaram as aulas de geografia e a atenção de Cely Domingues de Carvalho, a segunda numa linhagem de professoras que ainda hoje educa e ajuda a preparar para o futuro, crianças de Governador Valadares.
Foi com tia Cely que aprendi onde ficam Istambul, Zagreb e Nairobi, três esquisitices minhas. Em suas aulas, o imaginário florescia à medida que ia tomando gosto pela matéria.
Ela me emprestava asas e eu tanto poderia amanhecer tomando um chá em Londres, ou terminar o dia sob as luzes de Paris.
Com ela, fui além de Marrakesh, mesmo sem jamais ter passado um segundo de vida no Marrocos.
Aprendi também que a Holanda era repleta de diques e que românticas gôndolas habitavam os canais de Veneza.
Graças à tia Cely eu poderia comer, em Zurique, um pedaço de autêntico queijo suíço, todo furadinho, como uma fotografia da lua. E ter a certeza de que a seleção de João Saldanha jogaria a final da Copa do mundo no Estádio Asteca, na cidade do México, cidade que tinha o mesmo nome do país da qual era a capital.
Aprendi ainda onde ficava a Transilvânia, terra do conde Drácula e que na friorenta Escócia ficava o lago Ness, que abrigava um monstro jamais capturado.
Esta semana, tanto tempo depois, fiquei sabendo que tia Cely se despediu de nós e viajou para um lugar de onde ela jamais havia me falado.
Nem a mim, nem a nenhum de seus alunos.
O paraíso, meus amigos, ainda não consta do mapa-múndi.


Republico esta crônica em homenagem aos meus amigos Laura alberto e Jorge Pimenta, educadores, formadores da próxima geração de cidadãos.


A Música Que Toca Sem parar:

O Caderno, de Toquinho e Mutinho, na voz de Chico Buarque e seguida da letra da canção.

Sou eu que vou seguir você
Do primeiro rabisco
Até o be-a-bá.
Em todos os desenhos
Coloridos vou estar
A casa, a montanha
Duas nuvens no céu
E um sol a sorrir no papel...

Sou eu que vou ser seu colega
Seus problemas ajudar a resolver
Te acompanhar nas provas
Bimestrais, você vai ver
Serei, de você, confidente fiel
Se seu pranto molhar meu papel...

Sou eu que vou ser seu amigo
Vou lhe dar abrigo
Se você quiser
Quando surgirem
Seus primeiros raios de mulher
A vida se abrirá
Num feroz carrossel
E você vai rasgar meu papel...

O que está escrito em mim
Comigo ficará guardado
Se lhe dá prazer
A vida segue sempre em frente
O que se há de fazer...

Só peço, à você
Um favor, se puder
Não me esqueça
Num canto qualquer...

Karaokê de Poesia

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Confidência do Itabirano

Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e
comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem
horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.

De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil,
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...

Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!


A Música Que Toca Sem Parar:
Carlos Drummond de Andrade recita, de sua lavra, Confidência do Itabirano.

Thursday, April 22, 2010

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Naquele Segundo, Em Algum Lugar

Escutei no radio que o próximo ano vai ter um segundo a menos. O que não é grave.
Sou da opinião de que chegar um segundo atrasado a qualquer lugar ou ocasião não é o fim do mundo. Afinal, é "apenas" um segundo.
Mas os cientistas se juntaram e, na passagem do ano, lá foram acertar o relógio oficial do planeta. Dizem que é porque a Terra foi se atrasando bocadinho atrás de bocadinho no seu giro diário, até completar um segundo no último dia de dezembro. No final, foi preciso o homem dar um jeitinho.
Não é a primeira vez que isto acontece, o que para mim é igualmente irrelevante.
No outro dia vi o personagem de um filme alemão definhando, sofrendo horrores numa cena em que contemplava o suicídio, refletindo o óbvio, de que a vida inteira de uma pessoa corresponde a um mero segundo na história da humanidade.
Mais do que isto seria presunção, disse eu – estranho maluco - ao homem que penava dentro do aparelho de televisão. Mas ele não me escutou.
Até aquele momento eu não havia pensado no assunto com semelhante enfoque. Afinal, cada existência é do tamanho que é, como sempre vi.
Sessenta segundos se juntam para compor um minuto e sessenta iguais redundam em uma hora. Vinte e quatro destas compõem um dia. Sete destes e teremos uma semana. Quatro semanas perfazem um mês. E doze meses, juntos, somam um ano. Cem destes últimos fazem um século. Simples!
E assim caminha a humanidade, dia após dia. Ano após ano.
E não se fala mais nisto.
Mas, ontem, tarde da noite, ao levantar-me da cama para buscar um copo d’água, passando pela janela ao fim do corredor, olhei pela vidraça a noite limpa e testemunhei uma estrela mudando de lugar.
Linda, a cena! Fazia um tempão que não via uma daquelas.
E aquilo me deu uma pontinha de alegria, afinal, o exercício do viver ainda nos oferece pequenos e grandes milagres de grande beleza. Só é preciso que estejamos atentos.
Um segundo é precioso demais.
Coisas grandiosas acontecem em um segundo, pensei com meus botões. E coisas banais, também, não sejamos tão poeticamente ingênuos.
E foi assim que eu fiquei ali, debruçado sobre o parapeito da janela, meio insone, meio acordado, meio dormindo, meio despertado, namorando aquela estrela e pondo-me a imaginar que, naquele exato segundo em que ela se deslocara, em algum lugar do mundo uma nova vida nascia.
E que, naquele mesmo segundo, no hemisfério oposto, uma pessoa respirava pela última vez.
Naquele exato momento, em algum lugar do mundo alguém comia um pedaço de pão.
Alguém sentia fome.
Um outro não tinha o que comer.
Naquele exato segundo, em algum quadrante de algum lugar, alguém fazia sexo.
Alguém penava com a solidão.
Alguém se frustrava.
Alguém dizia não.
Alguém pensava em alguém, que talvez pensasse noutro alguém.
Alguém sentia frio.
Alguém se banhava no mar.
Alguém viajava num táxi.
No instante em que aquela estrela fugidia de uma noite de dezembro mudava de lugar, uma mulher era humilhada e uma outra se libertava de sua maldição.
Naquele exato segundo uma criança era negligenciada.
Num outro lugar, uma outra brincava de videogame.
E uma terceira não tinha com o que brincar.
Em algum lugar da Terra alguém usava o banheiro. Alguém tinha náusea. Alguém bebia café.
Alguém se drogava com barbitúricos.
Alguém rezava.
Alguém pintava os lábios de batom.
Em alguma paisagem do mundo uma pessoa sentia a chuva molhar seus cabelos sem imaginar que, longe dali, uma outra tostava por prazer a sua pele ao sol.
Naquele exato segundo, em algum lugar, alguém buscava a cura para uma doença, enquanto uma outra pessoa tentava criar um vírus capaz de destruir milhões.
Em algum lugar alguém vendia armas.
Alguém vendia drogas.
Alguém vendia a salvação.
Naquele momento, em algum lugar do mundo, um escritor escrevia uma crônica sem grandes atrativos ou maiores novidades.
E alguém lia.
Naquele segundo.
Em algum lugar do mundo.
Via-se da janela uma estrela mudando de lugar.

*

Foto:
O Engolidor de Pombos da Plaza de las Palomas, San Juan, Puerto Rico
A Música Que Toca Sem Parar:
Madredeus e A Banda Cósmica, Vou (Larga o Navio)

Wednesday, April 21, 2010

Três Poemas de Eugénio de Andrade

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O Amor

Estou a amar-te como o frio
corta os lábios.
A arrancar a raiz
ao mais diminuto dos rios.

A inundar-te de facas,
de saliva esperma lume.
Estou a rodear de agulhas
a boca mais vulnerável

A marcar sobre os teus flancos
o itinerário da espuma

Assim é o amor: mortal e navegável.




Retrato Ardente

Entre os teus lábios
é que a loucura acode
desce à garganta,
invade a água.

No teu peito
é que o pólen do fogo
se junta à nascente,
alastra na sombra.

Nos teus flancos
é que a fonte começa
a ser rio de abelhas,
rumor de tigre.

Da cintura aos joelhos
é que a areia queima,
o sol é secreto, cego o silêncio.

Deita-te comigo.
Ilumina meus vidros.
Entre lábios e lábios
toda a música é minha.



O Silêncio


Quando a ternura
parece já do seu ofício fatigada,

e o sono, a mais incerta barca,
inda demora,

quando azuis irrompem
os teus olhos
e procuram
nos meus navegação segura,

é que eu te falo das palavras
desamparadas e desertas,

pelo silêncio fascinadas.


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A Música Que Toca Sem Parar:
Pat Metheny, Last Train Home

Tuesday, April 20, 2010

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Com um salutar pedido de desculpas

Adorava o som de Kleiton e Kledir, a então jovem dupla gaúcha que enchia auditórios de todo o Brasil.
Era início dos anos oitenta e eu respirava música.
Eu os vi pela primeira vez abrindo um show do MPB4, no ginásio Arnóbio Pitanga, em Valadares. Eu devia ter uns 16 anos e fiquei encantado com a energia dos guris.
Saí de lá falando "bah"e "tchê", doidinho para beber chimarrão. Encantei-me.
Adotei um ritual - quando servia o exército em Juiz de Fora -, de todas as vezes que ia visitar meus pais em Valadares, deixar tocando na vitrola, no momento da saída, a música Deu Pra Ti.
Era como se dissesse aos meus pais que, assim que baixasse o astral na caserna, estaria de volta ao convívio familiar.
Curiosamente, deixei essa canção tocando na vitrola no dia 9 de abril de 1984, dia em que embarquei para a capital mineira e de lá para Nova York, definitivamente.
Lembro-me claramente de minha mãe enxugando os olhos com as costas da mão, enquanto os guris enchiam de som o ar da casa da Rua Topázio.
Desde então, essa canção ficou reverberando dentro de mim, como um daqueles tangos-fantasma, que nunca deixam de tocar dentro da cabeça e do coração da gente.
Passaram-se os anos, tornei-me um operário da notícia e eles construíram uma carreira sólida, interrompida por um hiato que nos deixou, fãs, muito decepcionados.
Eu não conseguia conceber o Kleiton sem o Kledir e vice-versa.
Sabe aquela coisa de quando dois são um?
Felizmente, soprou um minuano lá pelas bandas de Paris - onde Kleiton se exilou estudando música -, e ele resolveu voltar ao Brasil e retomaram a dupla.
Há algum tempo, juntamente com os empresários Kiko Salles e Fábio Portugal, criamos o MPB Club, projeto que trouxe aos palcos americanos muitos artistas brasileiros de primeira grandeza.
Kleiton e Kledir foram incorporados e, não apenas fizeram espetáculos inesquecíveis, como acabaram se tornando grandes amigos e parceiros.
Sim, parceiros, pois os guris musicaram Água e Vinho e A Outra Metade, dois poemas meus.
Hoje nos frequentamos, a gente dá sempre um jeitinho de se ver e o Kledir escreve (bem!) para o Brazilian Voice.
Paralelamente à música, ele editou dois livros que foram sucesso de publico e crítica no Brasil (Tipo Assim - um fenômeno na Internet - e O Pai Invisível).
Kledir costuma dizer que sou padrinho de sua carreira literária, o que me enche de orgulho, embora não seja verdade.
Kledir já era um escritor feito quando nos conhecemos.
Estava apenas esperando o momento certo de sair da casca.
Em julho passado estivemos juntos no Rio de Janeiro. Hospedei-me uns dias na bela casa na Joatinga.
Enquanto ele tentava me converter ao vegetarianismo, levei-o para a noite, tentando convencê-lo a freqüentar o meu mundo: o da esbórnia.
Durante um breve período, ele chegou mesmo a cheirar rapé, um hábito mineiro que ainda não abandonei, e que o seu médico desaconselhou peremptoriamente.
O doutor diz que dá taquicardia.
Não sei se é verdade.
Afinal, meu coração sempre desafinou.
Sempre bateu fora do tom.
Desnecessário dizer que ninguém convenceu ninguém.
Quando saí de sua casa para o aeroporto, parei numa churrascaria e ataquei um rodízio. Sem o menor remorso.
Sabe lá o que é ficar cinco dias numa casa onde jamais se fritou um bife?
E ele não deve estar com saudade da cerveja sem álcool, que praticamente o obriguei a beber enquanto me escoltava pela noite carioca. Não devo ser boa companhia.
E eu ainda o provocava, dizendo que beber cerveja sem álcool é o mesmo que dançar com a irmã.
Quando Julia (sua primogênita) veio fazer um intercâmbio nos EUA, tomou o primeiro porre da vida, e o Kledir entrou em desespero.
Ligou, todo aflito, pedindo conselhos ao cara que ele diz ser a "maior autoridade em pileques fora do Brasil". Não é bem assim. Bebo socialmente.
Mas o tranqüilizei.
Ressaca não mata ninguém.
E Julia sobreviveu lindamente.
Começo a falar dos guris e acabo me perdendo em recordações.
Esta crônica iniciou-se, na verdade, com o propósito de ser lida como um envergonhado pedido de desculpas.
Kledir aniversariou semana passada e esqueci completamente deste que, desde que nos tornamos amigos, é sempre um dos primeiros a ligar para os nem sempre merecidos parabéns.
Portanto, Kledir, que você seja muito feliz nessa nova idade.
E que continue sendo esse sujeito fantástico que é.
E que nunca se esqueça desse meu amor por você.
Aceite meus atrasados, mas sinceros parabéns. E uma pitada exagerada de carinho desse seu irmão, nascido estranhamente do ventre de uma outra mãe.


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***
A Música Que Toca Sem Parar
Kleiton e Kledir, Deu Pra Ti


Foto:
Roberto e Kledir em Fort Lauderdale, Flórida, no último sábado (17 de abril), pronunciando pescoço, em francês.

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Monday, April 19, 2010

Um Poema de Eugénio de Andrade

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Poema à Mãe

No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe!

Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos!
Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais!

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura!
Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos...
Mas tu esqueceste muita coisa!
Esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha - queres ouvir-me? -,
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;
ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;
ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...

Mas - tu sabes! - a noite é enorme
e todo o meu corpo cresceu...
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.
Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas...
Boa noite. Eu vou com as aves!


***

Eugénio de Andrade, gênio artesão da palavra (Póvoa de Atalaia, Fundão, 19 Janeiro 1923 – Porto, 13 Junho 2005), cujo nome verdadeiro era José Fontinhas.


A Música Que Toca Sem Parar:
Raimundo Fagner, de Petrúcio Maia e Abel Silva, Reflexos do Baile.

Saturday, April 17, 2010

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Encantos e desencantos de uma moça

Ela acha o chope da kaizer ruim. Prefere o da Brahma.
Sim, ela bebe chope.
E vai ao Mineirão - sempre que pode -, torce pelo Cruzeiro, é fã de Vander Lee, sabe de cor as letras das canções.
Já lhe disseram que é atleticana e que ela ainda não sabe disto. Mas prefere não se explicar.
Para que?
Seu sangue é azul, como o inigualável céu de Minas Gerais.
Nasceu no Vale do Aço. Tem aço nas veias. Ferro no coração.
Desfralda uma bandeira de Minas toda vez que fala.
Seu sotaque não nega: Libertas Quae Sera Tamem.
No recatamento, na forma como cruza as pernas, no jeito de andar e de existir, é toda Minas Gerais.
Parece franzina, pequenina, mas se agiganta nos momentos que a vida lhe exige isto.
Leonina, coração de leão, braba, brabíssima...
Adora os Beatles, mesmo sem ter sido contemporânea do quarteto de Liverpool.
Hoje acende velas para o U2.
Bono Vox é mais que um mito em seu caderno recheado de pessoas do bem. Prefere estas, às pessoas de bens.
Em seu caderno de mitologias, figuras como as do Dalai Lama, Chico Xavier, Betinho e São Judas Tadeu repartem um pedaço de pão, compartilham um chá...
Essa moça sabe separar o joio da jóia.
Sempre soube.
Tem uma alma bonita. É espiritualista. Mas deixou de freqüentar as reuniões que faziam a mochila da vida lhe ficar mais leve.
E ela diz que vai retomá-las. Ela precisa. Vem da fé a luz mais verdadeira, repete baixinho, como quem repete um mantra.
Carrega um quê de irmã carmelita, o que explica certos tabus.
Certos receios.
Certas limitações.
Seu coração é generoso.
É emotiva.
Ela canta e dança e se emociona.
Nos últimos tempos reaprendeu a chorar.
Chora durante filmes, assiste novela, é romântica - sim! -, lê e faz parte de uma espécie em extinção: o das pessoas que lêem e apreciam poesia.
E ela reconhece poesia numa pedra do chão e nas pétalas de uma margarida.
Tem vocação para musa, apesar dos dois pés fincados na ciência.
É cientista.
Em algum lugar de sua casa ergueu um oratório para Carlos Drummond de Andrade.
E outro para os iguais a Albert Einstein:
- Ó Deus, salve o oratório!
- Ó Deus, salve essa mulher!
Um admirador lhe ofereceu, certa vez, uma estrela do céu.
Aceitou.
Hoje sabe dizer o nome da constelação e em qual galáxia essa zelação pulsa e brilha.
Parte de sua vida é drama.
Costuma dizer que os olhos verdes, transparentes, são herança de algum antepassado escocês.
Ninguém acredita.
Vem das esmeraldas dos garimpos, da grama da Praça da Liberdade, o verde bonito de suas pepitas.
Ultimamente anda triste, esta moça.
Caminha com os olhos presos ao chão, está decepcionada.
Perdeu a crença nas pessoas e a esperança no amor.
Perdeu a esperança no Brasil.
Era petista de colar cartaz, mas a turma do presidente Lula tirou dela muito mais que a vontade de testemunhar - em vida - um governo feito por gente do povo.
Essa cambada de políticos que aí vemos, roubou dela o sonho e a fé na existência de um governo que não rouba e não deixa roubar.
E o seu amor pelo rapaz com quem um dia ela planejou construir uma casa no campo, diluiu-se na fraqueza desses homens de papel que habitam a superfície do século XXI.
A ver, vamos, dona moça...
A ver, vamos.
Que Deus se apiede destes homens fracos das Minas Gerais.

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A Música Que Toca Sem Parar
Simone e Luiz Represas, Feiticeira, de Luiz Represas e Francisco Viana

Thursday, April 15, 2010

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Não sei se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.
Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito, ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha tristeza é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.
O que eu amo não sei. Amo. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.



António Ramos Rosa.

Wednesday, April 14, 2010

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Aquele incômodo dedinho que dói
Quando estamos tristes, tudo fica pior. É como quando estamos com um dedo do pé machucado e temos aquela impressão de que sempre o estamos batendo pelos cantos por onde passamos.
Não percebemos que sempre o batemos pelos cantos, desde que nascemos e aprendemos a caminhar, mas que não o sentimos porque ele só dói, quando realmente está machucado.
E não estamos com o dedinho do pé machucado, sempre.
Ou estamos?
Quando estamos nesses dias plúmbeos em que o corpo inteiro se transforma num grande dedinho machucado, ficamos expostos demais, sensíveis demais, fragilizados demais.
Um engarrafamento no trânsito torna-se uma calamidade de proporções tsunâmicas, a derrota do time de coração trucida tanto quanto a perda de um ente querido, e por aí vai.
Só dói quando eu respiro, posso afirmar. Por isso tento aprender a respirar mais miudinho.
Ando meio assim ultimamente, de braço dado com a tristeza, enamorado dela, mas pensando numa possibilidade de fugir do altar.
Dona Tristeza que fique solteira!
Meu médico falou em depressão. Recusei o diagnóstico.
Depressão é coisa de bacana. Ando triste. E pronto.
E não adianta culpar a descoberta de que Obama não é Superman, que os impostos aumentaram e as benesses escassearam, que o verão foi um arremedo ou que ganhamos mais uma nova ruga e acumulamos outros fios brancos entre os cabelos que restaram.
Não tem jeito.
Às vezes penso que nascemos com esse gen da dor, e que passamos a vida inteira tentando dar-lhe um nó.
Inventamos paixões, as transmutamos em amor, fazemos filhos, depositamos neles a esperanças de que sejam tudo aquilo que jamais seremos, devoramos livros, viajamos pelo mundo, pregamos diplomas na parede, nos empanturramos de lagosta e vinho.
Quando não dá para tanto, mastigamos couve e arrotamos caviar.
Tudo para driblar o gen da dor. Nem sempre conseguimos, obviamente.
Quem não tem o suficiente para pagar o analista – ou não acredita nisto -, tenta arranjar uma comadre.
Conversar faz bem, eu sei. Mas anda cada vez mais difícil encontrar alguém que nos escute mais do que tenha para dizer.
Hoje em dia todo mundo tem tanto a dizer... E nem tudo nos faz sentido.
Terei me tornado egoístas demais?
Na falta de grana pro analista ou de uma comadre para chorar em seu colo, dei de falar sozinho ultimamente. Mas nem eu mesmo tenho tido paciência para tantas lamentações.
Religião, não. Obrigado.
Deus deve estar com a agenda cheia. E a fila é enorme.
E, pegar fila é outra coisa que deprime qualquer cristão. Mesmo cristãos não tão cristãos assim, como esse do dedinho machucado que batuca no teclado deste computador.
Reaprendo na marra, a ‘catilografar’ com o dedo indicador.
E assim termino mais um texto.
E assim eu venço mais um dia.
Pode ser que amanhã já não doa tanto.
Pode ser até que já não doa mais.

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Monday, April 12, 2010

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Dois Poemas de António Franco Alexandre

agora estou na beira do penhasco e não vou voar
como o sublime bicho estratosférico brilhante
de plumas esmeraldas tentativos braços
apenas eu baço de nenhuma asa debruçado
sobre o vidro de água e em baixo
os corredores, dispostos à partida
em músculos compactos, e deles o mais jovem (vestido

de improváveis azagaias) exclama: é esta
a fonte do trovão!, e aponta
um buraco azul mudo nas paredes da pedra. por fora
de mim regresso ao som silencioso da cidade
onde todos os rostos são o papel com linhas de inventário
e as patas dos homens pousam na larga secretária
e ficam, em relevo, caminhando no sangue. e eu queria
para ti, uma cidade sem mistério,

o gelo transparente onde mergulha a imagem
dos corredores, lançados no velocíssimo sossego sem repouso
das palavras trocadas, das bocas e dos braços misturados
pela luz, que é uma areia movediça,
este saber de nós sem ócio e sem negócio, iguais
às portas do trovão, onde o mais sábio
se lança nu compacto deus do fogo e ri



***

Nesta última tarde em que respiro
A justa luz que nasce das palavras
E no largo horizonte se dissipa
Quantos segredos únicos, precisos,
E que altiva promessa fica ardendo
Na ausência interminável do teu rosto.
Pois não posso dizer sequer que te amei nunca
Senão em cada gesto e pensamento
E dentro destes vagos vãos poemas;
E já todos me ensinam em linguagem simples
Que somos mera fábula, obscuramente
Inventada na rima de um qualquer
Cantor sem voz batendo no teclado;
Desta falta de tempo, sorte, e jeito,
Se faz noutro futuro o nosso encontro.



António Franco Alexandre
In Uma fábula
Assírio & Alvim, Editores


A Música Que Toca Sem Parar:
Celso Fonseca
O Tempo Não Passou
Melodia de Celso Fonseca, palavras de Ronaldo Bastos
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De Almas Gêmeas e outros Afins
Cada pessoa se encanta pelo que lhe enche o espírito. Ou pelo que lhe salta aos olhos.
É raro quando encontra-se alguém tão parecido com nós próprios, e é nessa situação que aparecem as chamadas almas gêmeas, as grandes amizades, os grandes amores.
Mesmo nas diferenças, essas pessoas “iguais” aprendem logo de início a ser tolerantes, e não se incomodar tanto com os defeitos, ao passo que as virtudes ganham especial realce, um holofote azul que lhes maximiza cada detalhe.
Os amigos verdadeiros são solidários, tomam nossas dores, sopram nossas feridas e celebram sem inveja as nossas vitórias.
É muito bom quando encontramos na vida, alguém que se encaixa em nossa história de forma sincera, descomprometida com outra razão que não seja a dos laços genuínos.
Paulinho Mota, um conhecido meu lá de BH capaz de frases inspiradas e colocações sagazes, costumava dizer, depois de umas cervejas, que só tinha amigos iguais a si próprio.
E emendava: um cachorro cheira o outro, pelo rabo.
Os iguais se igualam, sim. Os opostos se evitam.
Inimigos não se sentam à mesma mesa por prazer.
Negociam, assinam tréguas, armistícios, mas são água e óleo e não se misturam, verdadeiramente, fora desse contexto estritamente de formalidade.
Não possuo esse “software” e não consigo me relacionar com pessoas que me beijam pela frente, enquanto sei que corro o risco de ser apunhalado pelas costas.
Guardo no coração amizades raras, que cabem na mão.
Deus foi generoso comigo ao longo da vida. E mesmo não sendo absolutamente iguais a mim, esses irmãos gerados no ventre de uma outra mãe, acrescentaram muito ao meu viver.
Nos momentos de perrengue, das desilusões ou das necessidades, tive a ventura de ter ao meu alcance, uma mão firme para segurar, olhos que enxergavam o que eu não conseguia ver e me apontavam a direção correta.
Infelizmente, na caminhada da vida em busca de um lugar ao sol ou de um pedaço de pão, acabamos por nos perder dessas pessoas especiais.
Sim, sou meio estranho, admito. Sou capaz de ficar no frio esperando o primeiro bluejay da primavera. Converso com pica-paus, saúdo cardeais - elogio suas penugens terracota -, enxoto corvos do meu quintal.
Desde menino sou assim.
Encanto-me com pessoas que enxergam beleza em carrapichos, acham as açucenas as flores mais lindas do mundo, admiram-se com a imponência brejeira dos buritis e que preferem uma mesa de bar, a uma pista de dança.
Talvez seja por esse motivo que me identifique tanto com pessoas portadoras de dois pés esquerdos.
Sou absolutamente obcecado por música, por literatura e pelo ofício de rabiscar versos.
Dou um boi para não entrar numa briga e uma boiada para não sair dela.
Identifico-me com os Quixotes desta vida, pessoas cujos moinhos de vento são reais.
Embora possa causar uma impressão errada com atitudes que possam parecer sofisticadas, à mesa gosto mesmo é de rapa de arroz, de pão com lingüiça e uma cachacinha de alambique. Quem me conhece bem, sabe de minhas preferências.
Escrevo isso tudo porque lembrei-me com saudade de Edson Balinha, absolutamente lelé da cuca, um amigo querido, que guardo do lado esquerdo do peito e de quem me perdi em minha caminhada.
Um sujeito com quem me identificava tanto, crescendo, que olhava-o, a transitar pelas ruas e me via, caminhando dentro de seus sapatos. Almas gêmeas, ele e eu.
Balas, querido, essa crônica é pra você.
Aonde você estiver.



A Música Que Toca Sem Parar:
Meu Pobre Blues, Zizi Possi, cantando Sérgio Sampaio.

Sunday, April 11, 2010

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Em todas as ruas te encontro

Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto, tão perto, tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco

-Mário Cesariny-


A Música Que Toca Sem Parar,
Novelli entoando Minas Gerais, dele e de Ronaldo Bastos.

Thursday, April 8, 2010

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Cansaço Jobiniano


Há cerca de dois anos, mais ou menos, recebi o telefonema de um amigo que, cansado das coisas por aqui, resolvera retornar ao Brasil.
Emocionado, balbuciou que tinha saudade do velho e bom samba dos morros cariocas, do futebol domingueiro no Maracanã, da cervejota gelada no quiosque da praia, e de mais um monte de outras coisas, que lhe faziam demasiada falta.
Estava farto do estresse da vida na região metropolitana de Nova York, e não suportava mais a hipervelocidade, a poluição, a falta de gentileza das pessoas. Além do mais, alegava a ausência de uma centena de fatores que, aparentemente banais, seriam essenciais para a sua felicidade. Ao final, fez uma citação:
Tom Jobim dizia que o Brasil é uma ruim, mas é bom. E que os Estados Unidos é bom, mas é ruim.
E lá se foi. Sumiu o moço.
Ontem, para minha surpresa, um e-mail volumoso repousava em minha caixa de mensagens.
No espaço onde estipulava o assunto da correspondência, lia-se “cansaço jobiniano”.
E a mensagem era mais ou menos esta:
Estou voltando. Cansei de beber cafezinho em copo lagoínha.
Cansei dos mosquitos voando dentro das vitrines de doces e bolos das padarias. E cansei-me de muito mais.
Cansei-me do gás vendido em botijão.
E de policiais despreparados e truculentos pelas ruas do Rio.
Cansei-me do medo da violência urbana, que transforma cada sinal de trânsito, numa extensão tapuia da Faixa de Gaza.
Aliás, morre-se mais por aqui, do que naquelas desérticas paisagens.
Cansei-me das balas perdidas.
Balas de grosso calibre, meninos cheirados de cola, sequestradores de meia-pataca, bandidos do colarinho branco, ladrões de banco ou de galinha...
Por aqui, mata-se por um par de tênis. Mata-se após receber o resgate. Ou, por qualquer ninharia.
Assassina-se na saída do Maracanã, na porta da fábrica ou da igreja.
Morre-se jovem e inocente no refeitório de uma universidade, durante o recreio.
Morre-se dormindo, varado por uma bala perdida, na não-mais fortaleza do lar.
Cansei-me do medo de toda uma cidade. Medo do meu vizinho.
Cansei-me do meu próprio medo.
Cansei-me de Galvão Bueno, o chato mais bem remunerado do mundo. É ele quem nos deveria pagar.
A poluição sonora de Nova York é nada, comparada às bobagens deste narrador.
Cansei-me de Fausto Silva, o Faustão. Este deve achar que meu ouvido é paiol.
Ou, penico.
Dizer que artistas como Leonardo, Chitãozinho e Xororó, Zezé di Camargo são “monstros sagrados”, é muito mais que uma apelação.
Mais do que isto, é a confissão de um homem que vendeu sua alma ao diabo.
Cansei-me de suas duplas sertanejas.
Cansei-me de pagodeiros oxigenados.
Cansei-me de poposudas sem o menor talento, fazendo fama e fortuna à custa da ignorância popular.
Cansei-me daquelas bundas. E não importo se me chamarem de covarde, de bundão...
Cansei-me de Ratinho, Gugu, e destes sub-produtos que nos enfiam goela abaixo, através do aparelho de televisão.
E ainda tem o Big Brother Brasil.
Cansei-me do Movimento Sem Terra e de seus “invasores” profissionais.
O Brasil é hoje um país de Sem-Terra, Sem-Teto e Sem-Moral.
Na outra mão, é o paraíso dos Com-Teta.
Mesmo tendo roubado milhões dos pobres do Brasil, Lalau saiu da cadeia e cumpre pena em sua mansão no Morumbi. Maluf desviou bilhões, e continua em liberdade.
Sabe-se tudo de Fernandinho Beira-Mar, mas ninguém se lembra mais de quem foi Darcy Ribeiro, ou Orlando Villas-Boas.
Isto cansa!
Cansei-me de ver que as famílias de ACM e José Sarney continuam dando as cartas.
E que no país ainda se confunde imunidade, com impunidade parlamentar.
Cansei-me dos Pitboys das boates.
E de futebolistas Bad Boys.
Cansei-me de ver milhares de pessoas na fila do sub-emprego, pessoas que deveriam estar cumprindo funções qualificadas, aguardando uma vaga de gari aqui na prefeitura do Rio de Janeiro.
Companheiro, resta-me agora, desolado e com o rabo entre as pernas, inverter aquela citação do mestre Tom Jobim:
O Brasil é bom, mas é ruim. Aí é ruim, mas é bom.
A gente se vê na semana que vem!



A Música Que Toca Sem Parar:
Tim Maia e Os Cariocas, Samba do Avião, letra e música de Antônio Carlos Brasileiro Jobim.

Wednesday, April 7, 2010











existe arte na forma como se colocam palavras no lugar de rostos. existe um gosto refinado em, a meio da noite, ao invés de dormir e descansar como todos os outros, relembrar caminhos acidentados que não foram dar a lugar algum.

dá gosto olhar directamente nos nossos próprios olhos e ver como tudo está diferente:

as paredes são outras;
a face surge agora mais coberta e mais queimada pelo sol;
a respiração está mais pesada devido a inúmeros cigarros já desperdiçados:
e na cama há outros nomes que dormem sem serem pronunciados.

no entanto, é curioso imaginar como seria se nos tivéssemos atrasado a apanhar aquele comboio; como seria se tivéssemos dito ao ardina que não queríamos aquele jornal; como seria se tivéssemos esperado mais uns minutos para ouvir um "bom dia" novamente.

Talvez agora o nosso corpo estivesse noutro lugar, a ouvir outras histórias e com mais imagens para recordar.

mas eis que ela acorda durante a noite e nos leva para uma casa sem nada nas paredes.


Sergio Xarepe


A Música Que Toca Sem Parar:

o poema de Jorge Luiz Borges é emoldurado pela melodia de Vitor Ramil (foto), transformando-se nesta Milonga de Los Morenos.
Caetano Veloso e Vitor Ramil cantam a canção.

Monday, April 5, 2010

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A queda.


Os amigos rodeiam-se da calma necessária
em que eu somente me deixo transparecer. Dentro
de cada um existe um pedaço de vidro e de papel, como
se me despedaçasse quando me atiram
pedras.

O suor surge quando menos se quer que
se erga a cidade. Hoje é dificil criarmo-nos,
porque todos se deixam diluir como as
músicas como as palavras ao descerem
a pele em direcção ao rosto.

Deixa-se surgir a verdade. Deixa-se transparecer
pelo corpo enquanto se foge do que
não sei. Enquanto. Durante a longa queda -
que se esvanece nos cabelos - existe um pequeno
lugar - junto aos dedos, não muito perto da mão -
onde todos os poemas nascem e morrem.

Onde todas as crianças crescem ou
desaparecem.

Como estas paredes que se desenham, com sorrisos
em lugar de quadros, com olhares despertos e interessados
no cansaço das minhas pálpebras.

Deixa-se correr a tinta pelos quadris,
ao molhar-se a pele chega o momento certo:
onde a bala do tempo se contorce.

Nem uma silva de prata a zunir pelo
quarteirão, um corte no peito, uma tentativa
de roubar de mim aquilo que nem eu tenho

como se fossem palavras ou gestos que
se esquecem quando o quarto fica escuro e só se
vêem diamantes e frases semi-apagadas.

Perco pela rua a roupa porque assim
me possuo. Porque assim consigo ver a tua face
onde ela já não existe.

Hoje está difícil andar. Está calor.
No adro da igreja ouvem-se pardais e pombos por
onde não quero passar.

O único caminho é por debaixo do peso
da explicação. Por debaixo de mim erguem-se vozes
que se assemelham a um poço de sangue

a um sorriso sem intenção.

É por isso que, quando nos reflectem
os braços do rio, nos esquecemos de dormir
enquanto implodimos dentro de alguém

como um poema.

Deixamo-los partir para que nada reste
deles - os amigos - e aí perguntam-nos
como nos sentimos e respondemos em silêncio
porque nada mais resta.



Sérgio Xarepe
Jovem poeta português de muito talento... Lançou em 2008 o livro "Outros Dias Existem Muitos"


A Música Que Toca Sem Parar:
Michael Penn, No Myth

Friday, April 2, 2010


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Survivor, Brazilian Style

Fim de domingo, estatelado no sofá da sala, brincando com o controle remoto da tv, deparo-me com o Survivor, um reality show em que os participantes são despachados para um canto esquecido do planeta e tem que se virar nos trinta, como recomendaria o Faustão.
Passam cerca de 40 dias embrenhados na mata, vivendo em abrigos improvisados, caçando e pescando para comer com lanças feitas de madeira, extraem fogo de pedras, como na pré-história.
Mauricinhos, caipiras, aspirantes a modelo, desajustados, cowboys de meia-espora, manicures, donas de casa e pessoas de diferentes regiões do país são divididos em duas turmas e o bicho pega, com a realização de provas de sobrevivência que contam pontos e dão prêmios cobiçados como uma caixa de cerveja gelada, um café da manhã com direito a bacon e croissants, um canivete suíço ou uma sempre disputadíssima caixa de fósforos.
Uma vez por semana, os participantes votam pela saída de um dos seus. E assim eles vão se dizimando, canibais de si próprios, até que seja apontado o vencedor.
O Brasil teve uma versão deste enlatado, que parece não ter emplacado muito bem, ao contrário do Big Brother, que virou mania nacional, transformando nulidades em celebridades e recheando as páginas das revistas masculinas de “carne novinha em folha”.
Abomino o Big Brother.
Não o assisto por aqui, não o assistiria se vivesse no Brasil ou em qualquer outra parte do mundo onde se fabricasse sumidades do quilate de Alberto Cowboy, Diego Alemão e o filósofo Cléber Bambam, aquele que fez o país inteiro dizer “faiz pairte”.
Como sei o nome destes e de tantos outros big brothers?
Ora, como não saber?
Em época de Big Brother, eles ganham mais espaço na mídia do que o lançamento do livro de Chico Buarque, o mais recente poço de petróleo descoberto à unha por Lula ou o novo escândalo político em Brasília.
Aliás, político deve adorar o Big Brother.
Isso é garantia de que o olhar de quase 200 milhões de brasileiros está nas coxas de beldades do calibre de Sabrina Sato ou de Pryscila, uma indiazinha bem bonitinha do Mato Grosso, que mostrará seu piercing genital na próxima edição da Playboy.
Quem quer saber de mensalão, mensalinhos e deputados donos de castelos, quando o país inteiro rói as unhas para saber quem vai sair da "casa"?
Mas eu falava do Survivor (O Sobrevivente, para os recém-chegados e ainda não familiarizados com a língua inglesa)...
A edição deste ano foi realizada no Brasil.
Para ser mais exato, em Tocantins.
Entre muriçocas, rios infestados de piranhas, aranhas caranguejeiras, cobras de todos os calibres e feras da fauna brasileira, a turma se engalfinhou pelo direito de levar para casa a bagatela de 1 milhão de dólares.
Fiquei pensando, enquanto admirava a belíssima paisagem que servia de pano de fundo para o programa, se a produção precisava mesmo tê-los mandado para os cafundós de Tocantins, quando a intenção era testar a resistência física e mental dos participantes.
E minha mente desocupada passou a bolar um Survivor brasileiríssimo, com provas bem mais difíceis para os participantes, do que atravessar rústicas pinguelas com os ombros carregados de balaios d’água.
Queria ver essa turma passar pelas provas diárias dos legítimos survivors brasileiros.
Para começo de conversa, queria vê-los alimentando uma família de 5 pessoas com um salário mínimo, como fazem milhões de pessoas.
Pensam que é moleza?
Como prêmio para a equipe vencedora dessa prova, caberia um bolsa-família.
Embarque um mauricinho novaiorquino num lotação em São Paulo às 5 da manhã e, após repetir esse processo mais duas vezes todos os dias, deixem-no guardando carros numa avenida paulistana.
Uma patricinha, dessas aspirantes a modelo, enviem-na para uma casa de madame, e a deixem lá, uma semana inteira, comendo o pão que o diabo amassou com o rabo.
Esse countryboy do Alabama que venceu o Survivor no último domingo, eu mandaria para uma plantação de cana no sertão de Pernambuco, e veria a veridicidade de sua familiaridade com os outdoors, esse que supostamente foi seu passaporte para a vitória.
Ao invés de comerem peixe cru (quem não gosta de um bom sushi?), coloquemos em seus espetos um bom acarajé, testículos de boi, buchada de bode e eles iriam mudar o nome do programa para Fear Factor, the Brazilian Edition.
Uma outra prova seria parar o carro de janela aberta, após as dez da noite, num sinal de trânsito de qualquer capital brasileira.
Outra prova dificílima seria trancar todo mundo num quarto assistindo os programas de Ratinho ou de Luciana Gimenez.
Quem resistisse mais tempo, ganharia o cordão de imunidade até 2020.
Numa das provas de resistência mais difíceis, mandaria os participantes para Jaguariúna ou Barretos e os deixaria lá por dias a fio, sentados em confortáveis cadeiras no centro da arena de rodeio, assistindo a shows
consecutivos de Zezé di Camargo e Luciano, Leonardo, Daniel, e Bruno e Marroni.
Para dificultar um pouquinho mais, mandaria os finalistas vestirem uma camisa rubro-negra, os soltaria no Maracanã, bem no meio da torcida do Vasco, gritando Mengôôôô…
Quem sobrevivesse levaria para casa, merecidamente, o tão cobiçado milhão.


Foto de Sebastião Salgado, gênio do olhar


A Música Que Toca Sem Parar:
Celso Adolfo, O Tempo.