terça-feira, fevereiro 19, 2008

Cinema Nostalgia (23)

All that Roy
Alguns actores acompanham-nos em períodos decisivos das nossas vidas. Servem-nos de modelos, tornam-se nossos confidentes, transmitem-nos um gesto, um esgar, uma expressão, uma frase que logo tornamos nossa. Um dia verificamos que desapareceram para sempre. É como certas amizades, que se evaporam quase sem nos darmos conta disso.
Aconteceu-me agora com Roy Scheider: leio a notícia de que morreu, aos 75 anos, e estranho o facto de esta notícia não me causar sequer um fio de emoção. Porque Roy Scheider acompanhou-me durante quase uma década de idas assíduas às salas de cinema. Lá estava o seu rosto angular, de onde sobressaía um par de olhos tristes, dialogando com Jane Fonda em Klute. Lembro-me também dele em Os Incorruptíveis Contra a Droga e O Homem da Maratona. Recordo-o igualmente em Tubarão – esse filme nuclear, que marcou o regresso de Hollywood ao grande cinema depois de vários anos errantes a querer macaquear o pior dos filmes europeus enquanto as produções britânicas amealhavam Oscares. E lembro-me dele sobretudo em All That Jazz, de Bob Fosse: raras vezes um actor levou a representação a tais limites de esforço físico e psicológico: li algures que estava arrasado quando acabou de rodar o filme.
Valeu a pena o esforço: All That Jazz teve várias nomeações para o Óscar e conquistou a Palma de Ouro em Cannes.
Depois perdi-me dele. Ou ele perdeu-se de mim. Vi-o ainda, quase de fugida, em Na Calada da Noite (Robert Benton, 1982), um daqueles múltiplos filmes que se reclamavam da herança de Hitchcock sem lhe chegarem aos calcanhares. O mesmo rosto angular, os mesmos olhos tristes, a mesma expressão de quem já se decepcionou com quase tudo. Decepcionantes foram também as várias “sequelas” de Tubarão em que esbanjou talento. Aí já não parecia aquele Roy de outros tempos.
Nunca mais o vi. Ou, se o vi, foi como se não o reconhecesse. Correspondia a um período da minha vida ultrapassado para sempre. O cinema também é isto: enche-nos de emoção, seca-nos as emoções em ritmos e ciclos alternados. So long, Roy. Foi bom ter-te conhecido naqueles anos irrepetíveis em que descobria o encanto do cinema e ao mesmo tempo me descobria a mim próprio.

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domingo, dezembro 30, 2007

Cinema Nostalgia (22)


Através das nossas mães e avós começámos a ingerir esses enredos em doses regulares, não raro antes de pegarmos no sono. Daí que os nossos sonhos acabassem muitas vezes por se confundir com eles, formando um todo contínuo com alguma coerência. As histórias de encantar são uma espécie de testemunho que passa entre gerações e que no caso específico das mulheres serve de sedimento a uma subcultura. A das fadas, dos príncipes e das princesas, onde os papéis de cada um estão bem definidos, a começar pelo nosso que é, naturalmente, de grande responsabilidade, ou não fosse o principal.
A trabalheira que nos dá demarcarmo-nos depois de todos aqueles estereótipos e aceitarmos as nossas imperfeições! Não sei o que acontece com os homens, mas no nosso caso creio que nunca nos chegamos a libertar inteiramente de certas fantasias. O que há mais para aí é donzelas na eterna busca do príncipe encantado e cinderelas à espera de redenção. O cinema percebeu isso bem demais e em todas as épocas nos serviu histórias cuja matriz é sempre a mesma e que não por acaso foram êxitos de bilheteira. Não desfazendo no desempenho de Julia Roberts, não tenho dúvidas de que o segredo do sucesso de Pretty Woman (Um Sonho de Mulher) é o facto de consistir numa versão revista e apimentada da Gata Borralheira.
Lembram-se de Uma Mulher de Sucesso (no original, Working Girl) com Melanie Griffith? À medida que a via e voltava a ver fui-me interrogando sobre o fascínio que essa comediazinha de Mike Nichols exercia em mim, até que um dia percebi: é claro, ver aquela loirinha frágil penar e no final triunfar no mundo da alta finança faz-me disparar a adrenalina.
O síndrome da Cinderela está presente em numerosos filmes, todos com êxito assinalável e se alguns pouco ou nada valem como obras cinematográficas, outros conseguem fazer o pleno: juntar a magia das histórias de encantar à magia da tela. E esses acabam na categoria particular dos filmes da nossa vida. Exemplos? Tenho vários: My Fair Lady, o meu musical favorito; Sabrina (na foto) e a reinar sobre todos esses... Boneca de Luxo (Breakfast at Tiffany’s), de que o Pedro já aqui falou. Ser salva por aquele príncipe (George Peppard) em plena Nova Iorque, debaixo de chuva e junto aos caixotes do lixo revolucionou em definitivo o meu conceito de romantismo. Desde então nunca mais consegui sentir o mesmo élan na derradeira cena do sapatinho de cristal no clássico da Disney A Gata Borralheira que serviu durante tantos anos de referência às minhas fantasias românticas...

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domingo, dezembro 23, 2007

Cinema Nostalgia (21)


O meu primeiro filme

Tinha sete anos quando entrei numa sala de cinema para ver o meu primeiro filme "a sério". Era Mary Poppins, de Robert Stevenson, numa reposição natalícia no antigo Monumental. Tudo me deslumbrou nesse filme: a música, a personagem da governanta com um toque de loucura, a mescla de desenhos animados com figuras reais, a vivacidade acrobática do Dick Van Dyke, o nariz arrebitado da Julie Andrews (mal adivinhava eu como haveria de gostar tanto de outro nariz arrebitado...). Recordo como se fosse hoje a mágica dança dos limpa-chaminés recortados na noite azul de uma Londres irreal. E a incomparável explosão de alegria que irrompia no ecrã aos primeiros acordes de Supercalifragilisticexpialidocious...
Vi largas centenas de longas-metragens depois desta inesquecível produção dos estúdios Walt Disney. Mas regresso a Mary Poppins com a mesma sensação de encantamento, que se repete em cada fotograma deste filme único, relíquia de um tempo em que os grandes estúdios ainda ditavam cartas na indústria cinematográfica americana. Continuo a comover-me quando ouço Chim Chim Cheree, divirto-me com aquele delirante chá tomado com as personagens coladas ao tecto, ainda acho possível que uma nanny inglesa cruze os céus de Londres a flutuar num guarda-chuva. E não concebo sequer que alguém ponha em causa os méritos desta película, uma das mais deslumbrantes obras-primas do cinema. A ver e a rever em qualquer época, dos sete aos 77 anos de idade.

Aqui publicado pela primeira vez, agora reeditado na série Cinema Nostalgia

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sexta-feira, dezembro 21, 2007

Cinema Nostalgia (20)


Não admira que nos anos 20 tivessem diabolizado o cinema. Ainda hoje estou convencida de que os meus primeiros pensamentos pecaminosos foram inspirados por filmes. Percebe-se porquê. Na minha escola só havia meninas e em casa não existiam irmãos para ao menos me poder familiarizar com a espécie. Mesmo que tenha seguido a cartilha de Freud à risca, a eventual atracção que senti pelo meu pai, aos nove anos já estava esquecida e resolvida. Nessa fase da minha vida o que eu via nele era mesmo um homem assexuado, tão desenxabido e confortável como um par de meias de lã. De modo que foi nos melhores cenários e com música de fundo que tive os meus primeiros encontros amorosos e as primeiras revelações sobre a natureza masculina. Tudo informação estereotipada? Claro que sim! Mas temos que começar por algum lado.
Não me importava ter que viver todos aqueles romances sempre com outra mulher de permeio. Afinal, se havia coisa em que me tinha especializado desde a mais tenra infância era em fazer de conta. Por isso, encarava com pragmatismo as vantagens de ser beijada pelo James Dean através da Natalie Wood, sobretudo quando os meus pais também estavam a ver. À força de tantos ensaios românticos, é claro que acabei por cair nas malhas da paixão e qual Judy Garland abraçada ao retrato de Clark Gable, também eu, no sossego do meu quarto, me declarei rendida aos encantos de alguns dos homens que conheci intimamente na tela. Warren Beatty foi um deles. Vi-o pela primeira vez na comédia dos anos 70, O Céu Pode Esperar - um remake de Heaven Can Wait de Ernest Lubitsch - e foi um coup de foudre! Com Reds (1981), um épico com a revolução russa em pano de fundo, provou-se que o nosso caso tinha futuro. (Só anos depois viria a descobri-lo em Bonnie and Clyde (1967) e Esplendor na Relva (1961) uma película inesquecível em que o encontramos tão jovem que mal descortinamos o sex-symbol que anos depois lhe renderia o título de solteiro mais cobiçado de Hollywood).
Robert Redford (na foto), que ainda hoje considero um dos homens mais bonitos de sempre, foi outro caso de paixão. Quando começou o nosso idílio? Não sei, mas gosto de o recordar em O Nosso Amor de Ontem (1973), um filme nostálgico de Sydney Pollack (Redford foi o seu actor fetiche). Porém, O Grande Gatsby (1974) foi talvez o filme que mais explorou a sua fotogenia. Em A Golpada (1973), Os Homens do Presidente (1978) e O Candidato (1972) Redford provou-nos que se não fez carreira à margem da sua beleza, também não desejou construí-la à sua custa, circunstância que lhe rendeu, naturalmente, ainda mais encanto.
Mas, confesso, houve outros: Steve Mcqueen, precocemente desaparecido, mas eternamente sedutor, foi um deles. Lembro-o em O Grande Mestre do Crime (1968), Papillon (1973), mas principalmente em Amar um Desconhecido (1963), num dos raros papéis que lhe permitiu explorar uma fragilidade e um desamparo que raramente lhe adivinhávamos e que lhe ficava tão bem.
Paul Newman, esse, tinha um charme adicional. Apesar de ser um dos actores mais bonitos e talentosos da sua geração, manteve-se a vida inteira ligado à mesma mulher, Joanne Woodward, sem que constassem rumores acerca de eventuais escapadelas. Quantos saberão amar assim? Recordo-o sobretudo em Gata em Telhado de Zinco Quente (1958), no Hitchcock de A Cortina Rasgada (1966), mas muito especialmente em Corações na Penumbra (1962), onde interpreta na perfeição o papel de um gigolo atormentado pela sua própria fraqueza de carácter.
Encantada, segui os meus homens com devoção. Atrás destes vieram outros, extraídos aqui e ali de várias gerações de actores. Espiei-os muitas vezes em circunstâncias que nunca terei oportunidade de testemunhar fora de uma sala de projecção. Na guerra, em várias situações limite, fui uma observadora atenta dos seus gestos, das suas idiossincrasias. E se o cinema me levou a idealizá-los também me ajudou a percebê-los melhor.
Só falei de gringos? Naturalmente. A indústria cinematográfica apanhou-me numa fase da vida em que a minha consciência crítica relativamente ao imperialismo americano deixava muito a desejar. Os rendez-vous na cinemateca viriam a acontecer mais tarde, mas já sem a chama dos meus primeiros tempos de cinefilia...

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quinta-feira, novembro 29, 2007

Cinema Nostalgia (19)


No tempo em que na lua havia rios

Há aparições na tela que ficam para sempre gravadas na memória do cinema. Uma das mais inesquecíveis é a de Audrey Hepburn à janela do seu apartamento novaiorquino, de viola na mão, cantando uma melodia que Henry Mancini compôs para ela como se estivesse em estado de graça: “Moon River”.
Cantava num sussurro, ao jeito da bossa nova. Talvez não por acaso: nesse filme – Breakfast at Tiffany’s (1961) – ela representava uma “boneca de luxo”, pronta a rumar ao Brasil, onde daria um presumível golpe do baú. E chega até a pronunciar umas frases num português bem perceptível.
O golpe jamais se concretiza: Audrey troca a miragem da fortuna por um amante sem dinheiro. E em nenhuma outra actriz isso soava tão credível. Da novela ácida de Truman Capote, Blake Edwards fez uma deliciosa comédia romântica que ainda hoje parece não ter ganho rugas. Um filme só possível por incluir Audrey à cabeça do elenco: ela deixava sempre um rasto de fascínio na tela. Todas as películas que protagonizou perduram no subsconsciente do espectador.
O que havia nela de tão especial? Uma espantosa fotogenia que desafiava os padrões de Hollywood à época, sem dúvida. Mas, mais que isso, dela se poderá dizer o que Truman Capote escreveu sobre Holly Golighly, a rapariga de província que desembarca em Nova Iorque para satisfazer todos os sonhos: “Ele triunfava sobre a fealdade, o que tantas vezes é mais sedutor que a verdadeira beleza.” Como se o autor de Música Para Camaleões soubesse de antemão quem encarnaria a sua criação literária na adaptação para cinema.
Com aquela silhueta esguia e um par de olhos capazes de iluminar a escuridão de uma viagem ao fim da noite, Audrey Hepburn triunfou sobre a fealdade numa sucessão de obras-primas que a transformaram num dos maiores ícones da modernidade forjados nas salas de espectáculo. Quer fizesse de manequim (Funny Face, de Stanley Donen, 1957) ou de religiosa (A História de uma Freira, de Fred Zinnemann, 1959), em épicos como Guerra e Paz (de King Vidor, 1956), em westerns como O Passado não Perdoa (de John Houston, 1960) ou até em fitas de espionagem (Charada, outra vez de Donen, 1963). Milhões de jovens dos anos 50 imitaram-lhe o original penteado quando a viram cortar o cabelo numa cena de Férias em Roma (William Wyler, 1953), filme que lhe valeu o Óscar com apenas 24 anos. Lançaria uma nova mode de calçado baptizada com o nome da sua personagem ao interpretar Sabrina (Billy Wilder, 1954). E deu uma sofisticação sem par ao cockney londrino com a sua fabulosa Eliza Doolittle, em My Fair Lady (George Cukor, 1964).
“As pessoas julgam que uma estrela de cinema tem necessariamente um ego gigantesco. Na verdade, é essencial não ter ego nenhum.” São ainda palavras de Capote nesse tratado sobre as luzes e sombras da sedução que é Breakfast at Tiffany’s. Palavras que parecem aplicar-se em cheio à tocante fragilidade de Audrey, actriz mais etérea do que carnal, nos antípodas de várias divas suas contemporâneas, como Kim Novak ou Ava Gardner.
Tantos anos depois, é ainda o fio da sua voz que irrompe entre as nossas melhores recordações das noites de cinema: “Oh dream maker, you heart breaker, / Wherever you’re going I’m going your way...”
Onde quer que vamos, ela acompanha-nos. E se ela nos disser que existem rios na lua, nem por um instante somos capazes de duvidar.

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domingo, novembro 25, 2007

Cinema Nostalgia (18)

Os dois no carro. Ela tensa e desconfiada, ele pragmático e demasiado descontraído. Têm pela frente uma longa viagem e nós, em total dissonância com o par, instalamo-nos no assento de trás, a pressentir que o que vem a seguir só pode ser imperdível. E é.
Um homem e uma mulher podem ser amigos, ou o sexo aparece sempre no meio? – esta é uma das questões provocatórias que saltam, do diálogo fabuloso que se desenrola entre os dois, para a nossa agenda. Podem? (Quando saí do cinema tratei logo de averiguar. Os resultados, confesso, ainda hoje me dão que pensar. Mas isso é outra conversa...)
Presos cada um às suas idiossincrasias, Meg Ryan e Billy Crystal lançam-se numa disputa que os transcende. O que se desenha ali, desde o começo, é uma guerra dos sexos, mas ao contrário das muitas disputas de género que já vimos no cinema esta é sustentada por um guião brilhante, servida por desempenhos inesquecíveis e sublinhada a cores por uma banda sonora de luxo.
Um Amor Inevitável
(no original When Harry Met Sally), dirigido por Rob Reiner e com argumento de Norah Ephron (que recebeu uma nomeação para o Óscar), tem a capacidade rara de nos prender ao ecrã desde os primeiros minutos porque é uma comédia inteligente e manipuladora. Inteligente porque prescinde desde logo do modelo baseado em personagens estereotipadas a que nos habituámos nesta categoria de filmes. E manipuladora porque ao sermos surpreendidos por um Harry e uma Sally (as personagens de Crystal e Ryan) credíveis, envolvemo-nos mais do que é suposto acontecer quando se trata, afinal, de assistir a uma comédia.
Porque é muito real, este par não permanece estático. Vemo-lo evoluir, assim como a relação que vai construindo ao arrepio da lógica e da sua própria vontade, como tantas vezes acontece na nossa vida.
Cada um investido das razões que naturalmente os qualificam como oponente do outro, Harry e Sally são também a metáfora do que pode ser, sobretudo nos tempos que correm, a relação entre um homem e uma mulher. Da luta à rendição, desenrola-se um novelo feito de conflitos de interesses, interferências hormonais despropositadas - e mesmo inconvenientes - , curiosidade, desconfiança e admiração.
Quando, na cena final do filme, os protagonistas assumem, enfim, o romance, o nosso sorriso flutua entre a condescendência e a ternura, como quem pensa “que parvos!” E no fundo, estamos, provavelmente a pensar em nós: orgulhosos, complicados, patéticos e divertidos, donos da metade de uma verdade que para ter graça precisa mesmo de encaixar na outra.
Um Amor Inevitável foi, para mim, um amor à primeira vista. E em vinte anos não envelheceu. Continua irresistível!

Nota: na foto a célebre cena do falso orgasmo de Meg Ryan, aliás Sally Albright

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segunda-feira, novembro 12, 2007

Cinema Nostalgia (17)


No princípio era o western

No princípio era o western. Foi com O Grande Assalto ao Comboio, uma fita de 1903 com apenas 12 minutos de duração, que nasceu o cinema como arte ficcional. A força da imagem impressa em película era tão grande que permitia ao cinema ir mais longe e mais fundo do que a História: a mitologia do Velho Oeste recriada nas salas de espectáculo impôs-se ao que realmente aconteceu. Cada país tem direito às suas epopeias: os Estados Unidos ganhavam enfim a sua. Na larga tela, todos os sonhos se tornavam possíveis. Ou, como diz uma célebre personagem de John Ford, “when the legend becomes fact, print the legend.”
Onde começa a ficção, onde acaba a realidade? A pergunta tem pleno cabimento nos casos dos westerns protagonizados por John Wayne. Porque, se como disse alguém, o cinema americano é o western, do mesmo modo este género cinematográfico nada seria sem John Wayne. O mítico, o único, o inconfundível John Wayne.
Não terá havido actor mais “tarimbeiro” no cinema americano do que Marion Morrison, nascido a 26 de Maio de 1907 (era um típico Gémeos, o signo de todas as transfigurações). Os registos de Hollywood contabilizam cerca de cem películas que terá rodado entre 1926, ainda no tempo do mudo, e 1939. Quase todos westerns baratuchos, de série B, quase todos filmes medíocres, rodados em meia dúzia de dias nos estúdios da Republic. Foi uma longa aprendizagem até se recriar aos 32 anos, no papel de Ringo, em Stagecoach (Cavalgada Heróica). Surgia o western tal como o conhecemos, Marion Morrison dava lugar a John Wayne. Print the legend.
Nascia uma estrela. E nenhuma foi maior do que Wayne. Ao ponto de se confundir com todo um género cinematográfico, transportando a mesma personagem de filme para filme. Uma personagem com espessura, com passado, marcada pelo tempo e magoada por conflitos de toda a espécie mas que nunca perde uma certa integridade interior. Não há moralismo mas há sempre uma moral nos filmes de Wayne, cowboy que nunca abandona os códigos de honra num mundo onde a única lei é a da bala.

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Cinema Nostalgia (17-II)


Peter Bogdanovich escreveu em 1972 esta frase que hoje nos parece uma evidência: “Podemos estar contra as posições da direita de Wayne, mas isso não tem a mínima importância quando analisamos o seu trabalho.” É ainda Bogdanovich, nas páginas de Pieces of Time (um dos mais fascinantes livros sobre cinema de todos os tempos), que elabora o melhor retrato de Wayne como actor: “Uma figura familiar, clássica – inconfundível seja qual for o ângulo -, que se move num mundo de ilusão que conquistou em absoluto”. No fundo, as estrelas de cinema são assim. Nunca interpretam tão bem como quando se interpretam a si próprias. Wayne era genial a fazer de Wayne: o passo lento e bem medido, a fala breve e ríspida, o olhar duro onde ainda perpassa um rasto de candura.
Dirigido por John Ford e Howard Hawks, protagonizou mais obras-primas do que qualquer actor do seu tempo e provavelmente do que qualquer actor de todos os tempos. Fiquemo-nos pelo western: depois de Cavalgada Heróica, rodou Forte Apache, Os Dominadores, Os Três Padrinhos, Rio Grande, A Desaparecida, O Homem que Matou Liberty Valence (de Ford), Rio Vermelho, Rio Bravo e El Dorado (de Hawks). Além de outras que jamais se apagarão da memória de nenhum cinéfilo, como Homens Para Queimar e O Homem Tranquilo (ainda de Ford).
Mas em nenhum outro ele vai tão bem como no seu filme-testamento: O Atirador (The Shootist, de Don Siegel, 1976). Aqui personagem e intérprete fundem-se como nunca: na vida real, Wayne é um homem à beira do fim, devorado por um cancro; o mesmo se passa com o protagonista, John Bernard Books, um mito ainda em vida, sobrevivente do Velho Oeste em pleno século XX. Aquele mundo em que o cavalo dava lugar ao automóvel já não era o seu. Mas Books-Wayne mantinha intacto o lema que o tornara célebre: “Não serei enganado, não serei insultado, não deixarei que outros me deitem a mão.”
Nessa Carson City que já nada tinha a ver com o tempo dos pioneiros, o temível “atirador” confessava afinal à viúva Rogers (interpretada por Lauren Bacall): “Sou um homem à beira da morte, que tem medo do escuro.” Frágil Wayne, vulnerável Wayne, enfim regressado à condição humana neste maravilhoso western crepuscular que marcava também o fim de uma era em Hollywood. John Wayne não voltaria a filmar. O western praticamente desapareceu como género cinematográfico. E nós não voltaríamos a ver cinema com os nossos olhos encantados de meninos.

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domingo, outubro 28, 2007

Cinema Nostalgia (16)


Saí do velho cinema Berna contrafeita. Apesar de o filme ser longo e intenso, o que me apetecia verdadeiramente era dar meia volta e tornar a vê-lo. Se não estivesse acompanhada, era o que faria. Nos ouvidos ainda me ecoava aquele sinistro som do telefone a tocar, o telefone que vibrou naquele dia fatídico, num daqueles dias em que a vida parece que nos engole. Era uma Vez na América tem em comum com outros tantos filmes que me marcaram uma narrativa labiríntica, em que passado e presente se misturam. Estou agora a lembrar-me de dois filmes assim: "O Paciente Inglês" e "O Padrinho II", neste último caso também com Robert De Niro. Se formos a ver não há forma de narrar uma história de vida mais próxima da perfeição. Também a nossa se desenrola assim aos nossos olhos. Passado e presente sempre misturados, como um todo.
Sergio Leone, naquela que considero ser a sua obra-prima, conta-nos a história de Noodles (Robert De Niro), um rapazinho pobre que se faz nas ruas de Nova Iorque, com uma sensibilidade notável. Já vi muitos filmes sobre a América, nomeadamente filmes de gangsters (e é também disso que se trata aqui), mas este, mais do que um filme, é uma declaração de amor. Porque quando a realização é cuidada ao detalhe e os planos se sucedem sem pressas, não cedendo às conveniências comerciais, que aconselham uma certa agilidade na acção, quando as soluções encontradas para os avanços e recuos no tempo são sempre de uma elegância e originalidade suprpreendentes, percebemos que estamos a ver uma obra de arte.
Não fosse a sua magistral prestação em “Touro Enraivecido”, “Taxi Driver” e “O Padrinho”, eu diria que De Niro encontrou em Noodles o papel da sua vida. Mas este actor é de facto grande demais para caber todo num só desempenho. Felizmente para nós, amantes de cinema, depois de 1984, ano em que foi estreado "Era Uma Vez na América", reencontrámo-lo várias vezes em papéis inesquecíveis. Mas, confesso, é neste filme que gosto mais de o ver. Extraordinária a transposição que Leone faz no tempo através da mímica deste actor, nomeadamente na passagem para o presente, com Noodles já no limiar da velhice. É certo que a caracterização nos situa imediatamente. Mas o cabelo enbranquecido e as rugas só nos dizem em que fase da vida da personagem é que estamos, ao passo que os gestos lentos, o olhar desencantado nos falam de toda a amargura que acumulou, do percurso que fez até ali. Que contraste com o olhar ainda cheio de esperança de 30 anos antes...
James Woods, diga-se em abono da justiça, também assina aqui uma das suas mais impressionantes interpretações. Ele é Max, o amigo a quem Noodles se liga desde a infância e cuja ambição acaba por destruir tudo e todos à sua volta. A sua ânsia de subir na vida incorpora a sede de que é feito o sonho americano: poder ser tudo e chegar lá, no matter how... A América das expectativas, da violência e da ingenuidade passa por este par: o vencido e o vencedor (primeiro potencial, depois virtual vencedor). Daí que este filme seja muito mais do que a narrativa da passagem de um homem pela vida. A contextualização da história de Noodles, rica em detalhes, confere a "Era Uma Vez na América" a dimensão de um épico, sublinhado a traço grosso pela partitura do grande Ennio Morricone.
Porque saí eu tão contrariada daquela sala de cinema, sem paciência para voltar à minha realidade? Porque não há nada mais perturbador do que assistir numa cadeira às voltas que a vida pode dar a um homem. Afinal todos nós temos que fazer escolhas e ao fazê-las optamos irreversivelmente por um destino, deixando para trás outra vida possível, muito provavelmente outra identidade. Mas o que nos incomoda mais é saber que há escolhas que nos são impostas por acidentes de percurso pelos quais não somos responsáveis. Essa fibra de que é feita a sorte e o azar é que nos transtorna, porque nos traz à consciência a nossa vulnerabilidade.
A profunda tristeza, plasmada nos olhos perdidos de Noodles na cena final do filme, que é também a primeira a que assistimos, antes de ficar a saber tudo o que lhe aconteceu, deixou-me incapaz de encarar com um mínimo de interesse a estúpida perspectiva de em seguida ir lanchar à Versailles.

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sábado, outubro 20, 2007

Cinema Nostalgia (15)


O espírito e a carne
De que me lembro quando me lembro de Deborah Kerr? De Karen Holmes, a esposa adúltera que troca um capitão por um sargento numa praia do Havai. De Terry McCay, que se apaixona perdidamente por Cary Grant nesse inesquecível melodrama que é O Grande Amor da Minha Vida. Da freira que partilha uma ilha quase deserta com o bebedolas Robert Mitchum numa deliciosa comédia de John Huston, justamente intitulada O Espírito e a Carne na versão portuguesa. Recordo-a em bastantes outros filmes – de Júlio César a Vidas Separadas. Mas lembro-a sobretudo noutro papel de freira, para o qual parecia predestinada, numa das mais admiráveis obras-primas do cinema: Quando os Sinos Dobram, da dupla Michael Powell-Emric Pressburger. Filmada num fabuloso technicolor, com cores cada vez mais quentes à medida que a acção progride, ela era muito mais carne que espírito, apesar das vestes religiosas. Aprendi definitivamente com esse filme que o hábito não faz o monge. O cinema, está visto, também serve para nos iluminar por dentro.
Havia mais inquietação por detrás da força tranquila do olhar azul de Deborah Kerr – uma inquietação que só cineastas de muito talento souberam desvendar. E ela trabalhou com vários – de Leo McCarey a Elia Kazan, passando por Joseph L. Mankiewicz. Faltou-lhe talvez só filmar com Alfred Hitchcock, que tinha uma notória inclinação por louras de olhar gélido, talvez frígidas sem remissão, talvez vulcões ocultos por uma ilusória camada de gelo. Na década de 50, que foi a década de ouro de Deborah, Hitch andava encantado com outras louras, chamadas Grace Kelly ou Kim Novak, e não fez caso desta compatriota de voz de veludo e perfeita dicção londrina. Azar dele, infortúnio dela: se tivessem filmado juntos, estaríamos hoje certamente a venerar em todas as cinematecas do planeta essa película que afinal nunca existiu.
Deborah Kerr deixou de ser carne, tornou-se espírito: acaba de morrer aos 86 anos. Apenas com um Óscar honorário no currículo: espantosamente, Hollywood nunca a premiou no auge da carreira. Fala-se tanto em injustiça a propósito dos Óscares: esta foi uma das mais evidentes.
Disse que deixou de ser carne? Exagero meu. Basta revermos uma vez e outra aquela cena antológica do mar a afagar-lhe as pernas, a humedecer-lhe o corpo enquanto Burt Lancaster a estreita nos braços com a urgência do primeiro ou do último beijo trocado entre dois seres errantes nos confins do universo. É esta a grande força do cinema: permite sempre a ressurreição da carne, projectada no infinito. Até à eternidade.
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segunda-feira, outubro 01, 2007

Cinema nostalgia (14)


Blade Runner

Hoje é um filme de culto, mas na altura dividiu opiniões. Adorei-o, na primeira vez que o vi. Penso que é um dos últimos grandes filmes dos anos 80, um dos mais imitados e um dos derradeiros clássicos.
Explico-me melhor: no futuro, na época que será a de Blade Runner, talvez o cinema esteja dividido entre clássico, baseado em histórias e personagens, e pós-clássico, com a sua obsessão por efeitos digitais e onde o enredo é uma componente secundária. Dito de outra forma, talvez o cinema se esteja a tentar libertar da literatura, em busca de um terreno dominado pelo lado visual.
Apesar de tudo, no ano em que foi feito, 1982, Blade Runner era uma película muito ousada, até estranhíssima, misturando elementos de uma realidade ampliada, de banda desenhada e policial negro, com ambientes expressionistas, arquitectura futurista, imagens dentro da imagem. Sem abandonar os modelos do seu tempo, incorporava ideias de diversas origens. Por isso, talvez seja um dos primeiros filmes verdadeiramente pós-modernos.
A história baseava-se numa ideia central que ia beber ao cerne do filme negro: o protagonista, Deckard (Harrison Ford), parecia uma pobre figura. Quase sentíamos a sua inferioridade, a dor física, as dúvidas, as hesitações, o conflito moral, enquanto ele tentava caçar os replicant, seres manipulados geneticamente que mal se distinguiam dos humanos. Deckard é um homem duro, sem dúvida, um detective disposto a cumprir a sua missão. Mas a que preço! A sua fragilidade, em contraste com as personagens que aquele actor então encarnava, era quase tocante. Estes heróis divididos anunciavam uma nova era digital, fragmentada e ambígua.
Além dos actores (Rutger Hauer, Sean Young), o filme tinha outros pontos fortes, como a música electrónica de Vangelis, que ajudou imenso a criar uma atmosfera futurista, sem falar na competente realização de Ridley Scott, que vinha da publicidade e sabia gerir um ritmo alucinante.
Se não me engano, este foi o primeiro filme (de muitos) baseado numa história de Philip K. Dick. O magnífico escritor não tinha a arte da prosa de Ray Bradbury (para citar um exemplo de outro grande autor de ficção científica), mas conseguiu, como ninguém, reflectir sobre um problema contemporâneo crucial: nas suas histórias, tudo gira em torno da incerteza do observador em relação ao que é a realidade.
Esta não é apenas incerta, ela pode ser manipulada. No caso de Blade Runner, temos uma incógnita centrada na questão do humano. O que é um ser humano, após a manipulação genética?
Como visionário, Dick compreendeu de imediato as implicações morais da tecnologia genética e da sua manipulação. Mas acho que consegue ir mais longe, tocando num nervo que hoje já é mais compreensível: o que vemos pode não ser autêntico.
Existe uma incerteza em todas as imagens, pois a tecnologia facilitou a sua adulteração; existe dúvida em cada momento das histórias que os media veiculam; existe uma manipulação silenciosa em tudo o que nos rodeia. O corolário era a ideia da paranóia, que invadiu o cinema contemporâneo, num exagero não inteiramente compreensível.
Na arte dos românticos, havia bons e maus, sem cinzentos; os modernistas carregaram nos cinzentos; e a evolução disto é a total inversão da ordem; o mal e o bem estão de tal forma misturados que se tornam difíceis de distinguir um dos outro. Acho que Blade Runner foi um precursor desta nova forma de ver o mundo. É também um daqueles filmes felizes, destinados a serem imitados e copiados, como Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick (71); Johnny Guitar, de Nicolas Ray (54); Metropolis de Fritz Lang (27) ou ainda À Bout de Souffle, de Jean-Luc Godard (59).
Modelos de vida humana que deram incontáveis clones.

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domingo, setembro 23, 2007

Cinema Nostalgia (13)


Aquilo não era comigo, mas sabia que um dia teria, inevitavelmente, que ser como elas. Essa perspectiva fascinava-me e inquietava-me ao mesmo tempo. Ser mulher? Poder, enfim, andar de saltos na rua sem chinelar (como me acontecia quando andava por casa com os sapatos da minha mãe) era o máximo! Já a história dos beijos na boca.... afigurava-se-me um bocado nojenta e no entanto eu bem via que elas gostavam... Mistérios insondáveis que eu sabia jamais poder descortinar através dos meus pais, mas que de filme para filme eu ia descodificando...
De joelhos esfolados, invariavelmente sentada no chão, ainda não tinha idade nem paciência para ficar a olhá-las por muito tempo. Nessa época só as sondava por escassos minutos, para logo regressar à segurança das minhas brincadeiras de menina.
Mas fui crescendo. Do chão passei para o sofá e à medida que as cicatrizes iam desaparecendo dos meus joelhos ganhei, sei lá porquê, o hábito de traçar a perna. Alguns rostos já me eram familiares: Marilyn Monroe, Grace Kelly, Audrey Hepburn... mulheres lindas, de olhos estonteantes, bocas sensuais, perfis perfeitos. Alguma vez viria a ser como elas? Era óbvio que não, mas a sua beleza insuperável não me desencorajava nem ofendia. Era, pelo contrário, uma inspiração.
Passei a estudar-lhes os gestos e a guardar na memória momentos de puro encantamento, como o de Marilyn a sussurrar “Kiss” em Niagara, ou de Lauren Bacall, em Ter ou Não Ter a dizer com ar de provocação para o seu BoogieSabes assobiar, não sabes? É só juntar os lábios e soprar!” Conseguiria alguma vez atirar o fumo do meu cigarro para a cara de um rapaz com aquele estilo?
Às vezes gostava de esquecer-me que existia e vestir-lhes a pele. Mesmo depois dos filmes terminarem alimentava a fantasia de que os outros conseguiam, de alguma forma, revê-las em mim. Nessas ocasiões a voz saía-me levemente alterada, assim como as expressões do rosto e a linguagem corporal. Mais determinada se o filme era protagonizado por Jodie Foster ou Jane Fonda, mais doce se tinha acabado de ver Michelle Pfeiffer no ecrã...
O cinema, para mim, também foi isto. A possibilidade de aprender com as mulheres mais fascinantes do mundo. Se não tive aproveitamento garanto que a culpa não foi das mestras... tenho provas que as ilibam. Em filme.

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sábado, setembro 15, 2007

Cinema Nostalgia (12)



O que terá acontecido a Karen Black?

Durante um certo período – um período demasiado longo, podem crer – todo o glamour parecia ter sido banido do cinema. Sei do que falo: fui vítima disso. As actrizes belas e vaporosas, que pareciam irreais e nos faziam sonhar, eram um símbolo do passado. Elizabeth Taylor e Natalie Wood, por quem estive estupidamente apaixonado, haviam deixado praticamente de filmar. E todas as outras a que justamente chamávamos estrelas tinham sumido sem deixar rasto. Quando me tornei espectador regular de cinema, no lugar das estrelas havia a “mulher comum” – último grito de guerra feminista contra a visão “estereotipada” da beleza feminina posta num pedestal.
Essa moda limitou-se afinal a substituir uns esterótipos por outros, bem menos estimulantes. A “mulher comum”, com uma absorvente carreira profissional e as preocupações de todas as mulheres, era personificada nos ecrãs por actrizes que mal nos fariam virar a cara num movimento de instintiva, irreflectida e patética admiração se as encontrássemos na rua. Actrizes cheias de talento mas desprovidas de glamour, como Diane Keaton, Mia Farrow, Sally Field, Meryl Streep. Actrizes que ocultavam os traços congénitos de beleza para surgirem na tela como epítomes da “classe trabalhadora” ou do radicalismo político, como Jane Fonda e Vanessa Redgrave. Actrizes que podiam ser iguais a qualquer mulher com quem nos cruzávamos num transporte público, como Karen Allen e Geneviève Bujold. Insuportáveis ruivas britânicas, como Samantha Eggar e Sarah Miles. Actrizes desprovidas de qualquer traço de beleza, como Karen Black, Liza Minnelli ou Shelley Duvall.
Acreditem: foram tempos pavorosos. Papei as estreias de todos os filmes de todas estas inenarráveis “mulheres comuns” e abominei a minha má sorte de espectador. Havia encanto no nariz de Barbra Streisand? Talvez não. Mas nessa era onde o romantismo havia sido praticamente varrido dos ecrãs por estar fora de moda até Barbra Streisand parecia esbanjar charme num filme ousadamente romântico como O Nosso Amor de Ontem (Sydney Pollack, 1973). Que, não por acaso, nos transportava aos anos 40.
Mero problema de geração, que me fazia olhar para as actrizes dos tempos dos meus pais e avós com um fascínio que só agora entendo devidamente. No período dos grandes estúdios, quando era uma “fábrica de sonhos” sem complexos de qualquer espécie, Hollywood mostrou ao mundo as melhores mulheres de sempre. Carole Lombard, Heddy Lamarr, Paulette Goddard, Olivia de Havilland, Ginger Rogers, Gene Tierney, Rita Hayworth, Ava Gardner, Ingrid Bergman, Joan Fontaine, Kim Novak, Audrey Hepburn, Cyd Charisse, Grace Kelly, Jane Russell, Alida Valli, Lauren Bacall, Shirley MacLaine, Jean Peters, Lee Remick, Marilyn Monroe. Que, não raras vezes, eram também excelentes actrizes – como podemos comprovar hoje melhor que nunca. Não admira que me tivesse tornado adepto fervoroso de filmes antigos: para ver “mulheres comuns” não era preciso ir ao cinema...

Até que um dia, como sucede a todas as modas, também esta mudou. O glamour deixou de ser pecado. O mundo cansou-se dos exageros feministas e as mulheres voltaram a surgir nos ecrãs irradiando beleza, sem recearem excomunhões políticas nem o discurso iracundo da sociologia de pacotilha que antes as proibia de agradar aos homens.
Foi com alívio que vi chegar a nova era. Demi Moore moldando barro n’ O Espírito do Amor. Michelle Pfeiffer subindo para um piano n’ Os Fabulosos Irmãos Baker. Meg Ryan a ser cortejada à moda antiga por Billy Crystal em Um Amor Inevitável. No topo dos cartazes passaram a figurar os nomes (e os rostos e os corpos) de Sharon Stone, Diane Lane, Nicole Kidman, Gwyneth Paltrow, Charlize Theron, Kate Winslet, Cameron Diaz, Salma Hayek, Catherine Zeta-Jones, Natalie Portman, Rachel Weisz. E – thank heaven for little girlsScarlett Johansson. Tão belas como as deusas de outrora.
Às vezes interrogo-me o que será feito de Karen Black. E de Karen Allen. Mas, com toda a franqueza, quero lá saber...

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segunda-feira, setembro 10, 2007

Cinema Nostalgia (11)




A Oeste Nada de Novo

Embora seja um belíssimo filme, A Oeste Nada de Novo, de Lewis Milestone, é uma daquelas obras sem sorte, um dos clássicos perdidos.
Talvez seja o filme mais escuro, quase negro, que jamais vi. Está repleto de sombras, chuva, noite. Os cinzentos são carregados. É um filme sem esperança, desolado e amargo. Devia ter sido um belo aviso, mas não passou de um grito inútil.
Nesse ano, 1930, Howard Hawks realizou um dos filmes da minha juventude (talvez mesmo da minha infância), A Patrulha da Alvorada. Já o escrevi noutra crónica, mas essas imagens ainda hoje perduram na minha memória como algo de inimitável, de extraordinariamente poderoso. Só vi esse filme uma vez. Não se tratava da glorificação da guerra, bem pelo contrário, ali se exibia toda a crueza e desperdício, mas a película de Hawks não perdia de vista certas emoções que ocupam a motivação dos guerreiros, a tranquila coragem, por exemplo, uma espécie de vertigem a que alguns chamam heroísmo, mas que também pode ser definido como inelutável destino.
A Oeste Nada de Novo era talvez mais cru e ganhou o óscar desse ano. Tratava-se de uma película radicalmente pacifista, que não fazia concessões à fantasia, pelo seu realismo bruto e simples, hoje tão interessante.
No entanto, apesar da consagração, o filme de Milestone estava destinado a uma certa maldição. Era um grito dado fora de tempo, claro; chegavam os anos de chumbo e o pacifismo não passava de uma ingenuidade.
Tem qualquer coisa de ingénuo, este filme. Começa com a espantosa ingenuidade dos rapazes que vão para a guerra salvar a pátria em perigo; nos primeiros combates, sentimos a incrível ingenuidade do treino militar, que não preparou os recrutas para a verdade do terreno. Morre-se no caos do combate, na confusão nocturna do campo de batalha.
A Oeste Nada de Novo impressionou-me pela sua autenticidade. Baseado num romance então muito popular de um escritor alemão, o filme americano mostrava a passagem pelo inferno da primeira guerra mundial de quatro soldados alemães. Este era, pois, um objecto estranho: um filme em que os heróis eram soldados inimigos, afinal exactamente como "nós".
O filme levou-me a ler o livro de Erich Maria Remarque com o mesmo título, sem dúvida uma das obras-primas da literatura do século XX. Este é um pequeno romance de grande pureza, reduzido ao essencial e sem fogo-de-artifício técnico. Assim despido, tem a força de um exército.
Vendo à distância, a versão de cinema não atinge as mesmas altitudes, pois não se resiste à tentação sentimental da época. Milestone era um técnico competente (um judeu russo, imigrante, chamado Milstein) e manteve-se o mais próximo possível da narrativa original, mas há passagens algo lamechas, com excessos ainda típicos do cinema mudo, que se extinguira poucos anos antes.
Estes defeitos não explicam a forma como o filme também se apagou. Quatro anos depois, Hitler estava no poder na Alemanha e, uma década depois, o mundo estava de novo em guerra. O actor principal, Lew Ayres (um curioso nome português), tentou ser um pacifista na segunda guerra e condenou a carreira, perdendo a sua oportunidade. Lew Ayres tem uma história interessantíssima, com altos e baixos que fazem deste, de facto, o seu único filme importante. Ayres foi casado com Ginger Rogers, que surge neste blogue, alguns posts mais abaixo.
Enfim, A Oeste Nada de Novo motivou um remake, em 1979, uma película sem qualquer interesse, que se limita a actualizar as imagens da versão de 1930.
Claro, é preciso ver a pobreza do segundo para se perceber a força do primeiro. Não existe a mesma consciência do peso das sombras e das trevas do inferno. A segunda versão é um banal filme de guerra, com personagens fardadas. O primeiro é um filme contra todas as guerras, um panfleto que ninguém soube ler.

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sábado, setembro 08, 2007

Cinema Nostalgia (10)


A minha memória é uma péssima ficcionista. Invariavelmente envia-me guiões com datas pouco fiáveis, personagens que não encaixam nas histórias que reinventa e, o que é pior, argumentos que pecam pela inverosimilhança. Fascinada por detalhes, é capaz de sacrificar o todo a um pormenor: um sorriso, um gesto, uma inflexão de voz por vezes são apenas o que ela é capaz de guardar de uma pessoa com quem me cruzei na vida.
Por maioria de razão, a minha memória do cinema em parte também é feita assim: de filmes sem nome, rostos desfocados, frases lapidares, passos de dança, trechos musicais. Uma espécie de patchwork onde tudo acaba por se conjugar.
A maioria dessas memórias difusas é constituída, evidentemente, pelos filmes que vi muito precocemente na televisão. Enterrada no sofá, desfiei muitas tardes de domingo a ver musicais, filmes de cóbois e de gangsters dos anos 30/ 40, a época de ouro de Hollywood.
Muito antes de aprender a usar a palavra western, já conhecia John Wayne de ginjeira. E embora não soubesse explicar, se me perguntassem, o que era um filme negro, já era cliente assídua das histórias protagonizdas por Humphrey Bogart e Edward G. Robinson.
Esses primeiros passos que damos como consumidores de filmes são sempre vacilantes. Às vezes aborreciam-me os intermezzos musicais intermináveis das fitas do Fred Astaire, tanto que chegava a adormecer. Outras vezes ficava, fascinada, a vê-lo flutuar com a Ginger Rogers nos braços e a perguntar-me se afinal seria legítimo eu estar a gostar tanto de uma coisa tão demodée.
Não raramente, os meus pais contribuíam, ainda mais, para estas minhas inquietações quando se punham a comentar, com ar cúmplice, como aquelas estrelas eram lindas “no seu tempo” e tinham envelhecido tanto com o passar dos anos. Esses desabafos recorrentes dividiam-me: faria sentido eu criar empatia com aquele friso de múmias, algumas já falecidas, outras retiradas há anos do cinema?
Do alto dos meus nove, dez anos passava-os então em revista. Roupas, penteados, atitudes, tudo fora de moda! Por um lado aborreciam-me aquelas minhas simpatias tão anacrónicas, mas o que fazer de tantas horas de intimidade partilhadas domingo após domingo naquela fase da minha vida em que não me acontecia absolutamente nada que se comparasse às suas aventuras na tela?
“A Dama de Xangai”, “Do Céu Caiu uma Estrela”, “Relíquia Macabra”, “Ter ou Não Ter”, “Rio Bravo”, “A Roda da Fortuna” e “Ritmo Louco” foram algumas das obras que passaram pelos meus olhos distraídos de miúda. O que terei retido de Astaire, de Rita Hayworth, de Boogie e de James Stewart? E do génio de Frank Capra, Orson Welles, John Huston, Howard Hawks, Vincente Minnelli e George Stevens, os mestres que os dirigiram? Coisas de nada (a minha memória é muito imprecisa quanto a esta matéria). Porém suficientes para ter ficado com um vício. Dos bons.

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terça-feira, setembro 04, 2007

Cinema Nostalgia (9)



Noites Brancas

Alguns filmes valem pela atmosfera que os seus autores conseguem criar. É uma qualidade difícil de definir, talvez relacionada com detalhes quase invisíveis: um reflexo no fundo da imagem, a brisa que agita o cabelo, o som da música que mal se ouve. A capacidade de criar um ambiente geral que se inscreve mais na imaginação de quem vê do que na sequência real das imagens ou da história é própria dos grandes filmes. Explico-me melhor: nem todos os grandes filmes têm esta qualidade intangível, mas quando ela existe, estamos geralmente perante obras-primas.
Serve o longo preâmbulo para lembrar Noites Brancas, de Luchino Visconti (1957). O grande realizador italiano é geralmente mais citado por causa do sublime O Leopardo (1963) ou pelo esplendoroso Morte em Veneza (1971). O prazer de ver um bom filme é algo de pessoal e, no que respeita à obra de Visconti, confesso que fiquei mais impressionado com Obsessão (1943), com Senso (1954), mas sobretudo com este Noites Brancas, baseado na novela homónima de Fiodor Dostoievski.
Na realidade, não se passa muito no filme. Não há uma acção complexa, nem uma história com linha nítida, diálogos imortais. Por vezes, a câmara parece apenas seguir as suas personagens, na húmida escuridão de uma qualquer cidade italiana. Noites Brancas é uma obra sobre a solidão, sobre a ilusão do amor, e um percurso poético pelos labirintos da alma. Uma deambulação onírica.
Um homem apaixona-se com uma mulher que ama outra pessoa e, por breves instantes, sonha com a possibilidade de conquistar aquele amor. A narrativa é apenas isto, mas Visconti consegue ir muito além deste dispositivo aparentemente simples, transformando a cidadezinha numa espécie de palco. Na obra literária, falta a profundidade dos trabalhos posteriores de Dostoievski, a compreensão total do humano. No fundo, é quase ingénua, banal e infantil a personagem feminina que, todas as noites, espera ansiosamente o homem por quem se apaixonou. E é patético o narrador, que ouve a sua história sem que ela compreenda o amor que lhe provocou. E, de súbito, surge o amante que prometera regressar e temos o desenlace esperado. O narrador vivera uma quimera.
No entanto, ao retirar este triângulo da esfera do real, ao dar-lhe uma dimensão flutuante, própria dos sonhos, Visconti recria a obra literária, concedendo uma importância surpreendente à luz, às sombras, à noite, ao canal que atravessa a vila, à pedra molhada da rua, às paredes mal iluminadas e às janelas ocultas.
Tudo é encenado ao pormenor, num ambiente frio, cheio de neblinas e desencontros, que parece vazio de emoções, mas que afinal se transforma na testemunha quase viva das ridículas paixões humanas.
Sim, parece ser esse o triunfo de Visconti: a atmosfera pulsa, com vida, como se fosse ela a figura principal que observa as pobres personagens. O ambiente, o cenário, é onde nós estamos, os espectadores, absolutamente fascinados com aquela ópera turbulenta que se move à nossa frente.

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sábado, agosto 04, 2007

Cinema Nostalgia (2)


Há filmes que não se explicam e Barry Lyndon, de Stanley Kubrick, é certamente um desses filmes. Quando o vi, pela primeira vez, tinha uns 15 anos e foi como se tivesse descoberto um novo continente. Há qualquer elemento que transporta o viajante para um universo etéreo, pictórico, narrativo, não sei, mas que paira a grande altitude. Lembro-me de ter pensado: “Então, o cinema é isto”. Mas, se me perguntam a que me refiro, não saberei dizer.
Barry Lyndon é a história de um aventureiro irlandês do século XVIII. Baseia-se num romance escrito em 1844 pelo escritor vitoriano William Makepeace Thackeray, As Memórias de Barry Lyndon. Kubrick fez uma mudança crucial: no filme, não há memórias, pois o narrador omnisciente conta-nos uma história real, cujas peripécias são autênticas, ao contrário da versão literária, onde o que se conta pode muito bem ser fantasiado. O herói participa em duelos, em batalhas, em espionagem; vive a adrenalina do jogo, da traição, do amor, da guerra; Barry Lyndon deserta, engana, é enganado; seduz mulheres, dá o golpe do baú; é odiado; acaba na miséria.
Apesar da preocupação realista, que inclui inovações técnicas que permitiram filmar à luz das velas ou da exactidão dos detalhes (uniformes, tácticas militares, castelos), Kubrick consegue criar uma atmosfera separada da realidade. Por vezes, as imagens são como pinturas e a vida de Redmond Barry flui como num sonho.
Podia também estender-me sobre a qualidade dos actores: Marisa Berenson ficou, para mim, como o arquétipo da beleza feminina. O esplendor da música barroca e a subtileza da música irlandesa. Podia falar da beleza esplendorosa das imagens, da precisão das palavras, do ritmo lento da narrativa.
Este é um filme tão perfeito, que deve ser visto várias vezes.
Kubrick foi um dos grandes realizadores do cinema e, na minha opinião, este filme é a sua obra-prima. Gosto muito de Roubo no Hipódromo e, sobretudo, o Caminho da Glória (julgo que é este o título em português), mas Barry Lyndon consegue o que nos outros filmes não surge tão nítido: criar um universo totalmente separado e levar-nos ao seu interior, deslumbrados.
Para mim, este é o filme mais europeu que jamais foi feito, no sentido de constituir uma espécie de tratado sobre o cerne da nossa civilização. E a ironia é que foi realizado por um visionário americano.

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