Se eu quisesse enlouquecia.
Fugia dos que caminham campos alagados. Vidas de águas paradas. Vidas que se atolam no chão lamacento dos seus dias. Como se o seu destino fosse enterrar os pés num lodo que os adoece de apatia. Deslizam na quietude dos pequenos vícios e chamam-lhe felicidade. Caminhar como o vizinho é a única certeza da estagnação do pensamento e da qual fujo antes que a morte se antecipe.
Se eu quisesse enlouquecia.
Despia-me deste corpo e caminhava sobre a mediocridade com a serenidade de quem atravessa campos de trigo. O trigo de verão que me acaricia a cara como o sol que não há. No céu inteiro de dúvidas, doira-me os olhos e faz-me acreditar que os dias se merecem.
Um sol que aquece o meu céu interior. Um céu que nasce todos os dias desde o dia em que o céu cá fora se fechou. A água, mesmo fria e lamacenta ainda me lembra os dias que dela nasci antes de ser pantanosa. Quando era apenas limpa e quente. E caminhado o meu campo alagado toco com a ponta dos dedos nas espigas de esperança e volto a acreditar que os dias me merecem.
Se eu quisesse enlouquecia.
Deixava de flutuar nos medos que me escravizam as noites e acordava em manhãs novas de fé que emergem em cada dia alagado.
A água, mesmo escura, é vida. Na água tudo é leve. Tudo parece o que não é. A opacidade da sua cor distorce a dor de não sermos. Apenas perecemos, todos dos dias, mais um dia. Com ela, escorro pelos dias, lavo a tristeza dos outros que é a minha mas que em mim não aceito.
Se eu quisesse enlouquecia.
Parava de me caminhar. De rasgar com a força das pernas a monotonia dos dias alagados. De contrair a carne que tende a cair de melancolia, agitar o sangue com a poesia dos pequenos gestos e deter o coração de bater seguro enquanto resisto à inércia das horas e à coerência da felicidade.
Renunciava a ser disforme. Seria apenas uniforme e conforme.
Desistia de escolher o curso da minha água. De olhar para traz e ver o meu rasto ainda marcado no sentido da vida.
Se que quisesse enlouquecia.
Se não fosse já louca.
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