Contos, crônicas e cartas

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sábado, 30 de abril de 2011

* A Sérgio Keuchgerian

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Porto Alegre, 10 de agosto de 1985.


“... isso que chamamos de amor, esse lugar confuso entre o sexo e a organização familiar...”

Sérgio, não sabia como começar — então comecei copiando essa frase aí de cima, é Caetano Veloso numa entrevista ao JB, vim lendo pelo caminho, não consegui me livrar dela.

Agora estou aqui, escrevendo pra você no meu quarto antigo, que minha mãe conserva tal-e-qual, como se eu um dia fosse voltar para casa. E lá se vão — quantos mesmo? — sei lá, quinze, vinte anos, qualquer coisa assim.

Chove. Faz frio. E bom estar aqui. Tão bom, Me sinto protegido. Ficamos vendo velhas fotografias, bebendo vinho e rindo muito. Meu irmão Felipe vestiu um modelinho de couro negro e saiu “para dar uma prensa numa caixa de supermercado”. Márcia está tão bonita. E Rodrigo, meu sobrinho, que tem dois anos e não parece quase me desconhecer. Deixei-os vendo um filme antigo dos Beatles, Lennon repetindo “d‟ont let me down, d‟ont let me down” — e agora percebo que meu inglês anda tão precário que não lembro se é d‟ont ou don‟t.

Cansado, cansado. Quase não dormi. E não consigo tirar você da cabeça. Estou te escrevendo porque não consigo tirar você da cabeça. Hesito em dizer qualquer coisa tipo me-perdoe ou qualquer coisa assim. Mas quero te contar umas coisas. Mesmo que a gente não se veja mais. Penso em você, penso em você com força e carinho. Axé.

Foi mau, ontem. Fui mau, também. Menos com você, mais comigo mesmo. Depois não consegui dormir. Me bati pela casa até quase oito da manhã. Teria telefonado para você, não fosse tão inconveniente. Acabei ligando para Grace, pedi paciência, chorei, contei, ouvi.

Não era nada com você. Ou quase nada. Estou tão desintegrado. Atravessei o resto da noite encarando minha desintegração. Joguei sobre você tantos medos, tanta coisa travada, tanto medo de rejeição, tanta dor. Dificil explicar. Muitas coisas duras por dentro. Farpas. Uma pressa, uma urgência.

E uma compulsão horrível de quebrar imediatamente qualquer relação bonita que mal comece a acontecer. Destruir antes que cresça. Com requintes, com sofreguidão, com textos que me vêm prontos e faces que se sobrepõem às outras. Para que não me firam, minto. E tomo a providência cuidadosa de eu mesmo me ferir, sem prestar atenção se estou ferindo o outro também. Não queria fazer mal a você. Não queria que você chorasse. Não queria cobrar absolutamente nada. Por que o zen de repente escapa e se transforma em sem? Sem que se consiga controlar.

Te escrevo com um cigarro aceso e uma xícara de chá de boldo. A escrivaninha é muito antiga, daquelas que têm uma tampa, parece piano. Tem um pôster com Garcia Lorca na minha frente. Um retrato enorme de Virginia Woolf. E posso ver na estante assim, de repente, todo o Proust, e muito Rimbaud, e Verlaine, Faulkner, Italo Svevo, William Blake. Umas reproduções de Picasso. Outras de Da Vinci. Um biscuit com um pierrô tão patético. Uma pedra esotérica ainda de Stonehenge, Inglaterra, uma caixinha indiana. Todos os meus pedaços aqui.

E você não me conhece, eu não conheço você.

Te escrevo por absoluta necessidade. Não conseguiria dormir outra vez se não escrevesse.

Zelda, há também o único romance escrito por Zelda Fitzgerald, a mulher de Scott Fitzgerald, que morreu louca, um incêndio, um hospício. Chama-se Save me the waltz. Reserve-me a valsa, não é lindo? Lembra o Brahma, se se dançasse no Brahma.

Please, save me the waltz.

Fiz fantasias. No meu demente exercício para pisar no real, finjo que não fantasio. E fantasio, fantasio. Até o último momento esperei que você me chamasse pelo telefone. Que você fosse ao aeroporto. Casablanca, última cena. Todas as cartas de amor são ridículas. Esse lugar confuso de que fala Caetano. E eu estava só começando a entrar num estado de amor por você. Mas não me permiti, não te permiti, não nos permiti. Pedro Paulo me dizendo no ouvido “nunca vi essa luz nos seus olhos”.

Eu não queria saber.

Tão artificial, tão estudado. Detesto ouvir minha voz no gravador ou ver minha imagem em vídeo. Sôo falso para mim mesmo. A calma, o equilíbrio, as palavras ditas lentamente, como se escolhesse. Raramente um gesto, um tom mais espontâneo. Tão bom ator que ninguém percebe minha péssima atuação.

Você compreende tudo isso?

Pausa. Campainha. O jornal de domingo. Desço, outro chá de boldo. Um comentário de Rubens Ewald sobre Aqueles dois, diz que é “excelente”, fala da “dignidade e tratamento delicado dado ao tema”. Lembro da crítica de Sérgio Augusto, de como fez mal por dentro. Já passou.

Quando pergunto você-compreende-tudo-isso não estou subestimando você. Quando pergunto se você quer que eu leia suas histórias, ah deus, perdoe. Não sinto agressividade nenhuma em relação a você. E gosto das tuas histórias. E gosto da tua pessoa. Dá um certo trabalho decodificar todas as emoções contraditórias, confusas, somá-las, diminuí-las e tirar essa síntese numa palavra só, esta: gosto.

Dormi umas três horas e acordei ouvindo Quereres, de Caetano. Repeti, várias vezes, cada vez mais alto. Ah, bruta flor, bruta flor do querer. Discutia tanto com Ana Cristina Cesar, antes que ela acolhesse a morte (acertadamente? me pergunto até hoje, nunca sei responder): nossa necessidade fresca & neurótica de elaborar sofrimentos e rejeições e amarguras e pequenos melodramas cotidianos para depois sentar Atormentado & Solitário para escrever Belos Textos Literários.

O escritor é uma das criaturas mais neuróticas que existem: ele não sabe viver ao vivo, ele vive através de reflexos, espelhos, imagens, palavras. O não-real, o não-palpável. Você me dizia “que diferença entre você e um livro seu”. Eu não sou o que escrevo ou sim, mas de muitos jeitos. Alguns estranhos.

Não há nenhum subtexto nisto que te escrevo. Não acho bonito que a gente se disperse assim, só isso. Encontre, desencontre e nada mais, nunca mais, é urbano demais — e eu nasci praticamente no campo, até os 15 anos quase no campo, céu e campo. Não sei se a gente pode continuar amigo. Não sei se em algum momento cheguei a ver você completamente como Outra Pessoa, ou, o tempo todo, como Uma Possibilidade de Resolver Minha Carência. Estou tentando ser honesto e limpo. Uma Possibilidade que eu precisava devorar ou destruir. Porque até hoje não consegui conquistar essa disciplina, essa macrobiótica dos sentimentos, essa frugalidade das emoções. Fico tomado de paixão.

Há tempos não ficava.

E toda essa peste, meu amigo. O que tem me mantido vivo hoje é a ilusão ou a esperança dessa coisa, “esse lugar confuso”, o Amor um dia. E de repente te proíbem isso. Eu tenho me sentido muito mal vendo minha capacidade de amar sendo destroçada, proibida, impedida, aos 36 anos, tão pouco. Nem vivi nada ainda. E não sou, sequer promíscuo. Dum romantismo não pós, mas pré todas as coisas — um romantismo que exige sexualidade e amor juntos. Nunca consegui. Uns vislumbres, visões do esplendor. Me pergunto se até a morte — será? Será amor essa carência e essa procura de amor, nunca encontrar a coisa?

Das minhas heterossexualjdades, dois filhos mortos, não ficou nada. Das minhas homossexualidades, esse pânico lento e uma solidão medonha. A hora é tão grave.

Vim pegar energia. Sim. Preciso ver a terra, preciso do horizonte do pampa. Já começa a agir, meus ombros se soltaram. Olhei no espelho e aquela ruga entre as sobrancelhas se desfez.

Não quero me tornar uma pessoa pesada, frustrada, amarga. Não vou me tornar assim. Então vacilo, escorrego e a mania de perfeição virginiana e a estética libriana no dia seguinte me dizem “que vergonha, que vergonha, que vergonha”. Eu podia dizer que tinha/tínhamos bebido demais. Eu podia dizer que estava com tanto medo de vir para Porto Alegre. Eu podia contar a você dos meus últimos meses, oito, dez, doze horas por dia sobre a máquina de escrever, falando com quase ninguém. Sozinho, às vezes. Cantando também. Tudo isso, se eu te dissesse, talvez tivesse ajudado a doer menos em você.

De repente me passa pela cabeça que você pode estar detestando tudo isso, e achando longo e choroso e confuso. Mas eu não quero ter vergonha de nada que eu seja capaz de sentir. Tento não ficar assustado com a idéia que este tempo aqui é curto, que vou voltar a São Paulo e que talvez não veja mais você. Sei que não fico assustado demais, e enfrento, e reconstituo os pedaços, a gente enfeita o cotidiano — tudo se ajeita. Menos a morte.

Mas de tudo isso, me ficaram coisas tão boas. Uma lembrança boa de você, uma vontade de cuidar melhor de mim, de ser melhor para mim e para os outros. De não morrer, de não sufocar: de continuar sentindo encantamento por alguma outra pessoa que o futuro trará, porque sempre traz, e então não repetir nenhum comportamento. Ser novo.

Quando te falo da idade, quando te falo do tempo — e não tivemos tempo — queria te falar de Cronos, Saturno, da volta pelo Zodíaco quando se completa 30 anos. A tua estrela é muito clara, tem sinais bons na tua testa. Compreendo teu Plutão e a Lua encarcerados na Casa XII— as emoções e as paixões aprisionadas —, e também Urano, todo o impulso bloqueado. Na mesma casa, a do Karma, a dos espíritos que mais sofrem, tenho também o Sol, Mercúrio e Netuno. Somos muito parecidos, de jeitos inteiramente diferentes: somos espantosamente parecidos. E eu acho que é por isso que te escrevo, para cuidar de ti, para cuidar de mim — para não querer, violentamente não querer de maneira alguma ficar na sua memória, seu coração, sua cabeça, como uma sombra escura. Perdoe a minha precariedade e as minhas tentativas inábeis, desajeitadas, de segurar a maçã no escuro. Me queira bem.

Estou te querendo muito bem neste minuto. Tinha vontade que você estivesse aqui e eu pudesse te mostrar muitas coisas, grandes, pequenas, e sem nenhuma importância, algumas.

Fique feliz, fique bem feliz, fique bem claro, queira ser feliz. Você é muito lindo e eu tento te enviar a minha melhor vibração de axé. Mesmo que a gente se perca, não importa. Que tenha se transformado em passado antes de virar futuro. Mas que seja bom o que vier, para você, para mim.


Com cuidado, com carinho grande, te abraço forte e te beijo


.................................................................................................................Caio F.


PS — Te escrevo, enfim, me ocorre agora, porque nem você nem eu somos
descartáveis.

E amanhã tem sol



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sábado, 16 de abril de 2011

* A Thereza Falcão

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SP 02.03.90


Thereza,
sua carta me deixou feliz. Não se preocupe com não-respostas ou longos silêncios. Sou a pessoa mais indicada para compreender esse tipo de coisa. Pior são as cartas que escrevo, juro que mandei, depois de um tempo encontro em algum lugar.

Gostei de tudo que você conta sobre As frangas - a idéia da camiseta é ótima! -, só fico torcendo para que tudo dê certo. E no que for necessário, conte com a minha ajuda. Ando com As frangas - Parte II: a missão engatilhado pra escrever. Tenho frangas novas, como a Cassandra, que tem olhos maquiadíssimos (tipo Liz Taylor em Cleópatra) e é chegada numa magia, a Berenice, gaúcha, com penas de verdade e olhos de lantejoula vermelha, e até alguns frangos, o Antonio Pedro de Almeida Prado, fazendeiro gordo e solteirão, do interior de São Paulo, dividido entre o amor (fiel) de Ulla e o amor (galináceo) de Otília, muito mais interessada naqueles campos todos de Ribeirão Preto. Tem também o Pink Punk, que esconde furiosamente ter nascido em Assumpción, Paraguai, mente que é inglês e tem um visual moderníssimo, parece desenhado por Picasso.

Das antigas, que uma época foram mandadas para Porto Alegre, numa das vezes que fiquei em casa, desapareceu a Juçara. Decidi que está na Amazônia, claro, muito envolvida com ecologia e o Santo Daime. Blondie também sumiu: foi fazer um tour de rock pelo mundo, cantando no backin vocal.

Tenho a impressão que, a hora em que sentar para escrever, simplesmente sai. Só que enlouqueci e comecei a escrever um romance. Na verdade eu vinha trabalhando nele desde 1985, de repente uma tarde, numa fila de banco, de repente fez click! E ficou pronto na minha cabeça. Tenho escrito todo dia. Como quem carrega pedras, naquela neurose de querer a perfeição. Até maio deve estar pronto. Pelo menos uma primeira versão.

No meio disso, continuo dirigindo um laboratório de criação literária, nas Oficinas Oswald de Andrade, fazendo resenhas de livros para O Estado, e tentando sobreviver de 10 mil maneiras. Repito que não vão acabar comigo.

Haja fé.

Como disse - acho que disse - da outra vez, confio plenamente na sua adaptação.

Na seqüência, conte comigo para o que for preciso.

Dê um beijo no Marcelo por mim. Andei ligando para ele algumas vezes - mas estava sempre ocupado ou ninguém atendia.

Frangas adoram ficar penduradas no telefone.

É isto, espero que você esteja conseguindo dar conta de todos esses trabalhos.

Muito carinho, um beijo


................................................................................................Caio F.


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quinta-feira, 14 de abril de 2011

* A Vera Antoun

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London, London — insone quase manhã de abril [de 1974]

Desisti enfim de tentar dormir, abri as cortinas para mais um dia cinzento de primavera (primavera inglesa, é claro), sentei na mesa e fico olhando a paisagem de casas semidemolidas e chaminés até onde o olho alcança. Fumei o último cigarro (Number Six), sinto fome - não tem nada aberto a essa hora e, mesmo, só tenho 80 pences que precisam durar até amanhã. Homero saiu para trabalhar, me deixou o relógio. Vezenquando um ventinho entra pelas frestas da janela e faz musiquinha nos sinos chineses que dependurei no teto. As tulipas que roubei do parque de Swiss Cottage desbundaram definitivamente - só ficaram duas amarelas, levemente bodiadas.

Tua carta chegou ontem. Minuano é um vento que só existe no Rio Grande do Sul e que, dizem, sopra nos Andes. Em Porto Alegre só tem raramente, mas em Santiago do Boqueirão, onde nasci, tinha sempre. Zune fininho nas portas e janelas, corta os lábios e atravessa qualquer roupa. Minuano é cortante, impiedoso, gelado.

Tenho medo de te ferir. Mas acho que precisamos “falar seriamente”. Desculpe, mas acho que sim, sem fantasia, sem comicidade. Me pergunto sempre se você não teceu em volta de mim uma porção de coisas irreais - se você não estará projetando em mim qualquer coisa como um príncipe encantado - esperando a minha volta como quem espera a salvação. Você diz que me ama. Eu digo que você não pode amar a uma pessoa com quem transou há três anos atrás, e que viu rapidamente num aeroporto, e que escreveu e recebeu cartas durante um ano. Verinha, sei lá, amor a gente transa cara a cara, corpo a corpo. Não sei se te amo. Saberei isso quando a gente se encontrar outra vez e começar a transar, e der certo ou não.

Você fala em casar. Algum tempo atrás falei nisso talvez por romantismo, por solidão ou brincadeira, ou mesmo seriamente. Não quero casar. Casamento é uma coisa completamente estúpida - e sua explicação de comprar a aprovação das famílias não tem o menor sentido. Se você me amar e eu te amar, não precisamos da aprovação de ninguém para ficar juntos, como também não precisamos assinar nenhum papel ou aceitar qualquer espécie de jogo. Não acredito que maus fluidos, por mais fortes que sejam, consigam destruir um amor bonito, limpo. E um filho só teria problemas com o fato dos pais não serem casados apenas no caso de ter sido educado muito caretamente - o que não acontecerá se um dia eu tiver um filho.

Há também uma outra coisa muito séria que você não pesou bem até agora. E sou muito franco com você: tenho um componente homossexual muito forte. Até hoje, minhas relações heterossexuais sempre foram, sei lá, meio idiotas - porque, realmente, afora você e uma outra garota gaúcha, M., o corpo feminino é uma coisa que não consegue me entusiasmar. Nunca fui exclusivamente homossexual ou exclusivamente heterossexual - creio que nunca serei. Mas também me pergunto até que ponto você REALMENTE poderia aceitar isso em mim. Pense com você mesma e procure ser muito honesta na resposta.

Verinha, estou mesmo voltando e tudo começa a ficar muito real. Não posso mentir a você, não quero, sei lá, que você entre numa errada comigo. Que você se machuque ou, como diziam minhas tias quando eu era guri, “tenha uma desilusão”. Mas a verdade é que ainda não quero me prender a nada, a nenhum lugar, a ninguém - a não ser que isso pinte com muita força, o que é impossível de acontecer por carta. Além disso, sou terrivelmente instável e entender as minhas reações é coisa que às vezes nem eu mesmo consigo.

Não posso mentir a você, não quero. Mas por favor não fantasie, menina, não seja demasiado adolescente. Como eu te escrevi várias vezes, é no nosso encontro, cara a cara, olho a olho, que as coisas vão se definir. Veja se você consegue separar o sonho da realidade. Anel, por exemplo, é um sonho. E um sonho que trago comigo há muito tempo e que comuniquei a você - e que não é hora ainda de ser realidade, porque não tenho absolutamente nada além da minha cuca - você me entende? Minha profissão é essa coisa absurda de escritor, que não dá dinheiro nenhum, estou sempre recomeçando e recomeçando e recomeçando. É muito duro. Ontem por exemplo só tomei um café - hoje vai ser o mesmo. Eu agüento - mas um bebê, Vera?

Menina, menina, tenho uma ternura enorme por você - e para mim é muito difícil isolar essa ternura da razão, quando te escrevo. Como fiz agora. Talvez tenha te parecido duro ou demasiado frio. Mas acho, honestamente, que você não deve se arriscar a ter uma tremenda decepção, depois de um ano inteiro de sonhos. Nós vamos nos ver, nós vamos conversar, sair juntos, provavelmente nos tocar - e de repente tudo pode realmente ser. Ou não. Mas de jeito nenhum quero, sei lá, ser irresponsável ou não medir as conseqüências dum negócio que pode ser muito sério.

(Não agüento de fome e de vontade de fumar. Volto já).

Voltei. São 8.30, comi um sanduíche no grego, comprei cigarros no hindu e voltei cantando em espanhol (Perfídia). Londres é assim.

Sabe que eu tô muito velho? Outro dia me deram 30 anos. A minha cara tá cheia de marca, ruguinhas. O meu olho caiu ainda mais e tem uma expressão de cansaço absoluto. O cabelo, que era minha maior “arma”, caiu muito, tem entradas incríveis e nenhum brilho. Rio pouco e quase não falo. Pense também nisso, tire a sua cabecinha da lua: você não vai encontrar nenhum modelo de beleza na sua frente. Europa marcou fundo, e aquele menino cheio de vida e acreditando em tudo que você conheceu em 71 ficou perdido entre pilhas de pratos e panelas sujas num restaurante sueco, no verão passado. Já não sou o mesmo, como você também não é. Endureci um pouco, desacreditei muito das coisas, sobretudo das pessoas e suas boas intenções. Dar um rolé em cima disso não vai ser nada fácil. E as marcas ficarão - tatuagens.

Quero muito te amar e me encontrar contigo. Mas não sei se conseguiremos - e tenho medo.

Atravessando duas semanas muito duras. A escola onde trabalho como modelo entrou em férias - e só reabre segunda, dia 22. Resultado: fiquei sem emprego. Descolei umas limpezas na casa dum ator, mas dá pouquíssimo e no fim de semana gastei tudo num passeio péssimo à ilha de Wight. Provavelmente irei lá pelo dia 15 de maio. Quero ir com o Sol ainda em Touro, tenho bode de Gêmeos. Provavelmente também não poderei ficar no Rio. Não consigo economizar nada. Além disso, vou chegar muito horroroso, branco deste inverno que não acaba (oito meses) e exausto. Meu plano é passar um mês no Sul, tratar do meu livro e mil coisas, também descolar dinheiro para poder ir ao Rio + tarde. Hilda - aquela minha amiga escritora de Campinas mandou dizer que talvez possa me dar uma for$a no fim de maio. Então talvez a gente possa se ver em junho (julho, nas tuas férias - queria muito ir à Bahia contigo).

Tenho escrito. Voltou o demônio (ou o anjo, não sei). Da peça, já tenho uma meia-hora escrita e o resto na cuca. Estou gostando, os diálogos estão ficando bons. Por enquanto o título é Vamos fazer uma festa enquanto o dia não chega?. É muito amarga, eu acho, talvez demais. Sinto uma falta medonha da minha máquina de escrever - acho que é o que mais amo no mundo.

Intento uma macrobiótica meio fajuta - cortei carne, açúcar, gorduras. Tenho comido quase só arroz integral, vegetais e frutas. Queijo e pão. Não encontro ban-chá em Londres. Só chá de Mu, que é meio enjoativo. Mas tenho um vício realmente péssimo: latinhas de coca-cola. Não consigo resistir.

Não sei se te falei de Serginho. Creio que sim. Ele foi preso de novo, está incomunicável, vai ficar 2 meses, depois será deportado para o Brasil. Um dia te falarei muito sobre ele. Procure ouvir Angie com Mick Jagger. As pessoas estão indo embora. Amsterdam, Paris, Suécia, Escócia. Augusto, Orlando, Lize, Zé, Rogério, Paulo Afonso, Débora. É triste, porque chega ao fim mais um ciclo que não se repetirá - mas é bom porque todos estão tão machucados, tao...

(9h. Esquento panelões de água — a água quente pifou — pra tomar banho e ir ao dentista às 11h).

Do outro lado da rua passa um garoto gordo com casaco verde. Acho que os garotos gordos devem sofrer muito.

Leio Alice's adventures in Wonderland - também conhecido como Alice no País das Maravilhas - em inglês - uma batalha vencida pouco a pouco. Homero rouba porradas de livros sobre Gertrude Stein e Alice B. Toklas - quer escrever um ensaio sobre o caso das duas. Na outra página te mando um poema que escrevi há alguns meses. O título é uma tampinha de caixa de sal - reproduzo o desenho porque, no momento, não tenho nenhuma das referidas caixas à mão.

Te beijo
Te espero em carta.


.....................................................................................................................Caio



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quinta-feira, 7 de abril de 2011

* A Vera Antoun

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Porto Alegríssimo, 4 de janeiro de 1973

Verinha-maravilha, por onde anda você, tão distanciada, tão silenciosa? Em que nova galáxia posso te encontrar outra vez, morena como uma princesa raptada por beduínos no deserto? Vezenquando baixa uma saudade, quase sempre clara como tem sido o ar verde-azulado deste verão, e fico sentindo falta do teu jeito lento de chegar pisando em nuvens, sempre azul. As coisas andaram meio escuras para mim, durante muito tempo, depois, o fim do inverno levou as amarguras e tudo se renovou; estou pronto, outra vez, para te encontrar na areia do Leme ou nas salas estragadas do conservatório, expressões corporais, alquimias. Hoje vesti verde, em homenagem ao eclipse em Capricórnio, e de repente, não mais que, a redação quase vazia, uma tarde quase quebrando de tão clara, você chegou na minha saudade. Escrevo. Há muito para dizer, mas é uma pena que não se possa mandar uma carta cheia de silêncio, que é música.

Siboney me trouxe, há alguns meses, o livro do Waly (muito ruim) e uma carta tua, que não cheguei a ler porque ele não me entregou. Estou trabalhando neste jornal há quase uma semana, ganhando relativamente bem e juntando $$$ para viajar, em junho, para a Europa. Há uns quinze dias ganhei um prêmio literário do Instituto Estadual do Livro, com um conto chamado Visita, que me deu dinheiro, alegria, segurança e mil lancezinhos. Estou TRI. Tenho disciplinado a minha vidoca, semana que vem começo a fazer ioga, pela manhã, e logo depois uma dieta macrobiótica. Logo após, um curso de conversação de francês e outro de inglês - quero atravessar o Atlântico muito bem preparado, as asas dispostas a qualquer vôo. Saio muito pouco, prefiro ficar em casa transando minhas coisas, meu cachorro Tirésias, descendente de nobres chineses, uma enorme família de periquitos azuis, verdes e brancos, estudando magia e astrologia (ando afiadíssimo - você continua a estudar?). Porto Alegre é considerado um dos grandes centros magnéticos do mundo e, em conseqüência disso, há aqui diversas sociedades esotéricas, como a FEEU (que tem uns livros sensacionais) e a GFU (onde faço ioga, fundada por um peruano, com cursos de cosmobiologia e astrologia). Dizem que será aqui o novo centro de irradiações para todo o Brasil, depois de passada a epidemia baiana, e eu acredito... As pessoas andam lindas, com as cucas ótimas, profundíssimas.

Andei viajando muito (fiz 4 viagens em dois meses), nas últimas consegui a integração, sem nenhum mau momento, sou muito sujeito a bads. De outra vez vi Deus, era um menino que me dizia para não perder a infância, que a infância era Deus. De outra foi a Capela Sistina inteira nas nuvens. Morreram vários amigos meus nesse fim de ano, doenças, loucuras, desastres, foi duro ter a morte tão perto, mas eu soube desdobrar a desantenação inicial para curtir o que eles deixaram de bom. Estou muito velho, e cada vez mais criança. Aprontei um novo livro de contos, chamado O ovo apunhalado, que está participando de um concurso literário em Brasília. Mesmo que o prêmio não saia, já arranjei um editor por aqui, e é provável que até o fim deste ano você me receba em livro pela vez terceira. Aprendi a gostar de viver e ser feliz. Depois dessa viagem sei que há um tempo claro e calmo à minha espera, a casa no campo, os livros e discos, os amigos do peito e nada mais. Só que as coisas têm a hora certa de chegar, eu sei que você sabe, e por estranho que pareça preciso ainda ser um pouco machucado pela sifilização, para que o vôo seja mais seguro, depois, e sem volta. Você sabe também que quem sobe neste avião não consegue mais voltar à terra, mas só chegarão ao destino os que não tiverem medo. Onde anda você, menina que me ensinou tanta coisa nova?

Antes de viajar pretendo dar uma volta pelo Brasil, rever as não muitas mas muito intensas pessoas que fui deixando nos lugares por onde andou minha magreza: S. Paulo, Campinas, Florianópolis, Rio, Cabo Frio, Belo Horizonte. Então verei você e Henrique. Mas até lá, por favor, escreve contando de você, de tudo, de todos. Não quero nunca me perder de você, nem preciso dizer isso porque você sabe que um Virgem e um Touro não se perdem mesmo - é astralmente impossível. Portanto, mesmo que você cometa a vileza de me deixar sem resposta, num outro de repente a gente se encontra numa esquina, numa praia, num outro planeta, no meio duma festa ou duma fossa, no meio dum encontro a gente se encontra, tenho certeza.

Vou ver se acho no jardim lá de casa um amor-perfeito para mandar junto com a carta. Dê um grande abraço em Henrique, em todos os seus irmãos e naquela mãe maravilhosa que vocês têm. Sempre seu


......................................................................................................Caio


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segunda-feira, 28 de março de 2011

* A Vera Antoun

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Estavam ali as portas
Janelas e varandas.
Estavam ali
Na fronteira do olhar
Onde o de dentro encontra
Justamente
Com o de fora.
Nesse ponto exato
Elas estavam:
Bastava um gesto.
Mas o meu estar parado
Era maior que eu.
Estar parado
Estar vivo:
A mesma incompreensão
E medo
Entre mim
E aquele estar das coisas.
Estar ali
Como nunca ter chegado.
Estar ali
Por estar ali
E além de mim
O que eu não ousava.
Ah
Relembro a amplidão dessas varandas intocadas
Os pequenos raios de luz
Nos vidros coloridos das janelas.
Revejo a dura consistência da porta
Cerrando seu segredo.
E me retomo
Ali
No imóvel do gesto que não fiz.
Como se pudesse
Agora
Escancarar portas e janelas
Para sair nu pelas varandas
Desvairado e nu
Profeta, louco, infante,
Sair para o vento
O sol, as tempestades, as neves,
As quedas de estrelas e Bastilhas,
O cheiro de jasmins
Entontecendo os quintais.
(pudesse retomar manhãs, amigo,
manhãs perdidas como tudo
que não fui)
Mas continuo Ali.
Aqueles espaços
Permanecem mortos dentro de mim.
Como um corpo que se ama
E não se toca.


Londres 4.2.74


(Fiz depois duma bad lisérgica e dum papo muito duro com Serginho. Você gosta?)



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quarta-feira, 2 de março de 2011

* A Vera Antoun

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Porto Alegre, 21 de março de 1972.

Verinha querida; escrevi para você e Henrique há muito tempo, em dezembro. Não recebi nenhuma resposta, fiquei grilado com o silêncio, achando que vocês não me queriam mais ou, na melhor das hipóteses que o correio havia extraviado a minha carta. De qualquer jeito, era uma carta muito besta, falsa e descolorida — eu estava atravessando uma fase muito ruim, me sentia exilado aqui em Porto Alegre, vazio, sem nada pra dizer, a não ser que gostava imensamente de vocês dois e não queria perdê-los. Talvez fosse um pedido de socorro envergonhado. O socorro não veio, nem de vocês nem de ninguém, e fui obrigado a me investigar e afundar em mim mesmo durante todo esse tempo, no começo assim como quem cava um poço no deserto, depois, aos poucos, sentindo a areia mais úmida, uns filetes d’água brotando lentamente, até agora, quando me sinto na iminência de mergulhar o corpo nesse lago (talvez mar)-eu-os outros cosmos, não sei.

Eu ia te escrever qualquer dia, eu tinha - e tenho - um monte de coisas pra te dizer, aquelas coisas que a gente cala quando está perto porque acha que as vibrações do corpo bastam, ou por medo, não sei. Mas as coisas todas, externointerno, eram muito difíceis e escuras, eu não tinha condições de mostrar ou dar nada a ninguém que não fosse também escuro, compreende? Eu não queria, eu não quero dar trevas, dor, medo, solidão - eu quero dar e ser luz, calor, amparo (naquela cerimônia do chá em Sta. Teresa eu disse que queria ser ombro, você disse que queria ser um ovo — será que um ovo pode se apoiar num ombro sem quebrar?). A noite passada sonhei com você, e acordei hoje todo cheio de Verinha, você sentada comigo na frente do Conservatório, você na praia, você de branco, você sorrindo e apertando os olhos, você de tantos jeitos que eu não tinha outra solução senão sentar e escrever, embora com medo de não poder, de não saber, quando a gente segura um vidro a gente tem medo de quebrá-lo. Sobre o sonho não falo, talvez você achasse ridículo, mas era bonito.

Passei coisas difíceis. Fui demitido da Bloch e estive preso por porte de drogas. Depois disso, voltei para cá e, durante algum tempo, mergulhei numa série de viagens lisérgicas, de onde saí mais confuso do que nunca. Perdi minha identidade, me desconheci. Passei um mês inteiro trancado no quarto, sentindo dor. Não exatamente sentindo, mas sendo dor, sem falar com ninguém, sem pensar nada, sem fazer nada. Passei janeiro na praia, com meus pais e meus irmãos, e em fevereiro fomos pra Itaqui, uma cidadezinha na fronteira com a Argentinas onde moram meus avós e tios. Acho que foi um pouco o ter voltado a encontrar a paisagem da minha infância que me fez reencontrar também comigo mesmo, voltar a abrir os olhos e não fugir mais. Toda aquela terra, as cadeiras na calçada e as pessoas olhando o céu, sabendo da natureza, as ruazinhas estreitas, as casas velhas, a ausência de televisão, de automóveis, de civilização — tudo isso faz parte do mais fundo de mim, onde comecei, onde estou plantado. A vontade compulsiva de me atordoar cedeu lugar à vontade de ser simples, ser terra (como Jorge de Lima: “Nunca fui senão uma coisa híbrida/ metade céu, metade terra com a luz de Mira- Celi dentro dos olhos”) e quando voltamos para Porto Alegre, eu já estava em pleno processo de regeneração.

Estou fazendo análise, ontem tive a primeira sessão. Não é análise tradicional: o paciente esticado no divã e o analista remexendo a cuca com seu bisturi-freudiano-kleiniano-enferrujado. O método de um alemão Schultz (o papa germânico da psicanálise), fundamentado na auto-hipnose, concentração, relaxamento, meditação, auto-análise - baseado nas filosofias orientais, ioga, zenbudismo, tao. O paciente aprende a dominar seu corpo e sua mente e, no último estágio, alcança uma grande paz ou conhecimento (espécie de nirvana ou satori), encontra dentro de si reservas de criatividade e pode orientar-se para qualquer objetivo, auto-estimulando-se. Os exercícios de concentração, como a ioga, podem levar a ter visões de cores, paisagens paradisíacas, essas coisas. E tudo isso acaba com a ansiedade, a angústia, a insegurança. Vai ser bom e vou conseguir.

Depois das viagens, estive quase paranóico. Vi monstros horrendos nas pessoas, me senti perseguido e encurralado, aí me tranquei em casa e, cada vez que saía, era um suplício — voltavam as ondas do sunshine e eu achava que as pessoas iam me morder, rir de mim, um inferno. Quando melhorei um pouco, tentei sair e procurar alguns amigos, mas não consegui nenhuma integração com eles. Fiquei surpreendido com o grau de vampirização das pessoas: todas elas preocupadíssimas em falar, falar, falar, extrair opiniões, orientações, dicas, dizer coisas inteligentinhas, mostrarem que não são caretas, que não têm medo, que não sentem dor. Cada contato meu com alguma pessoa representava uma perda enorme de energia vital: eu saía esgotado, confuso, com dor de cabeça e, principalmente, com dor por não poder fazer nada pelo desespero alheio. A minha própria miséria aumentava. Foi aí que a solidão deixou de ser involuntária para se transformar em escolha. E foi bom, está sendo bom. Passo o dia lendo, ouvindo música, vendo velhos filmes na televisão, de vez em quando vou ao cinema ou saio para passear na beira do rio que passa atrás do edifício. Fico lá sentado numa pedra, fumando e pensando nas pessoas que perdi, senão em afeto, pelo menos em proximidade física. De vez em quando choro, é bom chorar, eu não tenho vergonha, mas em todos os momentos existe a certeza de ter feito uma escolha acertada, de estar caminhando em direção à luz. Não nego nada do que fiz, também não tenho arrependimentos ou mágoas: eu não poderia ter agido de outra maneira — mesmo em relação a você — levando em conta o quanto eu estava confuso naquela época. Também já não tenho aquelas queixas infantis, na base do “tudo dá errado pra mim”, ou autopunições como “eu sou uma besta, faço tudo errado”. Nada é errado, quando o erro faz parte de uma procura ou de um processo de conhecimento. Gosto de olhar as pedras e os desenhos do vento na superficie da água, gosto de sentir as modificações da luz quando o sol está desaparecendo do outro lado do rio, gosto de sentir o dia se transformando em noite e em dia outra vez, gosto de olhar as crianças brincando no corredor de entrada e das palmeiras que existem no meio da minha rua - gosto de pensar que vou sempre ter olhos para gostar dessas coisas, e por mais sozinho ou triste que eu esteja vou ter sempre esse olhar sobre as coisas. Não sei muito, também não tenho muito, também não quero muito, mas estou aprendendo a respirar o ar das montanhas.

Verinha, eu te amei muito. Nunca disse, como você também não disse, mas acho que você soube. Pena que as grandes e as cucas confusas não saibam amar. Pena também que a gente se envergonhe de dizer, a gente não devia ter vergonha do que é bonito. Penso sempre que um dia a gente vai se encontrar de novo, e que então tudo vai ser mais claro, que não vai mais haver medo nem coisas falsas. Há uma porção de coisas minhas que você não sabe, e que precisaria saber para compreender todas as vezes que fugi de você e voltei e tornei a fugir. São coisas difíceis de serem contadas, mais difíceis talvez de serem compreendidas - se um dia a gente se encontrar de novo, em amor, eu direi delas, caso contrário não será preciso. Essas coisas não pedem resposta nem ressonância alguma em você: eu só queria que você soubesse do muito amor e ternura que eu tinha - e tenho - pra você. Acho que é bom a gente saber que existe desse jeito em alguém, como você existe em mim.

Queria saber de você e de Henrique, daqueles meninos que sem me conhecerem me levaram para a sua casa e se mostraram para mim. Vocês foram as melhores pessoas que encontrei no Rio, sabem disso? Por favor, me escrevam, é importante, um bilhete, um postal, qualquer coisa, de preferência uma carta gorda como uma cantora lírica, contando de tudo que vocês estão sendo e fazendo nessa cidade louca, linda e longe. Eu tô aqui, lendo Charles Reich e zen-budismo, sentindo saudade de vocês. Os taurinos e virginianos não devem se perder, Verinha. Um grande beijo e saudade do

...............................................................................................................Caio



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quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

* Carta a Maria Lídia Magliani

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London, 25.01.91


Maria Lídia, dear,
estou impressionado. Sonhei esta noite com você. Eu estava com Eduardo San Martin e íamos visitá-la. Você morava numa casa estranhíssima. Um sobrado verde, verde luminoso, e a casa era construída de perfil. Você estava deitada numa cama enorme, com lençóis azuis brilhantes, cetim ou algo assim. Parecia muito bem. Eduardo deitava do seu lado, eu ficava enciumado e ia embora. Na saída encontrei Gracinha. Do outro lado da rua, por uma janela, ficávamos olhando a sua casa. Gracinha dizia que as paredes eram muito finas, por isso a casa parecia “de perfil”, e que era uma casa muito louca. Que ali tinham morado Rita Lee e Olga de Sá (que eu não tenho a menor idéia de quem seja, mas era esse o nome — eu ainda perguntava “mas não era a Olga Savary”? E a Gracinha insistia “não, era a de Sá mesmo”)

Acordei depois de meio-dia, como sempre (neste inverno, meu bem, que fazer senão hibernar?) e Ray, no caminho do banheiro, me estendeu a sua carta, Aerograma, aliás, Que devorei, espantado. Tudo isso é pura verdade, e eu concluo que, de alguma forma, nossa ligação mental? espiritual? psicológica? continua sempre muito forte.

Vocês aí falando na guerra, e nós aqui no meio dela. Uma loucura. A TV e as rádios transmitem o tempo todo boletins malucos e, na cidade, a paranóia do terrorismo iraquiano tomou conta. Bombas, coisas assim. Os metrôs estão cheios de cartazes dizendo como você deve se comportar se encontrar um pacote estranho. Tudo tão absurdo que não consigo levar muito a sério, parece filme. Conheço alguns ingleses que estão sendo convocados para ir para o Golfo, que tal?

No meio disso, eu aqui, no apartamento do meu editor inglês. Na verdade, irlandês. Estou no momento preso em Londres por alguns compromissos, leituras e palestras, e à espera de que duas prometidas bolsas - uma para a França, outra para a Alemanha - finalmente pintem. Também a tradução de Dragões estará sendo lançada na França no começo de março. Resulta que, dependendo de decisões alheias - e isso me irrita muito - não posso me mover. Fico até não sei quando.

Mas sonho. Depois desta, quando voltar ao Brasil, queria demais começar a providenciar uma mudança de São Paulo. Não sei para onde. Algum lugar onde eu possa plantar rosas. Isso é fundamental. Quero porque quero cultivar roseiras.

Ando muito, muito só. Leio demais — minha leitura em inglês se soltou — e vou ao cinema furiosamente (você ia adorar Henry e june, sobre o caso de amor entre Anais Nin, Henry MilIer e a biscatona da June, mulher dele). Caminho, olho as caras e as coisas nesta Babilônia onde todas as raças e todas as línguas se cruzaram. Londres continua gentil, embora muito pobre, e também cinzenta. Realmente, é um melancholic place, e talvez por isso mesmo, I love it.

[...]

Eu estou cada vez mais Bambi. Adoro comprar flores e acender incensos e fazer pequenas faxinas arrumando cantinhos “artísticos”. Talvez seja um tanto kitsch, mas é a forma - saudável, suponho - que encontrei de reagir não só à feiúra de fora, que é cada vez maior, mas também à feiúra de dentro. Que embora controlada, você sabe, às vezes ameaça explodir.

Antes de vir para cá mandei um exemplar de Dulce Veiga, não sei se você recebeu. Sim? Ele me deu muito, muito trabalho. Agora voltei a anotar umas histórias novas, um projeto de livro com o título de Histórias estrangeiras.

Anteontem, fui ver a exposição de Egon Schiele. Fiquei deslumbrado, principalmente com os auto-retratos. Maria Lídia dos Santos Magliani Lispector Lessing Woolf do Amaral Garibaldi: eles sangram. São tão pungentes. Tem uns Klimts também muito bonitos, mas perto do Schiele são róseos demais. Eu não queria ir embora, fiquei todo arrepiado. E um tipo de pintura que parece punk, e o cara morreu em 1918, com menos de 30 anos. Semana que vem começam uns impressionistas na mesma galeria — e certamente irei correndo para rever Van Gogh e toda a sua luz.

Como está a tua vida profissional? As pinturas e tudo, fale-me mais sobre. Aquelas ultimas que vi na Paulo Figueiredo em SP achei deslumbrantes, e uma das coisas que mais sinto falta aqui em Londres são as minhas Maglianis das paredes de SP.

Que bom que você tem um namorado. Eu não, há tanto tempo. Essa coisa de Aids realmente... A propósito, você sabe que o Guto Pereira morreu no final do ano passado? Pois é, já foram tantos. Volta e meia começo a enumerar, e me dói tanto a morte de Orlando. Luiz Arthur (não se preocupe, ele está ótimo) ligou ontem de Paris e deve vir no final de semana.

Guerras, pestes, são os tempos. Estou louco para cair fora deste vendaval contaminado que virou o planeta. Numa muito boa, invejo e admiro a vida nova que você inventou/conquistou. No fundo, nunca saí de Santiago do Boqueirão.

Beije Marijô por mim.

Os melhores votos de conclusão de sua catedral. Cuide-se, me dê notícias (mais legívei tua letra está ficando pior que a minha), me queira bem.



Todo o carinho do seu velho

............................................................................Caio F.



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quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

* A Hilda Hilst

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Porto Alegre, 27 de março de 1973.


Hilda querida, talvez esta seja uma carta de despedida. Mas não se assuste, é que aconteceram alguns imprevistos e resolvi embarcar para a Europa em seguida, fim de abril ou começo de maio. Vou com Augusto, um amigo antigo — o mais antigo que tenho —, ainda dos tempos de adolescência, em Santiago, uma pessoa ótima. Creio que vamos por um avião de Aerolineas Argentinas, o mais barato da temporada, também porque não temos muito dinheiro e temos que ir logo para a Suécia, pegar a temporada de trabalho, que começa em maio — provavelmente dia 28 de abril. Ainda tem toda a encheção de saco com papéis e mil transinhas, portanto não marcamos nada. Mas vamos de qualquer maneira. Meus planos são fazer uns 1.000 dólares na Suécia para depois viajar um pouco e, em setembro, fazer algum curso, talvez em Paris, onde tenho dois amigos lecionando na Sorbonne. Eu estou tranqüilo e sinto que tudo vai sair bem, porque é exatamente a minha hora — mas de vez em quando tenho umas dorzinhas de barriga, você sabe.

Estou um pouco chateado com você. Há muito tempo, uns dois meses, mandei para você um recorte de jornal, com uma matéria minha sobre o Lúcio Cardoso, onde eu falava em você. Sei lá se chegou ou não, mas de qualquer maneira acho que você poderia ter escrito. uma coisa que me dói muito, esses seus silêncios. Sei — claro — que você deve ter problemas bastante sérios, mas uma carta de vez em quando não custa nada e, às vezes — quem sabe? — talvez até a gente pudesse ajudar. Penso, com mágoa, que o relacionamento da gente sempre foi um tanto unilateral, sei lá, não quero ser injusto nem nada — apenas me ferem muito esses teus silêncios. A sensação que tenho é que você simplesmente não está a fim de transar muito — e cada vez que tomo a iniciativa de escrever, é sempre meio tolhido, sem naturalidade, com medo de incomodar, de ser indesejável. Não é uma coisa agradável. Seja como for, continuo gostando muito de você — da mesma forma —, você está quase sempre perto de mim, quase sempre presente em memórias, lembranças, estórias que conto às vezes, saudade. E se é verdade que o tempo não volta, também deveria ser verdade que os amigos não se perdem. Eu não gostaria de acreditar nisso.

Aconteceram coisas bastante duras nos últimos tempos (muitas coisas boas, também). Não vale a pena contá-las, mas a conclusão, amarga, é que não há lugar para gente como nós aqui neste país, pelo menos enquanto se vive dentro de uma grande cidade. As agressões e repressões nas ruas são cada vez mais violentas, coisas que a gente lê um dia no jornal e no dia seguinte sente na própria pele. A gente vai ficando acuado, medroso, paranóico: eu não quero ficar assim, eu não vou ficar assim. Por isso mesmo estou indo embora. Não tenho grandes ilusões, também não acredito muito que por lá seja o paraíso — mas sei que a barra é bem mais tranqüila e, enfim, vamos ver. Acho que o mundo está aí pra ser visto e curtido, antes que acabe. Vou de consciência tranqüila, sabendo que dentro de todo o bode fiz o que era possível fazer por aqui. E não sei quando volto. Nem se volto.

Por uma carta tua, suponho que teu livro deva ter saído. Se fosse possível, eu gostaria que me mandasses uns três ou quatro: pretendo transar algumas editoras por lá, e podia encaminhar o teu livro a alguma, você é que sabe. Tenho alguns amigos escritores por lá, que devem estar mais ou menos por dentro das transas editoriais.

Quanto ao meu, ainda não soube o resultado do concurso de Brasília, que deve sair por esses dias. Em todo caso, mesmo que não ganhe nada, será publicado pelo Instituto Estadual do Livro, quero deixar tudo bem encaminhado. Achei uma epígrafe ótima, duma letra do Gilberto Gil para uma música chamada Zooilógico, assim: “Eu sou o menino que abriu a porta das feras/no dia em que todas as famílias visitavam o zôo”. Não é uma glória? E o livro é exatamente isso: a violência e a loucura soltas para grilar os bempensantes. No momento, acredito muito no grilo como arte, não sei se você entende.

Outra coisa, sobre teu livro: desta vez podias fazer uma boa divulgação. Além dos críticos de SP e Rio, acho que devias mandar para o pessoal do Suplemento de Minas, que é muito bom: Sérgio Sant’Anna, Jaime Prado Gouvêa, Angelo Oswaldo de Araújo Santos, Duílio Gomes e, principalmente, Luiz Gonzaga Vieira, que é um ótimo crítico. Aqui em Porto Alegre também há alguns críticos interessantes, se você tiver interesse, eu posso mandar nomes e endereços.

Falar em endereços, lembrei de duas pessoas conhecidas tuas que moram na Europa: uma é aquela moça, filha duma mulher fantástica, não me lembro o nome (Cléo?), que mora na frente do edifício Itália — acho que o nome da moça é Sapinho (apelido); o outro é aquele rapaz compositor, parece que José Antonio de Almeida Prado. Caso você lembrar de mais alguém, eu gostaria de procurá-los por lá.

Hildinha, acho que é só. Ainda tenho que ir ao centro fazer potes de coisas. Por favor, me escreve antes que eu me vá. Nem que seja um bilhetinho. Gostaria muitíssimo de levar, sei lá, a tua bênção, ou uma força qualquer — boas vibrações. Dá, por mim, um grande abraço em Dante, quando o vires, em la Soininem (diz a ela que vou à Finlândia, em sua homenagem) e em Zé Luis (o avião que vou fica em Madri). Um beijo do sempre seu


..................................................................................................................Caio


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quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

* A Luciano Alabarse

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Paris, 28 de abril de 1994.


Luciano, querido,
escolhi esse papel especial para você — tem de todas as cores, é reciclado e baratíssimo. Ah, o Primeiro Mundo — que está mais Terceiro do que nunca, caindo pelas tabelas de desemprego, crise daqui, crise dali. Espero que minha carta chegue. Pedi teu endereço à mãe, mas ela — ai, a idade — não mandou CEP e tudo e tal.

Te escrevo com o pé na estrada. Parto Domingo para Lisboa, que não conheço — bem nigrinha, vou de ônibus, 25 horas, c‟est pas grave, j‟espére... e volto a Paris dia 15 de maio só para pegar malas e correspondência, dar uma geral nas tropas. Aí parto para a Noruega, visitar Augusto, que vive lá há 20 anos, casado — de papel passado — com um norueguês, Henning (também conhecido como Gilda). Ambos me convidam para a colheita de narcisos da primavera. A frescura é tanta que, claro, não resisto.


Enfim: estarei chegando a SP dia 8 de junho. Fone/Fax — anote lá — iguais: (011) 283.13.33. Pnsei em ir logo a Porto, mas acho que só vai dar no fim de agosto, porque tenho muita, muita costura pra entregar em Sampa.

Parto de Paris um tanto fatigado, trabalhei muito na divulgação dos livros, mas contente. Deu certo! Fiz dois programas de TV — um só de escritores, outro com um grupo de “artistas” — este segundo, imagina, era com Isabella Rosselini lançando seu filme État second, ela e Jeff Bridges. A Rosselini é simpática, simples e um tanto quanto larga nos quartos... Saíram críticas ótimas em jornais e revistas, a melhor no L‟Express, a Veja francesa com ética. Dulce Veiga está indicado para o prêmio de melhor romance estrangeiro — prêmio Laura Battaglion, 100 mil francos, metade para o autor, metade para o tradutor. Acho que não levo — sai em
junho — porque tem gente tipo Philip Roth e Paul Auster no páreo, mas anyway já valeu a indicação — são só 10.

Enfim, trabalhei — trabalhei, fui a duas ou três boates gays muito chatas e iguais, fui muito a cinema (fique atento a Short cuts, de Robert Altman, e Gilbert Grape, de Lasse Halstrom) e sobretudo estou numa relação maravilhosa comigo mesmo. Meu francês soltou-se, falo maravilhosamente e faço tudo com o maior desembaraço e sozinho. Alguma coisa em mim parece que laceou, eu era tão cheio de medos. Aprendi também a não contar muito com os outros: na medida do possível, faço tudo só. Dá mais certo.

Mas no meio de tudo isso, sinto o tempo todo uma enorme vontade de ficar só e escrever, escrever, escrever. Pareço a Orlando da Virginia Woolf (que Isabelle Hupert faz no teatro aqui: não havia entradas!) carregando seu manuscrito inacabado séculos afora... Até hoje não sei o que você achou do meu O homem e a mancha — que o Carlinhos Moreno tava de saia-justa para montar em SP. Imagina que ele me disse que achava bom demais para ele?

Meu anjo da guarda sempre forte me jogou no caminho de um pianista brasileiro — Braz Velloso — que me emprestou seu ap. enquanto foi ao Rio ver o namorado. Ouvi muita, muita Callas. Embaixo mora outro pianista brasileiro, Rafael Hime, primo de Francis, que também tem sido um anjo. Muitos anjos, sim, mas para manter o equilíbrio também muitos, muitos demônios. Na verdade, até poucos: acho que — graças a Deus — têm medo de moi.

Falo sempre em nossa deusa Calcanhoto (outro dia falei nela numa crônica que enviei para o Estadão) e ouço-reouço sempre, quase sempre na estrada, apoiado em alguma vidraça de ônibus, trem ou avião, e choro sempre com “eu ando pelo mundo prestando atenção em cores”. Pedi ajuda a algumas pessoas no Brasil para recuperar endereços, mas não recebi respostas. Quem me escreveu mesmo foi Lygia Fagundes Telles, e minha mãe — que mãe é mãe.

Mas não me queixo. O amor que sinto pelos outros quase sempre é suficiente, não precisa nem ter volta.

Será a sabedoria? Ou apenas a meia-idade? A propósito desta, ando com altas dores no lombo. Totalmente descadeirado. Divido receitas com Falleiro, que está aqui para escrever sua tese de mestrado e também começa a sentir os, digamos, rigores do tempo. Ah, Cronos!

Se alguém perguntar por mim, diga que estou noivo de Isabelle Adjani — mas não fiquei metido e mando beijos. Espero que sua vida, amores, projetos, trabalho, saúde e tudo o mais estejam luminosos, cheios de energia. Felicidade, je t‟embrasse trés fort.



.......................................................................................................Caio F.



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segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

* A Sérgio Keuchgerian

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Na cidade alagada
27 de janeiro de 1987
16h 20m

Sérgio, querido,

saudade & saudade & saudade. Fico à espera do teu mapa, que não me chega, então me adianto e te escrevo. Esperava o mapa também para descobrir o dia do teu aniversário. Não lembro. Já foi? está sendo? vai ser?

Cinza & relâmpagos outside. Paisagem dramática. Edifícios recortados contra o céu cortado de relâmpagos. Eparrê-yê, Iansã! Caos, catástrofe. Chegar ontem no jornal foi igualzinho a um comercial de Camel. Até curti.

Sinto uma falta absurda de você. Ficou um vazio que ninguém (pre)enche. E penso e repenso e trepenso em você por aí. Deve ser tão árido. Horizontes infinitos? Mas fique tão tranqüilo — e humilde, e confiante — quanto possível. É só uma fase, só um estágio. Vai passar. Lembro dos meses que passei em Estocolmo, numa cidade universitária — Kungshambra — onde só havia suecos, dinamarqueses, finlandeses, noruegueses. Teve uma noite de lua cheia — e era midsummer, pleno verão, não havia noite, só duas horas de penumbra crepuscular — que saí a caminhar em busca de alguém para conversar. Dizer ôi (ou hei, em sueco), ou Inte präte svenska (“não falo sueco”) que fosse. E nada, não encontrei ninguém. Caí (pode?) no meio do asfalto chorando. Arranhei as unhas no asfalto de pura solidão. E aquela lua cheia enorme lá em cima, e os bosques atrás, com o castelo de verão do rei — tudo parecia sinistro. Parecia que eu ficaria para sempre lá, ao lado do Pólo Norte, e que isso não tinha menor sentido.

Mas passou. Hoje te conto. E lembro daquela história zen, o rei que pediu ao monge um talismã que o protegesse de qualquer mal. O monge deu ao rei um anel, com a recomendação de abri-lo só em caso de extremo perigo. Um dia, o castelo foi cercado pelos inimigos, e o rei encurralado numa torre. Ele abriu o anel. Dentro, havia um papelzinho dobrado. Ele abriu o papeizinho e leu uma frase assim: “Isto também passará”.

Tenho sofrido um pouco. R. veio de Porto Alegre, no sábado. Tivemos um dia lindo — com direito a sauna Nikkei e massagem (Akira sapateou em cima de mim, me virou para a esquerda e para o avesso). Jantamos num japa, saímos duas xuxas para ver Drácula. E então, em casa, ele me rejeitou mais uma vez. Me adora, morre de carinho & respeito & admiração. Mas: SEXO NÃO. Eu fiquei chorando no escuro, enquanto ele decidia dormir na sala.

Eu fiquei olhando aquelas estrelinhas no céu do quarto, sem entender nada. Tive vontade de ir de mansinho até a cozinha e abrir o gás. Talvez matá-lo também? Tive vontade de pegar uma faca na cozinha e enfiar no coração dele, depois no meu. Tive vontades Maria Bethânia, vontades Maysa, vontades Fassbinder — teatrais, melodramáticas. Me limitei a escovar os dentes, me masturbar pensando nele, e dormir. No dia seguinte, joguei um I Ching, e perguntei o que fazer. Saiu o abismal, Agua sobre Água: a imagem de um abismo. Como no fundo do abismo, a água escorre, você deve escorrer sem parar, para a frente. Mantenha a sinceridade no fundo de seu coração. Mantive. Tenho mantido. Nos dois últimos dias me baixou o irresistível & simpático Tio Caio. Aquele serviçal, paciente, tolerante — que compra flores e frutas, lava a louça, quebra galhos. Você sabe.

Faço o papel sem dificuldade. A água flui, vai para a frente. Isto também vai passar. Mas não compreendo. Então um lado meu pensa: é sina, é fado, é destino, é maldição. Outro lado pensa: não, é mera neurose, de alguma forma sutil devo construir elaboradamente essa rejeição. Crio a situação, e ouço um não. Desta vez, eu tinha tanta certeza. E penso: os deuses me traíram, os búzios me atraiçoaram, as cartas me mentiram. E me sinto velho e cansado, e tiro toda a roupa preta guardada nos armários — e tudo não deixa de ser teatral, meio engraçado. Mas há também uma dorzinha verdadeira no fundo. A pequena gota de sangue, como um rubi. E me baixa o peso do tempo, e dos meus 38 anos, e dos cabelos caindo, e de tudo indo embora e fugindo e se perdendo — e o amor sem acontecer, quando estou assim todo maduro, e limpo, e pronto, e luminoso como uma maçã no galho, pronta para ser colhida. Ninguém estende a mão para a maçã, pouco antes de começar o processo de apodrecimento.

Você conhece essas queixas, e eu não peço nenhuma palavra de consolo sobre elas. Tá tudo bem assim. Só que me rouba o sentido — entende? — ou a ilusão de sentido que quero ter da vida, e que é essencial para a minha sobrevivência. Não faz sentido ouvir esse não. Ou eu não estou vendo — agora — esse sentido? Pode ser. Mas eu tinha/tenho tanta sede dele. Me sinto o camelo do poema de Cecilia Meireles, mastigando sua imensa solidão.

E penso: sou feio, então, sou desagradável, é isso, é isso — é só isso, sou incapaz de inspirar qualquer erotismo em alguém. Fico me ferindo, mas também dou voltas e penso: não, não é nada disso, sou legal, sou mansinho, sou até bonitinho. E penso tantas e tantas outras coisas, mas o real não se modifica. E o real, parece meio grosso dito assim, mas no fundo é isso mesmo — o real é: R. não quer trepar comigo de jeito nenhum.

Como dói.

Mas tenho anotado histórias, anotado sem parar. Está vindo algo por aí, está se avolumando. Talvez seja o único jeito, não? Minhas ficções não me rejeitam. Talvez seja sina, essa de escrever, e então ter as respostas da vida real na vida recriada, nunca na própria vida real — como as pessoas que não criam costumam ter. E deve estar certo assim, deve haver uma ordem e um sentido nisso.

Terminei As brumas. Tive um impulso quase incontrolável de ligar pra você às três da manhã. Mas tua mãe me disse que o telefone é na portaria, precisam te chamar no quarto. E eu achei que ia ser muita barbarização, fiquei quieto. Mas não encontrei ninguém para falar sobre. Fiquei impressionado, fiquei machucado com a decadência, a loucura, a solidão do final. E tenho medo de ter a sina de solidão de Morgana. E lindo demais, e terrível. Fico filmando na minha cabeça. Isabelle Adjani como Morgana, Christopher Lambert como Arthur, Kim Basinger como Guinevere — não encontro Lancelot, mas podia ser Richard Gere? Muito pêra, talvez Sean Penn, com os cabelos tingidos de preto? E Harrison Ford teria que ter um papel. Penso em Irene Papas como Viviane (ou Raven). Te parece bom? Claro que seria caríssimo. E muito chique, ‘magináh!

Quando você vem? Quando te vejo? Quando jantamos juntos em qualquer lugar? Manda teu mapa logo, te mando um cademinho de trânsitos. R. descobriu que a hora de nascimento dele estava errada: portanto ele é Libra, ascendente em Touro, Lua em Touro, Vênus em Virgem. A combinação perfeita para mim, que tenho Sol em Virgem, ascendente Libra, Lua em Capricómio e o nó lunar em Touro. Touro é a minha casa VII e VIII, a do casamento, e da sexualidade. E por tudo isso, entendo ainda menos.

Pense em mim, me mande mentalmente coisas boas. Estou tendo uns dias dificeis — mas nada, nada de grave. Penso em você com carinho, com amor, com saudade. Me deram trabalho. Tenho que parar.

Te amo muito. Beijo,

Love
Love
Love

...............................................................................Caio F.


PS 1 — Maurício vai amanhã — mando por ele. É ótima pessoa: curtam-se.

PS 2 — Falei com sua mãe, Ela mandou dizer que está morrendo de saudade — e só não liga todo dia pra não ficar ainda mais saudosa.

PS 3— Não se preocupe comigo. Ontem, eu tava meio amargo. Tá tudo bem! Afinal, o que é SEXO?

Beijos
Beijos
Beijos
Beijos
Beijos


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domingo, 19 de setembro de 2010

A José Márcio Penido

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Gay Port (!), 21. 6. 79


Meu caro Garcia de Oliveira,
sim, porque pra um nome como esse só mesmo usando expressões tipo essa, ou “prezado”, ou “mui estimado”. Posto isso, imagino que você esteja surpreso. Esperava receber um cartão cheio de palmeiras e casarios coloniais? Ledo engano: vai esta folha branca, um pouco amolecida pelo frio e pela umidade reinantes aqui por estes pampas, chê. O que aconteceu? Bem, eu FUI até Olinda. Aí rodei por lá um dia inteiro, sem encontrar lugar pra ficar. Acabei indo pra Recife, onde me instalei num hotel de oitava: o Suíça Hotel, na Rua do Hospício — juro! Solucionados os problemas de acomodação, percebi que não conhecia viv’ alma (ai este português castiço!) na cidade. E toca subir rua, descer rua, atravessar Capibaribe, tropeçar em cantador, em retirante, comer tapioca, olhar, olhar, assistir filmes como Iracema ou O Super-Macho ou A ilha das cangaceiras virgens (descobri que Helena Ramos dá de dez em qualquer Sonia Braga, Ana Matos que me perdoe), voltar para o hotel, passar o dedo com desgosto em cima do quilo de poeira dos móveis, olhar, olhar — olhar o quê, meu deus? Meu caro Garcia de Oliveira, me deu uma solidão tão grande que, menos de uma semana depois, arrumei tudo e voltei pra Sampa. Passei uma noite lá. Peguei as lãs e as peles e vim pra cá. Em chegando aqui, apanhei gripe fatal (claro, sair duma temperatura de 30 graus pra outra de -2) que me derrubou até hoje. Quando, mais animadinho, tomo da pena para endereçar-te estas mal traçadas.

E não sei o que dizer, Zézinho, não tô bem. Isso é uma coisa que eu posso dizer, tendo certeza dela. Mas é também uma coisa pela qual você não pode fazer nada, e de pouco adianta eu dizer. Ô, Zé, ando tão desorientado, já faz tempo. E me escondo, e não procuro ninguém, e fico mastigando a minha desorientação. Esse sobe-desce todo da semana passada me deu a medida de como ando. De repente, lá em cima, no Recife, parecia que ninguém no mundo se importava comigo. Eu queria ir pra um lugar onde eu tivesse uma sensaçãozinha, ilusória que fosse, de que tinha alguém prestando atenção em mim. Achei que era aqui. É? Não sei. Me enfiei em casa e não saí. Um desgosto. Leio o tempo todo. Sento no jardim. Ouço música. Tento escrever, mas não sei se quero ou se preciso, e não consigo. Umas carências. Descobri John dos Passos, mas não é suficiente pra encher esse oco que não sei do que é. Mas tomo copos de leite, durmo bastante, e repito sempre que, seja o que for, vou sair desta pelo menos mais sadiozinho. Deve ter algum processo em andamento dentro de mim, querendo explodir de alguma forma. Ou esse desgosto é já um jeito de ser? Se for assim, não quero acostumar. Se quatro anos de análise não deram jeito nele, quem dá? Vezenquando penso no Maurinho, com a sua cientologia. Depois, penso também naquele quase velho poema do John Lennon: “I don’t believe in yoga/ I don’t believe in mantra/ I don’t believe in God/ I don’t believe in Freud/ I don’t believe in drugs/ I don’t
believe in sex/ I don’t believe in Beatles” e termina com um acorde profundo de guitarra e um “I just believe in me”. Mas nem isso.

Tantos trancos. E o meu olho nem conseguindo ver mais nada bonito. Queixas, queixas. Sorry. Nada de grave. Sábado estréia minha peça infantil aqui. Acho que tô contente. Não vi ninguém, fiquei com medo, da outra vez me abalou tanto um garoto que agora eu não quero nem ver, você me entende? Tô exausto de construir e demolir fantasias. Não quero me encantar com ninguém. Meu olho vai ficando duro, vai ficando frio. As frases dão uma volta, e caem na queixa outra vez.

Reli teu Viegas neon: sabe que ele me explica um pouco o meu fascínio por Sampa? E toda vez que releio, me dá um medo de acabar crucificado dentro de uma garrafa. Será que é isso que a cidade faz com a gente? Uma coisa que eu acho que conta quando a gente se compreende é o fato de você ter nascido em Cambuquira e eu em Santiago do Boqueirão. Zézim, vezenquando me dá um ódio de São Paulo e da grande cidade, e depois uma cidade pequenininha me dá uma coisa n’alma, sabe como? uma sensação de estar longe demais de tudo. Vezenquando eu penso que da cidade pequena pra cidade grande alguma coisa se perdeu dentro da gente — me sinto como uma coluna vertebral sem uma vértebra, portanto insustentável. Daí vou pensando um pouco mais nisso e então me dói mais fundo, porque me parece irremediável, inconsertável, insubstituível esse elo, essa vértebra perdida.

Em Recife eu caminhava pensando: que que eu tô procurando aqui, meu deus? Aqui, caminho pensando: que que eu vim fazer aqui, meu deus? Não é uma questão de paisagem exterior, portanto? Mas mal suporto meus próprios pensamentos & sentimentos. É uma grande crise burguesa? Olhando desse jeito, sou só um pequeno burguês, filho da classe média, colonizado culturalmente, devorado por essas angústias abstratas de quem tem barriga cheia e cabeça cheia de inutilidades consumistas? Mas não sei se consigo me reduzir assim, a um simples esquema ideológico. E mesmo que conseguisse: o que vem depois?

Gosto tanto de você. Muitas vezes, é uma referência viva pra mim de São Paulo, você me entende? Assim como se você estando ai, e eu podendo estar junto de você, às vezes, e te ouvindo, e sabendo da tua vida, e você da minha — só isso justificasse algumas coisas, me impedindo de perguntar coisas como “meu deus, o que que eu tô fazendo aqui”. É feito uma resposta.

Ontem achei isso aqui relendo Rilke (as coisas que a gente faz no inverno gaúcho), é da Canção de amor e morte do porta-estandarte. Mando pra você:

“É demais, ter dois olhos. Só à noite, às vezes,
pensa-se conhecer o caminho. Talvez à noite
tornemos sempre a refazer a jornada que
penosamente cumprimos sob o sol estrangeiro?
Pode ser”.


Não é bonito?
Lá pelo dia 1 de julho, tô de volta.
Um carinho na Pobre Menina, la Berenson de Vila Madalena.
Um abraço em Ana Matos, Niño and Samuca.
Jocastamente: não fique trancado demais em casa, atenda o telefone e vá sempre que puder ver o pôr-do-sol na pracinha do Alto de Pinheiros. Se alguma vez, por descuido ou coisa assim, ouvir It’s impossible, pense em mim. Ou não. E se a saudade bater, escreva uma carta que pode ser cheia de queixas, ou cheia de sol. Será bem- vinda.

Te gosto sempre. Um beijo

................................................................................Caio



PS — (Adoro PSs: às vezes o PS é tudo numa carta). Como dizia Clarice Lispector arrematando A hora da estrela e a sua própria vida: “Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos. Sim.”

PS 2 — Seja como for, torno a descobrir que a literatura, essa deusa-cadela, é a coisa que mais tenho amado na vida.

PS 3 — Se Deus quiser, tudo, tudo, tudo vai dar pé. Outro beijo.

[... ]

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sábado, 4 de setembro de 2010

A Jacqueline Cantore

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Gay Port, 9 de março de 1995

Querida Jacqueline,
sa’s, guriããã, nesta minha nova profissão de jardineiro tenho aprendido muitas côsas novas. Minha vida não sei, mas meu jardim certamente daria um romance, inaugurando quem sabe a linha lítero-vegetal? O perigo seria os críticos-najas me chamarem de escritor-vegetativo, lógico. Mas perigos sempre há, desde que se saiu do útero, e até antes, durante imagino que muito mais.

Mas como ia te dizendo, uma das coisas que aprendi é que amor só não basta para as plantinhas brotarem, crescerem e ficarem ótimas. Claro que ajuda — suponho — botar Mozart ou mantras tibetanos com a sacada de alamandas amarelas escancarada enquanto jardineio, e dizer I love you, Ich lieb dich, Je t’aime ou Ik laska (esta em tcheco) ou como será em sânscrito? Bueno, hay que trabalhar duro também. Todo dia regar, podar, controlar, lutar contra formigas, caramujos do mal, plantas outras que atrolham umas. Semana do minguante, por exemplo, tive que transplantar as cravinas, que estavam estrangulando as petúnias. Coitadinhas, fragilíssimas, estão bombardeadas até hoje, principalmente a minha preferida — uma rajada de roxo e branco, naturalmente a mais fresca. E os girassóis, então, nem te conto. Os caules são fragilíssimos, meio ocos. Quando brota o botão, o caule começa a desabar, é preciso providenciar estacas e amarrar com cordão bem leve, para não quebrarem. Senão, quando abre o girassol (eles se preparam mais que as rosas para nascer), o caule simplesmente tomba por terra — como se não suportasse o peso da própria beleza que engendrou. E as angélicas, adoradas por 100 entre 100 formigas? Das três daqui até agora só consegui que uma florisse, e floriu tão enfrentativa, apesar das folhas esfarrapadinhas das porradas da vida, que às seis da manhã e seis da tarde seu perfume enchia o jardim inteiro. Todo dia arranco ervas daninhas — estou em guerra com as marias-sem-vergonha, cadelíssimas, e cinamornos das sementes do cinamomão em frente. Minha coluna reclama — posso escrever meia hora, outra tenho que deitar no chão. Quando tenho grana, chamo massagista, bem madame.

Amor não resiste a tudo, não. Amor é jardim, Amor enche de erva daninha. Amizade também, todas as formas de amor. Hay que trabalhar y trabalhar, sabes?

Pois acho que nossa relação de uns anos para cá encheu de tanta erva daninha que, quanto a mim, pelo menos, já não dou conta desse matagal.

[...]

Também, em quem está com Aids o que mais me dói é a morte antecipada que os outros nos conferem. Às vezes os que mais amamos, ou os que mais dizem nos amar. Sei disso porque assim me comportei, por exemplo, com o Wilson Barros, de quem fugi como o diabo da cruz. Com o Paulo Yutaka, sem ir vê-lo no hospital. Não respondi as cartas do Wagner e só telefonei um dia depois que ele tinha morrido, por saudade intuitiva. E tardia.

Não acuso, então, por me achar incorruptível & soberano. Também fiz das minhas. Podia ter sido mais amoroso com meus amigos que se foram, e agora é tarde. Na seca de amor que sinto agora, nesta Porto Alegre que é como uma enorme platéia à espera do Desfecho Trágico da Desvairada Vida de Caio F. para imediatamente providenciar algum nome de biblioteca num centro cultural de subúrbio, nesta Porto Alegre onde ninguém exceto Luciano Alabarse e Lya Luft me procuram sinceros e leais, sozinho com a velhice de meus pais, minhas plantas me consolam. Aprendo com elas o que não sei se terei tempo de aplicar, e todo dia, acordando no máximo às seis da manhã, sou um tigre sentado em lótus na frente do Buda que herdei de Vicente Pereira (a saudade mais dolorida), sou um tigre ferido defendendo a patadas furiosas o que me resta de vida. Porque de alguma forma, real ou metafórica, não importa, estou ganhando este jogo de dez a zero, Jacqueline. Dá um trabalho do cão ser herói todo dia.

Eu me respeito como nunca, sa’s?

Uma historinha: entrava eu todo de branco na Igreja do Divino Espírito Santo, na frente da Redenção, quando esbarro em R.A., todo de preto e em frangalhos, com um outro punk. Ficou lívido quando me viu. O outro disse, referindo-se a mim, “olha o morto que veio nos abençoar”. Beijei a testa dele e disse “eu te abençôo”. Fui rezar, tenho mais o que fazer.

Para sua informação: Gilberto e eu voltamos de Fortaleza num vôo massacrante de 12 horas pela Transbrasil num sábado. Ele partia na segunda. Na segunda de manhã, perdeu o apartamento. A proprietária queria mil reais de aluguel. Hélio deu jeito em tudo e com Déa ajudando, conseguimos jogá-lo no avião.

[...]

Com pessoas, essa forma de criação mais imperfeita que Deus colocou sobre a Terra, tenho deixado pra lá. Minha energia é para o texto, as plantas, os passarinhos que alimento com sementes de girassol. A minha autocura no braço, na raça, na solidão que ninguém compreende, e por isso mesmo não dói. Me dóem as feridas físicas, as queimaduras de nitrogênio líquido pelo corpo. Tenho visto anjos, sa’s?

E as fadas também existem, baby.

Te mando este texto de minha lavra para Tia Flora, que se foi, e agora baixa mesmo nas faxinas que tenho feito para expulsar os seculares eguns que o pai e a mãe juntaram pelos quartos. Não precisa ler, afinal você também não leu Dulce Veiga, não?

E agora que o dólar foi pras picas, você vai investir em yens ou em marcos? Prefiro os marcos antonios aos alemães ou suíços, sa’s?

E como diria Hilda Hilst, love apesar, a pesar e há pesar. Mas je t’embrasse e te abençôo também. Parece que pré-mortos são bons nisso, dizem.

................................................................................................... Caio F.
................................................................................................... (still alive)

PS — Minha loucura-mór no momento: tento juntar grana para um cruzeiro pelas ilhas gregas talvez em maio. Deus dará. Termino livro novo, chama-se Ovelhas negras. E assim digamos um pré-póstumo...

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quarta-feira, 11 de agosto de 2010

* A Luciano Alabarse

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Sampa, 1º de agosto de 1984.



Luciano, querido,

estou ouvindo

“quero falar de uma coisa
adivinhe onde ela anda
deve estar dentro do peito
ou caminha pelo ar”. São quase seis horas da tarde —

“pode estar aqui do lado
bem mais perto que pensamos”

— fico arrepiado quando escuto. Saí há pouco no pátio, molhei as plantas. Depois fui tomar um café debruçado no portão da rua. Tem um pôr-do-sol todo rosa, com uma lua crescente (em Libra). Aí de repente me senti tão bem — é um privilégio morar em SP e poder fazer essas pequenas coisas. Podia estar enfiado numa quitinete na São João.

Tua carta me fez muito bem. E muito mal. Compreendo tudo que você diz. São coisas que me digo, também. Mas há uma diferença entre você saber intelectualmente da inutilidade das procuras, da insaciabilidade — vixe, que palavra! — do corpo e conseguir passar isso para o seu comportamento — tomar ato o que é pensamento abstrato. Os caminhos são individuais/intransferíveis.

Meu problema maior é minha própria moral — ou a que adquiri através da educação, da sociedade, não importa. Meu problema é que tenho dentro de mim, muito claros, os conceitos de “moral” e “imoral”. E que cada “imoralidade” que cometo me deixa um saldo enorme de culpa, de amargura, de sofrimento. Vide Marilena Chauí, Repressão sexual. Pois é. Não encontrei Deus ainda, como você. Ele não veio até mim — e digo isso lembrando de um provérbio zen: “Quando o discípulo está preparado, o Mestre vem a ele”. Ainda não veio. Ainda não estou preparado.

Mas estou mais tranqüilo. E percebendo coisas: voltei para Sampa muito alegrinho, muito na-boa, muito tudo-vai-rolar. A memória da gente é safada: elimina o amargo, a peneira só deixa passar o doce. Então eu tinha esquecido que esta cidade te cobra preços altos. Ela é uma mulher (ou um homem) belíssima(o) que se oferece, tentador(a), como se amasse, te envolve, te seduz — e na hora em que você não suporta mais de tesão e faria qualquer negócio, ela(e) te diz o preço. Que é muito alto.

A semana passada mergulhei na revisão de O ovo apunhalado — que está me fazendo bem, estou quase no fim. Emoções loucas ao mergulhar em textos escritos há mais de 10 anos: reintegra. Reescrevi algumas coisas. Critiquei muitas: há uma atitude de fazer-literatura que não gosto. Mas me fez bem, bem demais.
E decidi me poupar mais. Tem sido difícil. E não sei se há recompensa. Talvez, quem sabe, me sentir melhor comigo mesmo. Um I-Ching me aconselha a “limitação”: um lago não deve querer transbordar de seus limites.

Andei com problemas graves de grana — ontem Nello precisou me emprestar para o aluguel. Tudo bem, porque granas da TV e da editora (naquela linha: a sair) devem melhorar as coisas um pouco. Mas a longo prazo tenho medo. A crise finalmente chegou, e é bem nítida. As pessoas em volta, os amigos, todos na mesma situação. Num país doente como o nosso, de que forma preservar um mínimo de saúde?

Sinto falta daí. Me digo que na verdade sinto falta do colo, do conforto, do útero. E que devo ficar por aqui. Então tenho que ser forte, tenho que me exercitar em autocontrole. Claro que me pergunto pra-quê? — e claro que não tenho resposta. Mas vou atravessando os dias, a casa muito vazia (Grace só vem dia 8), às vezes dói. Nos últimos dias, além de trabalhar, cozinho, faço pequenas coisas. E atravesso os dias, um pouco opaco, com breves iluminações — como há pouco, no portão, olhando o céu.

Passa um avião.

Estou cheio de fé neste agosto. Meus trânsitos astrológicos estão ótimos. Julho tinha muitos maus aspectos do Sol e o final de uma oposição Netuno-Urano: desorganização mental e fisica.

Não lembro se te falei: um moço de Brasília quer que eu adapte o Pela noite para teatro. Fiquei a princípio surpreso, depois muito entusiasmado. Estou cheio de idéias. Ele se dispõe a chamar um diretor do Rio ou SP — falou em Domingos Oliveira, ou Fauzi Arap, ou Flávio Rangel — para dirigir.

Fiquei preocupado com o acidente de La Anagnostopoulos — grave, ainda mais que a saúde dela não é boa. Dá um beijo nela, faz um carinho nela.
Obrigado pelas tuas palavras. Obrigado pela tua presença. Te quero sempre bem. Um beijo do

....................................................................................Caio F


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* A Charles Kiefer

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Sampa, 16 de novembro de 1982.

Charles,
recebi seu livro na sexta-feira. Chovia sem parar. Aí, talvez motivado principalmente pelo título, comecei a ler e não parei mais. Terminei na mesma noite. Agora já é terça, a chuva continua e o rádio vai dando os resultados das eleições (estou com vergonha dessa vitória do PDS aí), e deu vontade de conversar um pouco com você.

Gosto do seu livro. Talvez principalmente (veja que imodéstia) porque ele me lembra um pouco o meu primeiro romance, Limite branco, que também conta a história de um adolescente, mudando do interior do Rio Grande do Sul para Porto Alegre. Tem, então, um tom parecido — embora você seja bem mais direto. Gosto desse jeito de ser direto, da falta de afetação, da simplicidade. E penso então que você vai-longe. Não me pergunte o que quero dizer com ir-longe. No mínimo, talvez, escrever outros livros? Pode ser.

É que essa nossa “profissão” (aspas intencionais & irônicas) de escritor na verdade não tem muitas vantagens objetivas. Até hoje, cinco livros publicados, 34 anos, me debato todos os dias para sobreviver e para não desistir. Nélida Piñon costuma dizer que, de alguma forma, todos os dias alguém bate à nossa porta e nos convida a desistir. Não desistimos de teima quem sabe até meio burra.

Mas gosto do seu Caminhando na chuva (incluindo a capa — linda! — e a apresentação inteligentíssima do Deonisio da Silva) e gosto também de saber que você existe. Não deixe o Túlio ser devorado por Porto Alegre. Sabe que, terminando de ler você, fiquei com pena que o livro fosse tão curto e me deu uma curiosidade enorme de saber o que teria acontecido com Túlio em Porto Alegre. Daí me passou pela cabeça que você podia continuar a história, num outro livro, com a mesma personagem. Mas aí já é a minha cabeça se metendo sem ser chamada na sua invenção. Seja como for, gostaria de saber do resultado, em termos de ficção, da sua mudança pra Portinho.

É isto. Eu aqui tenho ido um pouco aos trancos. As vezes duvidando um pouco do acerto das opções que foram sendo feitas nos últimos anos, quando me dou por conta nesta cidade quase sempre árida, sem nenhum amor, sem paz. Um ceticismo, umas durezas que eu não tinha antes. Deixa pra lá. Mando a carta aos cuidados da editora, espero que chegue a você. Se quiser bater um papo, estamos aí. Receba um abraço e votos de sucesso para o seu livro,

Caio Fernando Abreu


Sampa, 14 de abril de 1983

Charles,
tua carta foi tão bonita, e eu não respondi logo. Perdoe: é que eu tinha escrito essa resenha pra IstoÉ (há MESES) e estava esperando que saísse. Saiu agora, com alguns cortes por falta de espaço, aquelas coisas de imprensa — mas fiquei contente, e espero que você tenha gostado. Já havia saído, no Jornal da Tarde, uma crítica muito elogiosa ao teu livro, escrita pela Marisa Lajolo, imagino que você tenha visto. Fiquei meio puto, porque queria ter tido a honra de ter sido o primeiro a falar no seu trabalho aqui nestas poluídas bandas. O Geraldo da IstoÉ marcou, o JT se adiantou, mas tudo bem.

Eu tô meio agitado, aqui, de mudança para o Rio de Janeiro. Faz tempo tenho problemas com Sampa — barulhenta, pouco saudável, solitária, amarga. Agora decidi. Não dá mais. Há uns seis meses praticamente não saio de casa, detesto tudo, perdi o contato com as pessoas, fico vivendo uma vida toda pra dentro, lendo, escrevendo, ouvindo música o tempo todo. Daí, então, vou em busca de um pouco de Sol (em todos os sentidos). Faz tempo que me mexo sem parar. No momento, estou reduzindo tudo que tenho (uma casinha cheia de coisas, coisas inúteis, mas gosto delas) a no máximo duas malas. No Rio, vou ficar provisoriamente num hotel, em Santa Teresa, um lugar antigo, tranqüilo, com um jardim e longos corredores coloniais. Já fiz 10 mil fantasias literárias, claro. Não sei se fico lá nem o que vai acontecer. É esquisito, mas sempre orientei minha vida nesse sentido — o de não ter laços, o da independência, de poder cair fora na hora que quisesse —, e agora que ficou tão nítido, aos 34 anos, que realmente consegui isso, fico meio.., desamparado, acho que a palavra é essa. Devia ter inventado outra coisa? Teria sido possível? E que outra coisa seria? Não sei. Estou ouvindo Milton Nascimento que neste momento exato acabou de me dar a resposta: “Se quieres ser feliz como me dices/ no analices, ah no, no analices...”

Andei escrevendo bastante. De repente, acho que está saindo um livro novo. Sabe que tenho MEDO de escrever? Evito sempre que posso. Dá uma grande exaustão, depois. Uma exaustão agradável, mas a cabeça fica excitada demais, é qualquer coisa muito próxima da loucura. Mas nos últimos tempos não tenho conseguido evitar. Vai saindo. É meio assustador. Passei os últimos meses envolvido com uma pequena novela, O marinheiro , tão desesperadamente solitária e tão alucinadamente onírica que eu tinha medo de não voltar cada vez que mergulhava nela. Acho que está pronta. Peguei pânico de máquina e, há poucos dias, voltei.

E você, como vai? Detesto perguntar “tem escrito?”. Soa sempre como cobrança, e quem faz esse tipo de cobrança geralmente não sabe que a cabeça de um escritor é louca demais para que se possa responder “sim” ou “não”. Mesmo que não se esteja escrevendo realmente, a gente sempre está escrevendo por dentro. Mas eu tenho, anyway, vontade de ler outras coisas suas. Imagino que depois do Caminhando na chuva deve vir muito mais.

Olha, quando eu tiver um endereço fixo no Rio, te mando. Gosto muito de cartas (tanto quanto detesto telefone) e, se você gostar também, a gente pode quem sabe trocar coisas. Estou aqui, ainda, até o dia 30 de abril. Se até lá, você quiser me escrever, mande pra cá. Meu tempo no hotel deve ser provisórios mas não posso prever.

Parando agora um pouco, me deu uma saudade grande de Porto Alegre que fica linda em abril, maio. Os plátanos da Redenção já começaram a amarelar e a perder as folhas? Acho que não, é muito cedo. Outro dia descobri três plátanos aqui, em Higienópolis, devem ser os únicos da cidade. É meio inconcebível uma cidade sem plátanos. Tenho uma vontade besta de voltar, às vezes. Mas é uma vontade semelhante à de não ter crescido.

É isto, então. Qualquer coisa que você precisar destas bandas de cá, estou às suas ordens. Cuide-se bem. Um abraço do seu amigo


Caio

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