Artigo Pessoal
Um sonho de liberdade
Clóvis Barbosa
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1963. 17 de outubro. Ainda se comemorava o bicampeonato que o Brasil, um ano antes, conquistara no Chile. Estava eu, adolescente imberbe, no meio da patuléia que se engalfinhava na entrada da Fonte Nova. Bahia e Botafogo digladiariam em instantes. O meu Bahia não era qualquer time. Vinte vezes campeão estadual até aquele momento. Primeiro campeão brasileiro, em 1959 (à época, o torneio se chamava Taça do Brasil). Derrotara, na final, o Santos de Coutinho e Pelé. Com efeito, o Bahia, que, na década de 1980, seria apelidado Tricolor de Aço, exibia um plantel com figuras medonhas: Nadinho, Hélio, Henrique, Gonzaga, Nilsinho, Florisvaldo, Agnaldo, Didico, Mário, Vadú e Miro. O Botafogo, por outro lado, não ficava para trás. Vinha com a estatura do pavor: Manga, Rildo, Zé Maria, Nilton Santos, Ivan, Ayrton, Édison, Garrincha, Quarentinha, Amarildo e Zagallo. Eu passara toda a manhã daquele dia trabalhando, na limpeza de seis escritórios do Edifício Rui Barbosa. Com o dinheiro do serviço, comprei meu ingresso para libertar-me e lavar a alma.
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E lá estava eu, na fila das arquibancadas. Ingresso na mão. Mas de repente, não mais que de repente, um meliante, desapercebidamente, arrancou-me o ingresso das mãos, numa velocidade tal, a ponto de nem o Delegado de Polícia Flávio Albuquerque, se na fila estivesse, ser capaz de identificar e prender o autor daquele crime infinitamente qualificado (até porque o chefe dele é botafoguense). Então, o mundo, sempre ele, caiu sobre mim e me levou ao chão. E, parafraseando Drummond, se eu, ao invés de Clóvis, me chamasse Raimundo, isso não seria uma rima e, tampouco, uma solução. Chorei. Chorei tal qual o poeta inglês John Milton, que, cego, não enxergou a beleza de seu poema Paraíso Perdido. Eu não veria meu Bahia jogar. Também não veria a poesia que Garrincha escreveria no gramado da Fonte Nova, com suas pernas tortas. Decepção e lágrimas. Eu, que não tinha mais um único cruzeiro no bolso. Eu, que, para ver meu Bahia, me dispus a gastar tudo o que tinha e voltar, a pé, para o Bairro da Liberdade. Todavia, como nada é tão ruim, que não possa ficar pior, meu choro e meu lamento fez com que alguns torcedores começassem a me atacar. Chamaram-me de mentiroso. “Moleque safado. Quer que a gente tenha pena dele. Quer que a gente compre seu ingresso. Exploradorzinho”. Quando esbocei minha defesa, levei foi uma bofetada de um negrão, bem no pé do ouvido. E, novamente, fui para o chão. Seria aquele negrão um torcedor do Vitória?
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Resignei-me. Mas de repente, não mais que de repente, uma moça. Ela aproximou-se. Agachou-se. Olhou-me nos olhos. Perguntou-me o que houve. Ouviu-me. Acreditou em mim. Subitamente, entretanto, seu namorado chegou, espumando e reprimindo-a. Gritou com ela. Ameaçou-a. Ela, indômita, levantou-se. Tirou seu ingresso da bolsa e o deu para mim. “Tome, menino, vá ver nosso Bahia ganhar”. O namorado empurrou-a. Disse algo de baixo calão contra ela, abandonando-a e entrando na Fonte Nova. A moça não desceu do salto. Procurou recompor-se e seguiu para o Balbininho, ao lado da Fonte Nova. Fiquei com o sentimento de culpa. Poderia ter acabado o namoro deles dois. Corri até ela. Desculpei-me. “Pegue, moça, não quero que você brigue com seu namorado”. “Ex-namorado”, corrigiu-me em tom grave, “Vá assistir ao jogo”. Corri para o meu sonho de liberdade. Vi o Bahia ganhar do Botafogo por 1 a 0. Gol de Miro. Após isso, fiquei, durante quase uma década, indo à Fonte Nova, para reencontrar aquela moça. Nunca mais a vi. Ela deu-me a liberdade. Mas acabou ficando só num sonho.
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Década de 1990. Aracaju. MFC tinha apenas 8 anos. Eu presidia a OAB-SE. MFC e mais quatro menores arrombaram uma loja de eletrodomésticos do centro da capital. Era um feriado. Furtaram o dinheiro do caixa. Enquanto um deles, com o dinheiro, ia comprar lanches para todos, os demais transformaram a loja numa discoteca. Fizeram uma festa. Queriam libertar-se. Ligaram uma TV e começaram a assistir ao Xou da Xuxa. Imitavam a dança das Paquitas, cantando: “Bom estar com você, brincar com você. Deixar correr solto o que a gente quiser. Em qualquer faz-de-conta, a gente apronta. É bom ser moleque, enquanto puder. Ser super-humano. (...). Se tudo o que é livre é super-incrível. (...). A vida é um doce. Vida é mel, que escorre da boca, feito um doce: pedaço do céu.” Gritavam alegres. Foi um sonho. Enquanto durou. Acabado o Xou da Xuxa, voltaram para a realidade: a rua. Dois dias depois, enquanto dormiam sob a marquise de uma das lojas do centro, foram acordados por policiais: “Vamos passear?” O sonho de liberdade agora era um pesadelo. Foram assassinados pela jagunçada que algum imbecil chamava de polícia. Enquanto puderam, correram soltos, aprontaram, foram moleques, super-humanos. Mas a vida escorreu-lhes da boca. E o assassino, hoje, é quem dança, soltinho, seu pedaço do céu, como uma Paquita. Difícil saber, aliás, se atualmente nossa polícia trabalha por um sonho de liberdade.
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2012. São Paulo. Cracolândia. Teresa Beatriz Viega. Uma quase septuagenária. Semblante descaído. Pernas inchadas. Passos curtos. Uma sacola na mão. Antes, ela virava a madrugada à procura do seu filho pelas ruas. Não o achará. Salvo em algum sonho de liberdade. Ele está preso. Foi acusado de tráfico. A polícia cidadã encontrou o suposto delinqüente com algumas pedras de crack. “Eu saía do serviço e vinha toda noite para cá ver João. Nem sempre o encontrava. Mas que filho não gosta de ver a mãe?” Dona Tereza permanece indo à Cracolândia. Não para ver o filho. Mas a barriga de Desirée, sua nora, e sonhar com o neto que está ali. Grávida de quatro meses, Desirée, 35 anos, também é viciada em crack. “Não sei nem se esse é o nome verdadeiro dela, mas não vou abandoná-la”, sussurra Tereza Beatriz. Dois jornalistas da Folha de S. Paulo acompanharam a procissão dos aflitos à qual Teresa se somou. Ela andou durante cerca de três horas à busca de Desirée. Achou-a numa pensão, perto da Estação da Luz. Desirée fuma crack desde os 12 anos. Acha difícil largar. Teresa, porém, não perde a esperança: “Você vai formar uma família comigo. Vai deixar tudo, sim.” Teresa é faxineira. Recebe uma pensão de R$622 e ganha R$70 por dia de trabalho.
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Tragicômico. Eu, em 1963, limpei escritórios para garantir o ingresso que permitiria ver um sonho na Fonte Nova. MFC e sua turma, pelos idos de 1990, limpou o caixa de uma loja, comprou comida e dançou o Xou da Xuxa. Sonhou e a milícia o matou. Teresa limpa casas para assegurar o sonho de garantir ao neto um futuro diferente daquele com o qual a vida presenteou o pai. Todos sonhamos o mesmo sonho. O que me incomoda, no entanto, é que nem todos ficamos livres. A vida não é doce. A vida não é mel.
(**) Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju-SE, edição de domingo a quarta-feira, 19 a 22 de fevereiro de 2012, Caderno A, p.7.