O poeta de quem falamos hoje é um trovador, um peregrino, um viajante
A propósito de Coimbra à Guitarra de Carlos Carranca
«A língua não corresponde a um pensamento, é o próprio pensamento» - disse Heidegger. Da mesma maneira, poderíamos afirmar que o modo de tocar guitarra, mais do que uma técnica, necessária todavia, é um estado de alma, e alma portuguesa, apesar do nosso instrumento, em forma de coração, descender do cistro inglês! Ao que parece, só aqui poderia ter vida. Instrumento musical imigrante, naturalizado português, transformado completamente, criámo-lo à nossa sensibilidade, e hoje não se lembra do país de origem! Que melhor acolhimento poderá haver?
Coimbra à Guitarra é o mais recente livro de Carlos Carranca. E o poeta de quem falamos hoje é um portador da poesia plasmada na sua palavra e no seu gesto, onde quer que se encontre, onde quer que vá; um trovador, um peregrino, um viajante.
Poderíamos dizer, no caso de Carlos Carranca, se antes da cidade dos estudantes à guitarra, não haveria, secretamente, uma "Lousa à guitarra"...
A imagem não é descabida, pois as impressões poéticas, são-no não só pela ainda incompreensível alquimia do inteiro acto criador, como por esse mágico espírito de lugar, que bem o sabia o filósofo português José Marinho. Os lugares eternamente recriados.
O poeta viu, sentiu e registou Coimbra. E quanto à indelével fixação dos acordes do vento da serra, dos acordes do estranho silêncio que bem pode ser a génese da palavra poética em todo o seu fulgor? Também Pascoaes ouviu o Marão antes do cantar das tricanas do Mondego; também Régio ouviu as guitarras dos marinheiros de Vila do Conde antes que tivesse escutado a de Artur Paredes; e o próprio Pessoa, nas redondezas do Teatro de 5. Carlos, imaginava a aldeia ideal que nunca teve, e escrevia: «O sino da minha aldeia/dolente na tarde calma/cada tua badalada/ soa dentro da minha alma».
O título Coimbra à Guitarra tanto pode querer dizer que é a cidade, qual vulto feminino, que, cantando, é acompanhada pelo instrumento de cordas, ou a própria cidade que dedilha a guitarra. Seja como for, não me é difícil ver, antes de mais, uma "Lousa à guitarra", uma guitarra rústica, a Lousa em menino do Carlos Carranca. Pese embora o porte hierático e extenso da serra, esta é, tal como a guitarra, uma figura feminina de formas arredondadas, que nos dedilha os sentimentos pela surpresa e pelo sedutor apelo.
Apesar de tudo isto, ainda que as imagens originais permaneçam, o homem aventureiro, o poeta na demanda da ilha ideal, move-se inevitavelmente. E o destino, o fatum latino ou o maktub, herança árabe que também nos cabe, encaminharia Carlos Carranca em direcção a Coimbra, que, para o poeta, só poderia ser acompanhada à guitarra, e não por outro instrumento. Ritual lusitano por excelência, altar céltico no panteísmo da terra; dessa terra, sem lucro, hoje escassa e que já quase não existe, e das águas cadentes e cristalinas sem pagar imposto.
Não é de todo necessário, para sentir a guitarra de Coimbra ou Coimbra à guitarra, penetrar num outro espaço ritualístico que poderia ser as águas do Tejo beijando as colinas de Lisboa de ressaibos de guitarras mouriscas, ou os antigos salões das modinhas lusobrasileiras. Mas pelo facto da guitarra ter as suas origens nas zonas marítimas, no zarpar e no atracar dos barcos, nas ondulações da incerteza, talvez isso nos ajude a uma exegese mais conveniente da Guitarra do Mondego.
Paulo Alexandre Esteves Borges em «Do finistérreo pensar», referindo-se ao fado, na equivalente guitarra, diz-nos que «O trágico perdura. A irracional cisão entre o indivíduo e o Absoluto, que faz com que relativamente haja Destino, Fatum a impessoal Moira que os gregos sabiam superior aos próprios deuses - , desafia todo o dogma religioso e as derivadas metafísicas. Por isso os portugueses a cantam, na saturnina ironia de quem contempla como vãos todos os artifícios da razão. Sabem, sem jamais terem pensado nisso, que só a dor, a extrema dor da identificação do mal do mundo, dele nos liberta».
Estas palavras encaminham-nos agora a outro ritual. Uma complementaridade tão estranha como real, uma sensibilidade coimbrã. Aqui nos deteremos no livro de Carlos Carranca, talvez compreendendo melhor que a guitarra de Carlos Paredes vem do fundo do tempo e de um lugar tão mítico como real. Vem e acrescenta Coimbra de fora; também a guitarra de um João Bagão empresta à cidade o fraseado do mar da sua terra natal, e a voz de um Luiz Soes, acorda Coimbra quando esta parece não querer acordar. E neste acordar de Coimbra, a que muitos já se têm referido, está incubada uma outra problemática mais profunda que é da memória de Coimbra, e da qual falaremos, ao de leve, em seguida.
Mas convenhamos que terá de haver sempre academia e académicos, os anos intocáveis da mocidade, quando sentimos, sem pensar, o cheiro das tílias que vem do Botânico, o luar medievo das ruas de Coimbra, os rouxinóis nos salgueiros que hoje são mais reais porque existem só quase na memória que nos corta latejante.
E ainda a propósito do que é ou não é real, diga-se que todo o sonho, no seu mundo, para os verdadeiros sonhadores é tão real como uma estrada de asfalto para os olhos que a vêem. A fantasia, o acto morno, o desalento, esses é que são as manchas doentias da vida, enquanto que pelo sonho «uma constante da vida», como lhe chamou Gedeão, o mundo pula e avança.
E o fadista de Lisboa, Vicente da Câmara, que nos canta: «Guitarra, minha guitarra,/ Conforme o teu som desgarras/ Em riso, dor ou saudade,/ Através das tuas cordas/ Nas minhas mãos tu acordas/ Diversa realidade».
E curioso lermos que é a guitarra que acorda em nós a realidade que interiormente possa existir. Ora, é toda uma realidade académica, futrica e mítica, que Carlos Carranca nos oferece no seu livro, ainda que o autor nos dê também uma guitarra ideal, isto é, uma linha de força lusíada que caracteriza o Coimbra.
O leitor esclarecido, mas que ainda não conheça a obra, deparando-se com o título Coimbra à guitarra, poderá, é claro, imaginar muita coisa. Tendo alguma sensibilidade poética e musical, talvez pense lá para si: Que guitarra o autor concebeu a acompanhar a cidade? Ou, doutro modo, com que voz tem Coimbra cantado? Há guitarras de adormecer e há outras de acordar? Há guitarras de fazer esquecer e outras de fazer lembrar?
De Coimbra à guitarra, bem poderíamos dizer (porque definir aqui não cabe) que é uma espécie de rapsódia de variações que em vez de escritas em pauta, são-no pelas palavras, melhor, pela palavra poética que entendeu, por dentro, as guitarradas dos intérpretes a quem o poeta se dirige em justa e sentida homenagem.
Vamos então ouvir o dedilhar das suas palavras. Vamos pois abrir o livro. Respirando convenientemente ao virar da folha, como quem passa de uma variação a outra na necessária mudança.
O poeta abre com uma homenagem aos salatinas, gente simples e macerada que conheceu a diáspora dentro da própria cidade. A morte da velha alta ficou sempre espetada na garganta. Concluindo este poema de abertura o poeta escreve «...protesto de ser humano/contra a morte utilitária de Coimbra». Diga-se, desde já, que o poeta nunca confunde o popular com o popularucho, o simples com o brejeiro.
E que a «morte utilitária de Coimbra» ainda que acreditemos numa qualquer ressurreição ou renascimento, vem de muito longe. Esse acordar deveria ser, antes de mais, o recordar do espírito do Estudo Geral fundado pelo rei-poeta o Lavrador, com o original acento discente e não docente, naquele velho espírito estudantil de Bolonha e não da professoral Sorbonne, vazia esta já do último sopro da dialéctica grega.
Daí que o iluminismo pombalino, positivista, burocrático, centralista e estatal, embora estruturante e reformador, viria a gerar, na cidade essencialmente universitária, um fenómeno que cindiu a sua vida, isto é, o confronto entre o estudante e o futrica, mantido ao longo de muitas gerações, e hoje naturalmente esbatido. Nessa tensão sociocultural se desenrolaram inúmeros problemas. Nas repercussões que teve na guitarra, é o que nós sabemos, sendo que o mal social deu alguns bons frutos artísticos, pois nenhuma verdadeira arte se faz sem pelo menos algum sofrimento.
Voltemos ao livro de Carlos Carranca, que dele nunca saímos. O autor estrutura a obra em três andamentos, segundo a sua sensibilidade pessoal, mas seja ela qual for, não se nos afigura difícil observar que no primeiro andamento pairam apenas dois nomes, dois arquétipos da guitarra: Artur Paredes e Carlos Paredes, como se fossem as duas colunas que sustentassem os pórticos dos templos gregos, e não vamos discutir agora qual deles representa a coluna jónica ou a coríntia. Para além destas figuras maiores, Carlos Carranca concebe este instrumento medularmente português, bem lusitano, e ainda ligado ao nome de Nossa Senhora. O eterno feminino tem na guitarra o mais alto mote. O próprio poeta o escreve, mais que uma vez, nos seus poemas.
A guitarra é feminina e de certa maneira lunar, ainda que, em nossa opinião, em Carlos Paredes, sobretudo depois do disco gravado ao vivo na ópera de Frankfurt, ela seja arrebatadora e solar. Encerremos este primeiro andamento com a leitura integral do poema que nos parece tudo resumir: «Carlos Paredes – O guitarra lusitana!/ O harpa das loucas correrias!/ Salgado mar das fantasias.../ E a voz do povo que te chama!/ Redentora e fraternal,/ és tu quem anuncia/ a hora da alegria/ de ser de novo/ o povo,/ o rei de Portugal.» E se o povo há-de ser rei, não o será certamente com esta cinzenta democracia por rainha!
Passemos ao segundo andamento, referindo, antes de mais, as primorosas ilustrações de Jorge Vicente.
É certo que as águas do Mondego não chegam a todo lado. Mas pode-se dizer que a guitarra de Flávio Rodrigues, ele também um salatina, chegou a todo o lado. E, segundo o que é dito e está escrito, à sua barbearia acudiam académicos e não académicos. Carlos Carranca abre da melhor maneira o segundo andamento do seu livro com o poema «Flávio Rodrigues - Há um lugar/ que me visita sempre/ romântico e doente/ onde a guitarra/ que só tu dedilhas/ geme sensual.» O poeta percorre, em seguida, outros guitarristas - e não os poderia visitar a todos, sob pena do livro se engrossar consideravelmente, guitarristas esses que vêm até à nossa geração, e que frequentaram a sua barbearia, verdadeira escola de ensinar, ocupando o lugar da universidade que nunca ensinava (como hoje) o que de melhor a cidade ia tendo.
No terceiro e último andamento o autor como que se desliga do poema-dedicatória, dos versos ofertados esboçando este ou aquele guitarrista, para conceber a guitarra única, a guitarra paradigma que, apesar de tudo, é real. Real na paisagem não menos verdadeira. Verdadeira porque alguém a toca com os dedos e o coração, e não porque se ouça num altifalante enquanto uns tantos apreciam camarões e os fazem deslizar na espuma artificial da cerveja.
Para concluir, vou ler dois poemas deste terceiro andamento. «Fado Menor- Cansado de Coimbra/ e seus senhores/ cansado desta lua/ dos cantores/ cansado desse ontem/ e deste hoje/ Cansado de mim mesmo/ e dos doutores/ Cansado.../
sobretudo cansado/ E o que resta?/ E Coimbra a dos amores.» Açode-nos à memória Pedro e Inês, ou o milagre das rosas da Rainha Santa. Episódios que o tempo transformou em mitos, mas também me permito discordar de muitos historiadores que dizem que a História faz o mito. Creio, e não sou o primeiro, que o mito é que faz a História. Por eles, os mitos, muito se foi criando, seja uma tela, um drama, um poema, uma guitarrada, um feriado nacional. E no fundo, a benéfica pedagogia da repetição para ver se enxergamos o arquétipo das coisas belas e perenes, das grandes causas do homem, que não são descartáveis como as inflações.
Poema «Guitarra de Coimbra - Não se deixou contaminar/ pela mania erudita/ da dita/ universidade/ popular/ ficou da cidade/ essa guitarra/aflita/ erudição/ só a do coração/ e tudo quanto toca ressuscita».
Mas antes que tudo ressuscite ou se renove há que alargar a vista, à maneira do deus bifronte Jano que tanto mirava o passado como o futuro, o além e o aquém. Símbolo do tempo, o seu rosto é herético à visão estreita hoje de muita gente. Há quem se envergonhe de olhar para trás e só viva polarizado no futuro, alheado do presente, outros vice-versa. Condenada à fogueira tem sido uma certa face de Jano, porventura o lado genuinamente português, na confusão (ou má-fé) entre internacionalismo e universalidade. Por isso a guitarra trará ainda a dor aguda de sermos nós, e nós pelos outros.
Para terminar só me resta sublinhar que o livro de Carlos Carranca preenche o espaço em Coimbra que faltava ocupar. O de um conjunto de poemas que, evocando a guitarra e os guitarristas, também se poderia chamar «Flores para Coimbra».
É urgente o som das guitarras do tempo rasgado ou em glissando, que volte a trazer o tempo para tudo, já que o time is money há-de acabar um dia. Já o profetizou o povo quando dizia: «o tempo dá-o Deus de graça!».
Diríamos até que faltam guitarras de mãos suadas, essas que devolvam o silêncio criador, que façam pausas no dia a dia. De tal modo um timbre nosso que pudéssemos reduzir as importações, sobretudo as de ideias que já não estão próprias para consumo. Timbre original pelo qual poderíamos começar a dispensar as citações obrigatórias, o tecido adiposo dos currículos... Mais do que os grandes volumes sonoros, é a guitarra, o gume ao lado do coração, que pode esconjurar o sono hipnótico que Portugal dorme; ser resistência à barbárie plutocrata, ao síndrome da coca-cola... Para que, se não pudermos ser «barões assinalados» sejamos povo assinalado, e, como Agostinho da Silva dizia, além de poetas sejamos o poema!
Lousa, 28 de Feveveiro de 2004
Eduardo Aroso
A propósito de Coimbra à Guitarra de Carlos Carranca
«A língua não corresponde a um pensamento, é o próprio pensamento» - disse Heidegger. Da mesma maneira, poderíamos afirmar que o modo de tocar guitarra, mais do que uma técnica, necessária todavia, é um estado de alma, e alma portuguesa, apesar do nosso instrumento, em forma de coração, descender do cistro inglês! Ao que parece, só aqui poderia ter vida. Instrumento musical imigrante, naturalizado português, transformado completamente, criámo-lo à nossa sensibilidade, e hoje não se lembra do país de origem! Que melhor acolhimento poderá haver?
Coimbra à Guitarra é o mais recente livro de Carlos Carranca. E o poeta de quem falamos hoje é um portador da poesia plasmada na sua palavra e no seu gesto, onde quer que se encontre, onde quer que vá; um trovador, um peregrino, um viajante.
Poderíamos dizer, no caso de Carlos Carranca, se antes da cidade dos estudantes à guitarra, não haveria, secretamente, uma "Lousa à guitarra"...
A imagem não é descabida, pois as impressões poéticas, são-no não só pela ainda incompreensível alquimia do inteiro acto criador, como por esse mágico espírito de lugar, que bem o sabia o filósofo português José Marinho. Os lugares eternamente recriados.
O poeta viu, sentiu e registou Coimbra. E quanto à indelével fixação dos acordes do vento da serra, dos acordes do estranho silêncio que bem pode ser a génese da palavra poética em todo o seu fulgor? Também Pascoaes ouviu o Marão antes do cantar das tricanas do Mondego; também Régio ouviu as guitarras dos marinheiros de Vila do Conde antes que tivesse escutado a de Artur Paredes; e o próprio Pessoa, nas redondezas do Teatro de 5. Carlos, imaginava a aldeia ideal que nunca teve, e escrevia: «O sino da minha aldeia/dolente na tarde calma/cada tua badalada/ soa dentro da minha alma».
O título Coimbra à Guitarra tanto pode querer dizer que é a cidade, qual vulto feminino, que, cantando, é acompanhada pelo instrumento de cordas, ou a própria cidade que dedilha a guitarra. Seja como for, não me é difícil ver, antes de mais, uma "Lousa à guitarra", uma guitarra rústica, a Lousa em menino do Carlos Carranca. Pese embora o porte hierático e extenso da serra, esta é, tal como a guitarra, uma figura feminina de formas arredondadas, que nos dedilha os sentimentos pela surpresa e pelo sedutor apelo.
Apesar de tudo isto, ainda que as imagens originais permaneçam, o homem aventureiro, o poeta na demanda da ilha ideal, move-se inevitavelmente. E o destino, o fatum latino ou o maktub, herança árabe que também nos cabe, encaminharia Carlos Carranca em direcção a Coimbra, que, para o poeta, só poderia ser acompanhada à guitarra, e não por outro instrumento. Ritual lusitano por excelência, altar céltico no panteísmo da terra; dessa terra, sem lucro, hoje escassa e que já quase não existe, e das águas cadentes e cristalinas sem pagar imposto.
Não é de todo necessário, para sentir a guitarra de Coimbra ou Coimbra à guitarra, penetrar num outro espaço ritualístico que poderia ser as águas do Tejo beijando as colinas de Lisboa de ressaibos de guitarras mouriscas, ou os antigos salões das modinhas lusobrasileiras. Mas pelo facto da guitarra ter as suas origens nas zonas marítimas, no zarpar e no atracar dos barcos, nas ondulações da incerteza, talvez isso nos ajude a uma exegese mais conveniente da Guitarra do Mondego.
Paulo Alexandre Esteves Borges em «Do finistérreo pensar», referindo-se ao fado, na equivalente guitarra, diz-nos que «O trágico perdura. A irracional cisão entre o indivíduo e o Absoluto, que faz com que relativamente haja Destino, Fatum a impessoal Moira que os gregos sabiam superior aos próprios deuses - , desafia todo o dogma religioso e as derivadas metafísicas. Por isso os portugueses a cantam, na saturnina ironia de quem contempla como vãos todos os artifícios da razão. Sabem, sem jamais terem pensado nisso, que só a dor, a extrema dor da identificação do mal do mundo, dele nos liberta».
Estas palavras encaminham-nos agora a outro ritual. Uma complementaridade tão estranha como real, uma sensibilidade coimbrã. Aqui nos deteremos no livro de Carlos Carranca, talvez compreendendo melhor que a guitarra de Carlos Paredes vem do fundo do tempo e de um lugar tão mítico como real. Vem e acrescenta Coimbra de fora; também a guitarra de um João Bagão empresta à cidade o fraseado do mar da sua terra natal, e a voz de um Luiz Soes, acorda Coimbra quando esta parece não querer acordar. E neste acordar de Coimbra, a que muitos já se têm referido, está incubada uma outra problemática mais profunda que é da memória de Coimbra, e da qual falaremos, ao de leve, em seguida.
Mas convenhamos que terá de haver sempre academia e académicos, os anos intocáveis da mocidade, quando sentimos, sem pensar, o cheiro das tílias que vem do Botânico, o luar medievo das ruas de Coimbra, os rouxinóis nos salgueiros que hoje são mais reais porque existem só quase na memória que nos corta latejante.
E ainda a propósito do que é ou não é real, diga-se que todo o sonho, no seu mundo, para os verdadeiros sonhadores é tão real como uma estrada de asfalto para os olhos que a vêem. A fantasia, o acto morno, o desalento, esses é que são as manchas doentias da vida, enquanto que pelo sonho «uma constante da vida», como lhe chamou Gedeão, o mundo pula e avança.
E o fadista de Lisboa, Vicente da Câmara, que nos canta: «Guitarra, minha guitarra,/ Conforme o teu som desgarras/ Em riso, dor ou saudade,/ Através das tuas cordas/ Nas minhas mãos tu acordas/ Diversa realidade».
E curioso lermos que é a guitarra que acorda em nós a realidade que interiormente possa existir. Ora, é toda uma realidade académica, futrica e mítica, que Carlos Carranca nos oferece no seu livro, ainda que o autor nos dê também uma guitarra ideal, isto é, uma linha de força lusíada que caracteriza o Coimbra.
O leitor esclarecido, mas que ainda não conheça a obra, deparando-se com o título Coimbra à guitarra, poderá, é claro, imaginar muita coisa. Tendo alguma sensibilidade poética e musical, talvez pense lá para si: Que guitarra o autor concebeu a acompanhar a cidade? Ou, doutro modo, com que voz tem Coimbra cantado? Há guitarras de adormecer e há outras de acordar? Há guitarras de fazer esquecer e outras de fazer lembrar?
De Coimbra à guitarra, bem poderíamos dizer (porque definir aqui não cabe) que é uma espécie de rapsódia de variações que em vez de escritas em pauta, são-no pelas palavras, melhor, pela palavra poética que entendeu, por dentro, as guitarradas dos intérpretes a quem o poeta se dirige em justa e sentida homenagem.
Vamos então ouvir o dedilhar das suas palavras. Vamos pois abrir o livro. Respirando convenientemente ao virar da folha, como quem passa de uma variação a outra na necessária mudança.
O poeta abre com uma homenagem aos salatinas, gente simples e macerada que conheceu a diáspora dentro da própria cidade. A morte da velha alta ficou sempre espetada na garganta. Concluindo este poema de abertura o poeta escreve «...protesto de ser humano/contra a morte utilitária de Coimbra». Diga-se, desde já, que o poeta nunca confunde o popular com o popularucho, o simples com o brejeiro.
E que a «morte utilitária de Coimbra» ainda que acreditemos numa qualquer ressurreição ou renascimento, vem de muito longe. Esse acordar deveria ser, antes de mais, o recordar do espírito do Estudo Geral fundado pelo rei-poeta o Lavrador, com o original acento discente e não docente, naquele velho espírito estudantil de Bolonha e não da professoral Sorbonne, vazia esta já do último sopro da dialéctica grega.
Daí que o iluminismo pombalino, positivista, burocrático, centralista e estatal, embora estruturante e reformador, viria a gerar, na cidade essencialmente universitária, um fenómeno que cindiu a sua vida, isto é, o confronto entre o estudante e o futrica, mantido ao longo de muitas gerações, e hoje naturalmente esbatido. Nessa tensão sociocultural se desenrolaram inúmeros problemas. Nas repercussões que teve na guitarra, é o que nós sabemos, sendo que o mal social deu alguns bons frutos artísticos, pois nenhuma verdadeira arte se faz sem pelo menos algum sofrimento.
Voltemos ao livro de Carlos Carranca, que dele nunca saímos. O autor estrutura a obra em três andamentos, segundo a sua sensibilidade pessoal, mas seja ela qual for, não se nos afigura difícil observar que no primeiro andamento pairam apenas dois nomes, dois arquétipos da guitarra: Artur Paredes e Carlos Paredes, como se fossem as duas colunas que sustentassem os pórticos dos templos gregos, e não vamos discutir agora qual deles representa a coluna jónica ou a coríntia. Para além destas figuras maiores, Carlos Carranca concebe este instrumento medularmente português, bem lusitano, e ainda ligado ao nome de Nossa Senhora. O eterno feminino tem na guitarra o mais alto mote. O próprio poeta o escreve, mais que uma vez, nos seus poemas.
A guitarra é feminina e de certa maneira lunar, ainda que, em nossa opinião, em Carlos Paredes, sobretudo depois do disco gravado ao vivo na ópera de Frankfurt, ela seja arrebatadora e solar. Encerremos este primeiro andamento com a leitura integral do poema que nos parece tudo resumir: «Carlos Paredes – O guitarra lusitana!/ O harpa das loucas correrias!/ Salgado mar das fantasias.../ E a voz do povo que te chama!/ Redentora e fraternal,/ és tu quem anuncia/ a hora da alegria/ de ser de novo/ o povo,/ o rei de Portugal.» E se o povo há-de ser rei, não o será certamente com esta cinzenta democracia por rainha!
Passemos ao segundo andamento, referindo, antes de mais, as primorosas ilustrações de Jorge Vicente.
É certo que as águas do Mondego não chegam a todo lado. Mas pode-se dizer que a guitarra de Flávio Rodrigues, ele também um salatina, chegou a todo o lado. E, segundo o que é dito e está escrito, à sua barbearia acudiam académicos e não académicos. Carlos Carranca abre da melhor maneira o segundo andamento do seu livro com o poema «Flávio Rodrigues - Há um lugar/ que me visita sempre/ romântico e doente/ onde a guitarra/ que só tu dedilhas/ geme sensual.» O poeta percorre, em seguida, outros guitarristas - e não os poderia visitar a todos, sob pena do livro se engrossar consideravelmente, guitarristas esses que vêm até à nossa geração, e que frequentaram a sua barbearia, verdadeira escola de ensinar, ocupando o lugar da universidade que nunca ensinava (como hoje) o que de melhor a cidade ia tendo.
No terceiro e último andamento o autor como que se desliga do poema-dedicatória, dos versos ofertados esboçando este ou aquele guitarrista, para conceber a guitarra única, a guitarra paradigma que, apesar de tudo, é real. Real na paisagem não menos verdadeira. Verdadeira porque alguém a toca com os dedos e o coração, e não porque se ouça num altifalante enquanto uns tantos apreciam camarões e os fazem deslizar na espuma artificial da cerveja.
Para concluir, vou ler dois poemas deste terceiro andamento. «Fado Menor- Cansado de Coimbra/ e seus senhores/ cansado desta lua/ dos cantores/ cansado desse ontem/ e deste hoje/ Cansado de mim mesmo/ e dos doutores/ Cansado.../
sobretudo cansado/ E o que resta?/ E Coimbra a dos amores.» Açode-nos à memória Pedro e Inês, ou o milagre das rosas da Rainha Santa. Episódios que o tempo transformou em mitos, mas também me permito discordar de muitos historiadores que dizem que a História faz o mito. Creio, e não sou o primeiro, que o mito é que faz a História. Por eles, os mitos, muito se foi criando, seja uma tela, um drama, um poema, uma guitarrada, um feriado nacional. E no fundo, a benéfica pedagogia da repetição para ver se enxergamos o arquétipo das coisas belas e perenes, das grandes causas do homem, que não são descartáveis como as inflações.
Poema «Guitarra de Coimbra - Não se deixou contaminar/ pela mania erudita/ da dita/ universidade/ popular/ ficou da cidade/ essa guitarra/aflita/ erudição/ só a do coração/ e tudo quanto toca ressuscita».
Mas antes que tudo ressuscite ou se renove há que alargar a vista, à maneira do deus bifronte Jano que tanto mirava o passado como o futuro, o além e o aquém. Símbolo do tempo, o seu rosto é herético à visão estreita hoje de muita gente. Há quem se envergonhe de olhar para trás e só viva polarizado no futuro, alheado do presente, outros vice-versa. Condenada à fogueira tem sido uma certa face de Jano, porventura o lado genuinamente português, na confusão (ou má-fé) entre internacionalismo e universalidade. Por isso a guitarra trará ainda a dor aguda de sermos nós, e nós pelos outros.
Para terminar só me resta sublinhar que o livro de Carlos Carranca preenche o espaço em Coimbra que faltava ocupar. O de um conjunto de poemas que, evocando a guitarra e os guitarristas, também se poderia chamar «Flores para Coimbra».
É urgente o som das guitarras do tempo rasgado ou em glissando, que volte a trazer o tempo para tudo, já que o time is money há-de acabar um dia. Já o profetizou o povo quando dizia: «o tempo dá-o Deus de graça!».
Diríamos até que faltam guitarras de mãos suadas, essas que devolvam o silêncio criador, que façam pausas no dia a dia. De tal modo um timbre nosso que pudéssemos reduzir as importações, sobretudo as de ideias que já não estão próprias para consumo. Timbre original pelo qual poderíamos começar a dispensar as citações obrigatórias, o tecido adiposo dos currículos... Mais do que os grandes volumes sonoros, é a guitarra, o gume ao lado do coração, que pode esconjurar o sono hipnótico que Portugal dorme; ser resistência à barbárie plutocrata, ao síndrome da coca-cola... Para que, se não pudermos ser «barões assinalados» sejamos povo assinalado, e, como Agostinho da Silva dizia, além de poetas sejamos o poema!
Lousa, 28 de Feveveiro de 2004
Eduardo Aroso
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