quarta-feira, 1 de maio de 2013

LEMBRANÇAS



Eu invejo as pessoas que têm fartas lembranças da própria infância. Falam dela com riqueza de detalhes, falam sobre coisas grandes e pequenas, pessoas e lugares  que já nem existem mais.

Eu não. Com muito custo lembro das duas coisas mais remotas da minha vida. E ainda às vezes até duvido delas, pois podem nem ser uma lembrança minha,  pode ser que alguém tenha me contado. Fiapos!

Os bois... 

A minha primeira memória são bois envoltos na poeira da rua. 
Eu teria então uns quatro de idade, e estava sentada no primeiro degrau de uma escada muito alta (tudo era então tão grande) na frente da nossa casa, lá em Minas. 
Ao meu lado, a minha avó, de roupa preta e lenço preto na cabeça,  me dando cana em pequenos toletes muito doces.
Foi então que apareceu o primeiro boi, de uma grande boiada conduzida por homens de chapéu largo na cabeça.
Era um boi medonho.  Ele tinha uma cara grande marrom da cor da terra da estrada, e o focinho úmido bufando: eu vi o olho do boi me olhando.
Foi coisa de minuto, minha avó me puxou escada acima e ficamos lá olhando aquela multidão de lombos suados passando, passando, interminável, enquanto a poeira da estrada subia e se alastrava.

As rosas...

Então eu já tinha uns cinco para seis anos, e já era no porão que alugávamos em São Paulo, na Rua Domingos de Morais. Tinha um jardim de  roseiras velhas muito altas, de tronco grosso e espinhento,  na porta da cozinha.  
O sol, batendo nelas contra o muro branco, formava desenhos de sombras dançantes.  Sentada num degrau,  eu cheirava o ar perfumado de rosas e de feijão cozinhando, enquanto sondava as formigas cortadeiras andando em fila indiana e carregando pedacinhos de folhas. E escutava as abelhas zumbindo em volta das rosas.  

O mundo mais recente  parece que também já está sendo envolto numa espécie de torvelinho, uma névoa, prestes a desaparecer.  Parece que eu tenho que lutar de alguma forma - talvez escrevendo? - porque mesmo essas cenas de agora também  podem a qualquer momento se apagar. Deletando  o que eu fui, e o que eu sou.

6 comentários:

vidacuriosa disse...

É muito bom relembrar cenas de infância ainda que, como disseste, fiquemos em dúvida se elas chegaram pelo olhar e pelos ouvidos ou se entrou na memória pelos relatos da família e de amigos. Gostei demais desse texto tanto pelo conteúdo quanto pela maravilhosa forma de se expressar. Abraços.

Clarice disse...

Como sempre belo texto.
Bois e flores passaram pelas janelas de meus olhos. Uns tangidos pelo estalo do chicote na terra batida, que desde longe também nos fazia correr para dentro de casa. Era tão natural saber que aquele cansaço nos olhos já vidrados viraria alimento. As flores me ensinaram a amá-las.

Mais tarde, mas a curiosa lembrança primeira que guardo, acho que nem 3 anos eu tinha. Tenho medo dessa lembrança: meu pai brincando de me deixar sobre um guarda-roupas e fazendo tchauzinho.
Uma segunda? Minha irmã mais velha chorando porque eu joguei a boneca dela, com cara de louça por sobre a grade da varanda.

Parece que as lembranças de alguma forma definem algum fato futuro. Nem te conto!
Abraço.

Dalva M. Ferreira disse...

Obridadíssima, diletos amigos, pelos comentários sempre generosos. A Mercedes Sosa canta uma música linda, cuja letra fala que a gente sempre volta aos lugares em que amou na vida. Tão verdadeiro!

Janelice Bastiani disse...

Oi Dalva,
O que vc coloca como qualidade, as vezes nos coloca em situações embaraçosas,quando contamos que lembramos e outro ao menos sabe do que estamos falando, enfim...
Agora já sigo o teu blog.
Passei para conhecer o blog e adorei. Convido vc para conhecer meu blog http://crochelinhasagulhas.blogspot.com.br/, aguardo tua visita.
bj

Dona Sra. Urtigão disse...

Não permita espaço ao esquecimento. mesmo que sejam memorias construidas, somos o que sabemos de nós, por fora e por dentro.

Leli Baron disse...

Que belo texto. Voltei no tempo e veio a primeira lembrança da minha infância. O nascimento do meu irmão, eu tinha apenas 3 anos, mas não esqueço que vi de longe minha mãe na varanda do hospital me dando tchau e em seguida meu pai passou em um mercado e comprou uma banheira azul.