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segunda-feira, 25 de março de 2019

LUTAR POR AQUILO QUE VALE A PENA

Você briga com o seu marido ou esposa por quais motivos? Por ciúme? Por sair ou não sair com amigos? Por falta de atenção? Por não ter aquilo que sonhava? Pelo futebol da semana? Pela intrusão da sogra em sua história?

Casais se desentendem por bobagens. Podem se distanciar por trivialidades. Amam-se, mas ocupam a maior parte da rotina se diminuindo e pressionando o parceiro ou parceira a adotar as atitudes desejadas. A companhia é obrigada a entrar forçosamente numa forma. É como um pé 40 precisando calçar 38.

Se ele é mais silencioso, deve ser mais sociável. Se ela é explosiva, deve se controlar mais. Se ele é desorganizado, deve guardar as suas roupas. Se ela é meticulosa, deve aguentar a pia suja no final de semana. As exigências absurdas não têm fim. Parece que a relação só desfruta de sentido mudando o par, indo contra a natureza do par.

Inventam problemas, criam obstáculos, não há motivos para os conflitos. Não enfrentaram nenhuma grande dor para entender o que é sofrer de verdade. Não perderam um filho, não estão com uma doença terminal, não têm os dias contados, não entraram em depressão, não sacrificaram os cabelos na quimioterapia, não arcaram com o luto dos pais.

São crianças mimadas, que não brincam com aquilo que são, que teimam em cobiçar e possuir o brinquedo de seu coleguinha.

Há de se fazer a pergunta: qual o inimigo do seu amor? Se não existe inimigo real e perigoso, que não gaste o tempo com picuinhas. Se não existe nada que possa separá-los, que aproveite a intimidade, que explore a felicidade do momento. Que não estrague a saúde com estremecimentos desnecessários. Que não forje separações à toa. Que não chantageie por fantasias. Que se preparem para lutar juntos contra as adversidades quando surgirem, jamais desperdicem o dom da união lutando um contra o outro antes das provações da vida.

Esquecem que encontrar alguém que se goste, que desperte a taquicardia, que provoque a saudade, capaz de partilhar afinidades e memórias inimagináveis, é raro, um milagre na loteria da multidão.

Não há nada mais triste do que se separar sem motivo. É prova de absoluto egoísmo com a sorte do amor.

Crônica publicada em 23/7/2018

AMOR FELIZ

Amor feliz é como água do mar que você pode ver os seus pés.

Amor feliz é quando você não esconde nada. Nenhuma tristeza, nenhuma alegria, nenhuma mensagem, nenhum pensamento. Você não tem vergonha de algo que possa ser encontrado, algo que fez, algo que aconteceu. Não mantém flertes para o futuro, não é infiel em segredo, não fica olhando toda saia como se fosse solteiro, não cobiça corpos e lugares. Não usa mentiras para se proteger, não omite para tirar vantagem, não há afrodisíaco em enganar e ser mais esperto, não disputa para ser mais inteligente e mais esclarecido, não pretende se sobressair, não se elogia para diminuir a sua companhia, não reclama para constranger, não transa para se exibir e dizer que o outro não aguenta o seu ritmo.

Você é de manhã aquilo que é de tarde aquilo que é de noite. Igualzinho, transparente como a água do mar.

Amor feliz não é quando você deita no travesseiro com a consciência tranquila, é quando a sua esposa deita em seu peito em paz e adormece. Significa que ela confia em você. Nenhuma mulher deita no peito de um homem sem confiar.

Aquele peito que já foi almofada de filho, muralha de lágrimas de amigos, encosto repentino de irmãos, torna-se destino definitivo de alguém.

Você não deita em meu peito, Beatriz, você mora em meu peito, com os cabelos loiros espalhados como se estivesse boiando ao sol.

Você não deita em meu peito para fazer charme, para indicar afeto e conforto. Eu sei que gosta mesmo. Demonstra uma vontade de morrer assim.

Eu não me mexo, orgulhoso, guardião de seu sono. É respirar baixinho para não acordá-la. É seguir imóvel durante horas, sem me virar, pelo prazer de ser escolhido.

Quando ela desperta do encantamento, me pergunta se está me machucando. E respondo que só me machuca quando não está por perto.

Amor feliz é isso.

Crônica publicada em 21/7/2018

FELIZ DIA DO AMIGO

Os amigos não precisam estar ao lado para justificar a lealdade. Mandar relatórios do que estão fazendo para mostrar preocupação.

Os amigos são para toda a vida, ainda que não estejam conosco a vida inteira.

Temos o costume de confundir amizade com onipresença e exigimos que as pessoas estejam sempre por perto, de plantão.

Amizade não é dependência, submissão. Não se têm amigos para concordar na íntegra, mas para revisar os rascunhos e duvidar da letra.

É independência, é respeito, é pedir uma opinião que não seja igual, uma experiência diferente.

Se o amigo desaparece por semanas, imediatamente se conclui que ele ficou chateado por alguma coisa. Diante de ausências mais longas e severas, cobramos telefonemas e visitas. E já se está falando mal dele por falta de notícias. Logo dele que nunca fez nada de errado!

O que é mais importante: a proximidade física ou afetiva? A proximidade física nem sempre é afetiva.

Amigo pode ser um álibi ou cúmplice ou um bajulador ou um oportunista, ambicionando interesses que não o da simples troca e convívio.

Amigo mesmo demora a ser descoberto.

É a permanência de seus conselhos e apoio que dirão de sua perenidade.

Amigo mesmo modifica a nossa história, chega a nos combater pela verdade e discernimento, supera condicionamentos e conluios.

São capazes de brigar com a gente pelo nosso bem-estar.

Assim como há os amigos imaginários da infância, há os amigos invisíveis na maturidade.

Aqueles que não estão perto podem estar dentro.

Tenho amigos que nunca mais vi, que nunca mais recebi novidades e os valorizo com o frescor de um encontro recente.

Não vou mentir a eles “vamos nos ligar?” num esbarrão de rua.

Muito menos dar desculpas esfarrapadas ao distanciamento.

Eles me ajudaram e não necessitam atualizar o cadastro para que sejam lembrados. Ou passar em casa todo o final de semana e me convidar para ser padrinho de casamento, dos filhos, dos netos, dos bisnetos.

Caso encontrá-los, haverá a empatia da primeira vez, a empatia da última vez, a empatia incessante de identificação.

Amigos me salvaram da fossa, amigos me salvaram das drogas, amigos me salvaram da inveja, amigos me salvaram da precipitação, amigos me salvaram das brigas, amigos me salvaram de mim.

Os amigos são próprios de fases: da rua, do Ensino Fundamental, do Ensino Médio, da faculdade, do futebol, da poesia, do emprego, da dança, dos cursos de inglês, da capoeira, da academia, do blog. Significativos em cada etapa de formação.

Não estão em nossa frente diariamente, mas estão em nossa personalidade, determinando, de modo imperceptível, as nossas atitudes.

Quantas juras foram feitas em bares a amigos, bêbados e trôpegos?

Amigo é o que fica depois da ressaca. É glicose no sangue. A serenidade.

Crônica publicada em 20/7/2018

OS SAPATOS DE MEU PAI

Em algum instante de sua vida, você precisa tirar os sapatos de seu pai.

E colocá-lo a dormir.

Você mudará a sua perspectiva de filho e será um pouco pai de seu pai. Há uma humildade que atinge os pensamentos no ato de se agachar, desamarrar os sapatos e encontrar uma fresta no calcanhar para tirá-los. Preste atenção: aqueles minutos são eternos, seguem uma duração emocional incomparável. Lembrará de quantas vezes ele lhe fez isso, sem que você pudesse antever o esforço de convencer alguém cansado a lhe desfazer de suas roupas.

Aquele marmanjo torna-se uma criança, como você já foi: briga, não quer, reclama, esperneia, diz que consegue sozinho.

Não dará ouvidos às lamúrias. Seguirá com o protocolo do sono até acomodar o seu gigante debaixo das cobertas.

Eu botei meu pai em seu berço uma noite de minha consciência, quando ele estava exausto de dirigir por cinco horas. Eu já lhe vi dormindo alisando a sua testa suada e seus cabelos engomados. Murmurei algumas palavras cantadas. Brinquei de ser responsável mesmo sendo um menino.

Ele não recordou de nada na manhã seguinte. Não lembrava de como colocou o pijama, de como deitou, de como adormeceu. Eu ri de seu esquecimento porque eu lembraria para sempre. Por nós.

Crônica publicada em em 19/7/2018

DEZ MANDAMENTOS DO FILHO COM A VELHICE DOS PAIS

1) Não permita nunca que os seus velhos pais sejam mendigos de seu afeto. Que não demore dias para retornar a ligação.
2) Que não marque e desmarque encontros, que não dê desculpas do excesso de trabalho. Não torture com a esperança. Não prometa para mudar de ideia em cima da hora. Cumpra aquilo que foi agendado.
3) Que não compre brigas tolas com os irmãos - porque sobrará sempre para os pais aguentar as lamúrias dos dois lados, resolver as diferenças e encontrar a paz.
4) Não minta sob o pretexto de poupá-los do sofrimento. Divida a dúvida.
5) Que confie na destreza dos pais em realizar as suas tarefas, não confunda lentidão com incapacidade.
6) Que mostre algo que aprendeu com eles, exercitando a saudade na presença.
7) Que não fique irritado ao ouvir as mesmas histórias, que ofereça paciência para descobrir novos detalhes das lembranças.
8) Que aceite conselhos, por mais divergentes que sejam da sua opinião. Não corte a conversa porque já imagina onde vai parar.
9) Que peça a benção. Que diga eu te amo.
10) Que, de longe, acene para a janela.

Crônica publicada em 18/7/2018

A COPA É DOS IMIGRANTES

Não houve derrotados no 4 a 2 da França sobre a Croácia no domingo (15/7).

Os franceses ganharam o seu bicampeonato em jogo eletrizante (igualando-se em títulos com a Argentina e Uruguai), mas foi o amor que venceu o ódio na final da Copa. O futebol bateu o racismo, a xenofobia e a intolerância religiosa.

Não significou apenas uma decisão inédita, mas uma demonstração de força da integração entre povos e da superação globalizada das diferenças.

Ambas as seleções representaram minorias em campo, ambas despertavam a simpatia das torcidas do resto do mundo pelas trajetórias de feridas e de discriminação, ambas correspondiam a lados mais fracos e desfavorecidos da humanidade.

Foi o encontro entre um time de refugiados, a Croácia, e um time de imigrantes, a França.

A Croácia é formada de atletas que sofreram com a guerra pela independência. Ou ficaram desterrados em outro país como Ivan Rakitic, na Suíça, e Mario Mandzukic, em Diztingen, na Alemanha, ou sobreviveram em pleno conflito, como Luka Modric (escondido em Zadar). Modric, inclusive, Bola de Ouro da Rússia, testemunhou a sua casa incendiada por milicianos da minoria sérvia da então Iugoslávia e arcou com o trauma de suportar o fuzilamento de seu avô.

Já a campeã França é toda miscigenada, é toda multicultural, é toda feita de famílias egressas da pobreza em busca de um lugar ao sol na Europa. Não deixa de ser um plantel com o DNA majoritariamente africano.

N'Golo Kanté é filho de imigrantes do Mali e, absurdamente, catava lixo nas ruas de Paris aos 7 anos. Presnel Kimpembe é filho de congoleses. Benjamin Mendy é filho de senegaleses. Ousmane Dembélé é filho de mãe senegalesa e pai malinês. Corentin Tolisso é filho de imigrantes de Togo. Blaise Matuidi é filho de angolanos. Steven Nzonzi veio do Congo. Samuel Umtiti, autor da cabeçada salvadora na semifinal contra a Bélgica, é natural de Camarões.

Os heróis velocistas e fintadores Paul Pogba e Kylian Mbappé, responsáveis pela diferença do placar na decisão, não fogem à regra. O primeiro é filho de mãe guineense e pai congolês; e o segundo, de pai camaronês e mãe argelina.

Se a Croácia não tivesse repatriado os seus craques, não colocaria o seu nome na história com o segundo lugar, superando os feitos de Suker de 1998.

Se a França não abrisse as suas fronteiras, se não derrubasse a Bastilha das etnias, o seu combinado de furacão e técnica desapareceria do mapa do nosso coração.

Crônica publicada em 15/7/2018

DUAS ALMAS

Quando você aceita o amor dos pais é que finalmente amadureceu e se aceitou.

Uma observação simples que guardo, agora adulto, no estojo das minhas medalhas escolares.

Quando você não sente mais vergonha de abraçar e beijar os pais em público, quando você não sente mais vergonha de suas piadas na mesa familiar, quando você não sente mais vergonha do que eles falam de você para os amigos, quando você não sente mais vergonha de seu completo despreparo para localizar a câmera no celular, quando você não sente mais vergonha de alguma roupa ou de algum sapatinho ou de alguma bolsa antiga, quando você não sente mais vergonha do pai aplaudindo um pouso difícil de avião ou da mãe aplaudindo um filme no cinema, quando você se vê livre dos preconceitos que adiam a paz e participa junto do vexame infinito que é viver.

Neste momento, você, tão acostumado a criticar, também passa a confiar nos elogios dos pais. Quem somente presta atenção no lado ruim dos outros não é capaz de identificar o lado bom.

Nunca admitia nenhuma declaração de amor deles porque eu não conseguia me declarar. Achava ridículo me declarar.

Minha mãe sempre me dizia que eu seria filho dela de qualquer jeito. Se eu não tivesse saído de seu ventre, eu sairia de seu coração. Se não tivesse sido fruto de sua gestação, seria árvore de seus caminhos. Se não tivesse partido de sua carne, ainda nos reconheceríamos na rua e do parto de seus olhos.

Eu não acreditava em suas palavras. Hoje acredito. Hoje sei o quanto é verdade.

Existem pessoas tão generosas que vêm ao mundo com duas almas. Como a minha mãe. Quando eu perdi a minha alma, ela me emprestou a sua e ainda avisou que não havia nenhuma pressa para devolver.

Crônica publicada em 13/7/2018

O GRILO É UM LEÃO

Esse menino é triste. Parece que aceitou posar para fotografia a contragosto.

Não é uma criança satisfeita. Olhos crispados, as sobrancelhas formam uma goleira na testa. Ele é Luka. Mas não sabe que é Luka Modric, armador de Real Madrid, de 32 anos, possível melhor jogador do mundo, que pode ser campeão da Copa pela Croácia, um país que nem sequer existe no tempo da imagem.

Ainda está com os pés plantados na Iugoslávia, que se desdobrará em mais cinco outra nações – Bósnia e Herzegovina, Macedônia, Eslovênia, Montenegro e Sérvia.

Ele não tem ideia do que será capaz, é um menino carente como milhares iguais a ele, que nasceu na guerra fratricida dos Balcãs, no meio do fogo cruzado.

Sua mirada mescla melancolia e raiva, como se não houvesse futuro. Ele não tem como adivinhar que será um herói de seu novo país dali a duas décadas, deixando para trás potências do futebol como Inglaterra e Argentina.

É improvável qualquer pressentimento de grandeza naquele momento. Ele não tem nem um país, só o medo, seu avô havia sido assassinado há dois anos pelo Exército Popular Iugoslavo, que buscava deter o movimento pela independência croata.

A vida não dava espaço para profecias. Ele mora num hotel para refugiados com a família, isolado da capital Zagreb, do qual fugiu pelas montanhas durante dias a pé para não ser morto. Ele não poderia sonhar, sonhar era um luxo e só lhe restava na hora o seu instinto de sobrevivência.

Como prever que participaria da final de Copa, capitão da equipe, dono da camisa dez, maestro dos contra-ataques, se ele joga bola hoje com os amigos, assustado, olhando para o céu, entre bombardeios e evacuações?

Não acena para os aviões, como qualquer filho feliz, foge deles a partir das sombras no solo.

É um menino cabisbaixo, retraído, tímido. Não vai sorrir. Não guarda nenhum motivo para sorrir, nem esperança para sorrir.

Se uma cigana lesse os sortilégios das linhas de suas mãos, ele acharia deboche. Como que viraria a ser um craque se todos o consideravam fraquinho demais para ser profissional? Se o seu próprio clube predileto, Hadjuk Split, o dispensou da peneira pelo porte franzino, se o treinador chegou a rir dele, dizendo que era um grilo?

Não duvide da superação psicológica e da resiliência de Luka Modric.

Luka é Esparta no mundo apolíneo do futebol, regrado pela racionalidade mercadológica, força física e imponência muscular. Ao lado de Cristiano Ronaldo, o seu físico desaparece. Quando Ronaldo comemora um gol, é uma estátua. Quando Luka comemora um gol, é uma explosão de nervos e emoção, um soldado gritando de horror das trincheiras e casamatas.

Ele nunca cansará de lutar numa partida, de virar escores, de se acabar correndo, de fortalecer a sua fé a partir das recusas e de placares adversos, de contrariar expectativas. Ele já foi esse menino.

Mbappé, Griezmann e Pogba, olhem bem para esse grilo, engulam a supremacia, abram espaço para o impossível, dentro dele bate um coração de leão.

Crônica publicada em 12/7/2018

FAÇO QUESTÃO DE DORMIR NA MESMA CAMA COM A ESPOSA

É moda, é liberal casais que dormem em quartos separados. Só se encontram na mesma cama para namorar. Em alguns casos mais avançados, cada um tem a sua casa. Trata-se de uma forma de manter a independência dentro do casamento e não se incomodar com os problemas do parceiro. É o amor de hotel, confortável, de solidões defensáveis, em que estar com o outro não é estar sempre grudado.

Não me serve a regra. Não consigo ser moderno. Nem teríamos dinheiro para sustentar duas residências. Nosso amor deve ser de bangalô.

O que mais gosto é a possibilidade de dividir os travesseiros com a minha esposa. Não deixamos a distância crescer entre nós. Sou viciado no cheiro do cangote dela, dependente de seu perfume e de sua pele macia, de seus rituais de copo de água na cabeceira e de seu sotaque mineiro no boa-noite.

Quando durmo sozinho, durmo mal. Não encontro posição confortável. Meu corpo é feito para o corpo dela. Ele se encaixa perfeitamente em suas pernas e braços. Unicamente a conchinha e abraço apertado me garantem paz.

O casal que dorme em quarto separados livra-se do ronco, das manias de televisão e de abajur para a leitura de sua companhia, dos fusos diferentes de sono, das levantadas ao banheiro ou dos alarmes do celular discordantes, do bruxismo e das conversas sonâmbulas, mas perde a cumplicidade inestimável dos pés dados debaixo dos lençóis. Mas perde a possibilidade de ouvir o eu te amo durante o sono. Mas perde o remédio aos pesadelos que é ser confortado no meio da noite com um colo. Mas perde a chance do sexo que não foi agendado, que não foi planejado, vontade súbita dos encantamentos da carne. Mas perde a ternura que é retirar os óculos e o livro das mãos da esposa quando ela cochila lendo. Mas perde a sabedoria de dividir os pensamentos que eliminam as preocupações. Mas perde de enxergar como está o humor de quem nos acompanha. Mas perde o tempo de socorrer no momento de angústia. Mas perde o teatro nô de pôr a camisola e o pijama. Mas perde a gentileza de vencer a preguiça e buscar mais uma coberta ou fechar a janela. Mas perde as brincadeiras “tire as mãos frias de mim” ou a “sua bunda está gelada”. Mas perde as risadas do inverno e as corridas loucas do banho. Mas perde a expectativa de Cristovão Colombo na hora de abrir as cortinas e revelar se há sol ou chove. Mas perde o tempo raro de proximidade em rotinas de emprego tão separadas.

Dormir junto é acordar junto. O ontem é hoje e é amanhã, os dias também são casados. E os sonhos nunca serão solteiros.

Crônica publicada em 12/7/2018

SÍNDROME DE BARBOSA

Bélgica saiu da Copa, e é uma seleção histórica, da altura dos grandes times estelares como a Laranja Mecânica (1974 e 1978), dotada de habilidosos incríveis como Hazard e De Bruyne, mas o país belga não chorou a eliminação. Não houve consternação nacional em Bruxelas. Não se viu cenas de agonia e de fim de mundo. Os torcedores entenderam a naturalidade da derrota, assim como compreendem a dinâmica da vitória.

O esporte é planejamento, parte de um processo evolutivo, é simplesmente levantar as falhas e pontos positivos e se preparar melhor para a próxima competição. O que são 4 anos para quem projetou as próximas duas décadas?

O Brasil, talvez por ser um país recente, é imaturo. Extremista, vive entre o tudo ou nada. A derrota é um fracasso total, a vitória é uma redenção. Como se fôssemos marionetes ora na mão de Deus, ora nos dedos do Diabo. É um fatalismo que inibe a construção gradual de triunfos. Emocionalmente, somos do terremoto, para o bem e para o mal. Da amnésia coletiva. Devastamos qualquer fórmula com a obtenção da taça ou com a perda dela. Não há sequência.

Nas desclassificações, procuramos culpados porque parece que jogamos sozinhos, que perdemos sozinhos, que nunca enfrentamos uma equipe superior. Não admitimos sermos superados, não toleramos a desvantagem, não elaboramos os nossos defeitos já que personalizamos os fiascos. Excluímos jogadores, amaldiçoamos jogadores, realizamos bullying a jogadores, destruímos a carreira de jogadores, devido a um único dia menos inspirado na Copa. A cobrança é irreal, injusta e devastadora. Não aprendemos com o exemplo do goleiro Barbosa, do Maracanaço de 50. Por toda a vida, ele seguiu o destino de proscrito, de pé-frio, isso que não tomou um frango de Ghiggia, era apenas uma bola defensável.

A caligrafia torta deve ser endireitada. Para o nosso equilibro cultural. Para a nossa saúde mental. A passionalidade forma uma grande torcida, mas não nos prepara ao sucesso. Tite precisa continuar. É o melhor técnico em atividade no país e um dos melhores do mundo. Ele sabe se reinventar na progressão da carreira. Já tem uma base para o Catar. Só perdeu duas vezes desde que assumiu, em retrospecto de mais de 80 por cento de aproveitamento. Foram vinte vitórias e uma humildade de quem jamais se isenta da responsabilidade no vestiário e nos microfones. Ele é um exemplo de profissional para mim.

Crônica publicada em 11/7/2018

PEQUENOS BRAVOS

Enquanto se desenrolam as semifinais da Copa, o mundo testemunhou uma paralela Copa, a da sobrevivência, com a resistência de doze crianças de 11 a 16 anos e de um professor, isolados na caverna Tham Luang, no norte da Tailândia, desde o dia 23, a 4 km de distância da entrada.

O time de futebol de meninos, conhecido como Javalis Selvagens, foi resgatado nesta terça-feira (10), o terceiro dia da arriscada operação. Cada menino recebeu a condução de dois mergulhadores e usou máscara facial de oxigênio por frestas e subterrâneos de difícil acesso. Uma corda guia foi posta pela rota para garantir o retorno.

Eles ficaram isolados e sem comida por nove dias, devido às chuvas. Foram localizados no dia 2 de julho, debilitados e desnutridos, e criou-se uma manobra perigosa de aproximação pelas autoridades, inclusive com a morte heroica do voluntário tailandês Saman Kunan, militar do grupo de elite da marinha e atleta de alto rendimento.

Milagre não é fazer o paralítico andar, o cego enxergar, o surdo ouvir, é realizar o possível, até a exaustão do possível, é devolver o homem ao homem. Acreditar mesmo quando as evidências provam o contrário.

O impossível dividido é sempre possível. A força-tarefa envolvendo especialistas de vários países demonstrou que a alma pode passar por qualquer lugar. Não há nada que a impeça de atingir os seus objetivos.

Aquelas crianças, ilhadas pela chuva, sem comunicação por semanas, sem comida, mantiveram-se convictas da salvação pelo poder das palavras. No escuro, as palavras são luz. Na fome, as palavras são alimento. Pelas palavras, espiavam para fora da montanha. Pelas palavras, reconheciam a saída. Enquanto conversavam, estavam vivas. Enquanto conversavam, era um time de futebol se ajudando em campo. Enquanto conversavam, não definhavam, ocupavam as horas, moravam no tempo de suas esperanças.

E o mais tocante é que as crianças foram salvas de quatro em quatro, e todas faziam questão que o seu amigo fosse o primeiro a subir à superfície, interessadas em proteger o outro para depois pensar em sua vida.

Tão crianças, tão generosas, tão unidas. Nenhum adulto seria capaz, como elas, de vencer o egoísmo na mais completa carência. A infância é o nossa maior aula de fé.

A humanidade encontra-se de novo fora da caverna.

Crônica publicada em 10/7/2018

POR QUE O BRASIL NÃO GANHOU A COPA? - ou a falsa hegemonia do futebol sul-americano -

A seleção brasileira chegou como favorita na Copa devido ao seu primeiro lugar nas Eliminatórias, a vaga garantida com antecedência e invencibilidade de Tite.

Houve um tremendo equívoco nesta leitura: somos o melhor selecionado da América Latina, mas não estamos à altura das seleções europeias, que monopolizaram a disputa das semifinais. Essa tem sido a escrita. Como não competimos com os europeus, salvo amistosos, não partilhamos do mesmo patamar de excelência.

A queda do futebol brasileiro na Copa é resultado direto da fraqueza do futebol em toda a América Latina (agravado pela falta de estabilidade política e economias em constante crise).

Para subir novamente e ter chance nas finais, dependemos do crescimento da desenvoltura de nossos rivais vizinhos, como Argentina, Peru, Uruguai, Chile e Colômbia. Porque só jogamos com eles em competições nos quatro anos até a Copa. É uma ilusão vencer qualquer disputa na América, hoje não significa habilitação para conquistar o mundo. Corresponde a um padrão e uma exigência menores do que uma Eurocopa, por exemplo. O destino é ficar entre as oito melhores seleções, é o único direito garantido como demonstrado nos últimos 16 anos.

O que nos aflige é a ideia fora do lugar, expressão de Roberto Schwarz sobre a obra de Machado de Assis: temos um estilo de jogar, caracterizado pela liberdade, finta e alegria, ameaçado e corrompido porque nossos craques unicamente servem a eficiência das máquinas coletivas de marcação e de resultados dos grandes times da Europa. Da seleção, restava um titular atuando no Brasil. Vivemos fora do contexto. Com a cabeça aqui e os pés acolá.

Nossa seleção não é formada em nossos trópicos, mas dos invernos da Espanha, da Itália, da Alemanha e da Inglaterra, com o calendário diferenciado de início e fim de campeonato. É feita, portanto, de retalhos, de transplantes, de emendas e de talentos isolados, sem a convivência disciplinar conjunta e constante. Uma peça fora das engrenagens e o desastre é certo. Dificilmente conseguimos remediar um desempenho abaixo do esperado de um único jogador, como Fernandinho diante da Bélgica. Somos pegos desprevenidos pela derrota. Nunca nos preparamos para perder e trocar de armas.

Os convocados se encontram fora do fuso na preparação e também apartados do contato da torcida brasileira e do feedback direto dos estádios.

Somos dependentes do eurocentrismo. Não temos mais a nobre matéria-prima em nossos campeonatos nacionais. Nossos astros pensam e se articulam como europeus. E são mais facilmente anulados, pois são absolutamente conhecidos pelas suas estratégias. Eles estão comprometidos a um esquema tático de sobrevivência espartana, que não tem nada a ver com as nossas qualidades. Futebol-arte apenas existe no passado, como retropia.

Assim, levamos para Copa um plantel que não joga no país. Nossos dribladores são exportados antes dos vinte anos, como Vinicius Júnior (Flamengo) e Rodrygo (Santos), o que enfraquece a nossa perfomance e exige uma difícil e talvez impossível aclimatação depois, em tão pouco tempo de preparação.

Por isso os times vencedores da Libertadores não conseguem enfrentar de igual para igual o campeão da Champions League. Há um fosso intransponível de técnica. Clubes europeus são seleções, clubes brasileiros são apenas times.

Se o nosso Brasileirão vem sendo desfalcado, os campeonatos argentino, chileno, peruano, uruguaio e colombiano também. Todas as seleções sul-americanas servem apenas como celeiro e fábrica para as potências europeias. A maior parte dos jogadores exerce a profissão longe de sua terra natal.

Os dirigentes não têm condições de manter os seus talentos, nem de variar a dinâmica viciada de seus atletas.

Messi unicamente sabe jogar com o Barcelona. Na Argentina, não tem entrosamento, nem intervalo suficiente para se adaptar. É o melhor do mundo somente num clube europeu. Ele foi domesticado para os objetivos estrangeiros. Como saiu cedo da Argentina, não solidificou os seus laços pátrios como um Maradona (que partiu aos 22 anos, depois de fazer história no Argentino Juniors e Boca Juniors).

A magia da glória do hexacampeonato será um efeito do hábito e do planejamento. Precisamos de mais identidade e de menos passaporte.

Crônica publicada em 09/7/2018

O MELHOR DO MUNDO

Nem Cristiano Ronaldo, nem Messi, nem Neymar, nem Mbappé. O melhor do mundo neste ano deveria ser um croata: Luka Modrić.

Se levar em consideração o seu desempenho na Copa do Mundo, já é ele. Se levar em conta a sua atuação no Real Madrid, com o título da Liga dos Campeões, também é ele.

Carrega e, ao mesmo tempo, toca o piano na seleção da Croácia. Conduziu o seu país a sua melhor colocação da história, enfrentará a Inglaterra na semifinal e não duvido que não traga o Mundial da Rússia para Zagreb.

A diferença de Modrić é que ele não se comporta como um garoto-propaganda. É o equivalente a um Messi com liderança, a um Cristiano Ronaldo sem vaidade, a um Neymar sem manha.

Veterano, com 33 anos, não age como uma estrela, não olha para o telão para ajeitar o cabelo, não reclama exageradamente da arbitragem. Interessa-se apenas em atuar com garra e determinação, dentro do espírito de equipe.

Ao final do jogo, são perceptíveis o seu cansaço, a sua camiseta banhada de suor, o rosto sugado pela vitória.

É um 10 que arma e desarma, que produz o ataque e ajuda na marcação. É um 10 duas vezes 5, duas vezes volante.

Não para um minuto de trabalhar para a orquestra de Ivan Rakitić, Mario Mandžukić e Ivan Perišić.

Mobilizador nato, é um operário do futebol, um insaciável leva-e-traz, um capitão que mostra autoridade técnica (nunca dando chutão para a frente) e moral (nunca desistindo de um lance).

Não espera para receber a bola, movimenta-se na defesa e no ataque, organiza as jogadas e finaliza com perigo (tem dois gols na Copa).

Nem parece ser baixo com 1,74m (quase a mesma estatura de Zico), mas, com a bola no pé, assume a altura do pico da maior montanha croata, Vaganski, com os seus 1757 metros de altitude.

Usando elástico nos cabelos, lembra um tenista. Mas talvez a gominha na cabeça seja uma preparação para receber a coroa de melhor do mundo.

Premiar Modrić é valorizar a discrição batalhadora no futebol, é destacar o crescimento do Leste Europeu, é apoiar o anti-marketing de quem viveu à sombra, é perceber o valor do garçom e das assistências, é festejar os dribles verticais e necessários, é dar um fim e um basta ao concurso de beleza em campo.

Crônica publicada em 08/7/2018

ADEUS ILUSÃO

Não é um jogo perdido, são quatro anos.

Quatro anos para montar um time, esperar, desacreditar, acreditar de novo.

Quatro anos mordendo a bandeira, escondendo-se das piadas, redundando a fé, secando as lágrimas, rindo torto.

Quatro anos da vida de cada brasileiro, quatro anos de gaveta para a camiseta amarela. Nenhuma outra estrela será bordada sob o escudo.

Quatro anos de campeonatos nacionais, competições internacionais, para definir quem pode surgir e fazer diferença.

Quatro anos rezando para que Neymar não envelheça, que Gabriel Jesus amadureça, que Philippe Coutinho, mantenha a sua timidez selvagem, que Willian exploda de verdade, que Douglas Costa e Firmino segurem o seu fôlego.

Quatro anos sem mais nenhuma chance de Paulinho beijar a taça, de Thiago Silva levantar a Copa do Mundo, uma geração se despede na derrota contra a Bélgica.

Quatro anos para um país onde o futebol é tudo, que não deveria ser assim, mas ultimamente não tem mais nada para se orgulhar. Agora é voltar para as balas perdidas, voltar para as greves, voltar para a recessão, voltar para a impunidade, voltar para a crise, voltar para a incógnita das eleições. As ilusões são mais breves do que os sonhos.

Não são quatro anos, minto, já são dezesseis anos. A idade de meu filho.

Crônica lida no programa Encontro com Fátima Bernardes da Rede Globo em 06/7/2018

O FRANGO

Não poderia ter frango em Copa. Deveria ser proibido pelo regulamento. Frango é várzea, Liga Amadora, pelada, campo de terra batida com calombo e morrinho artilheiro.

O que aconteceu com o bom goleiro uruguaio, que determinou a desclassificação da Celeste para a França, foi de uma melancolia romântica, digna da pena de Victor Hugo (e seu fatídico prazer de estar triste).

O chute de Griezmann, de fora da área, no meio do gol, era um suspiro. Uma tentativa fracassada. Um tiro morno e bisonho. Fato insignificante para a emissora trocar de câmera e ir para o lance seguinte.

Tudo bem que Muslera espalmasse, jogasse vôlei, deixasse rebote. Mas a bola se transformou num pião em suas luvas, num redemoinho e seguiu, devagar, para as redes. Até a bola ficou constrangida na hora de entrar.

O arqueiro entrou em parafuso entre rebater e segurar, o braço direito não concordou com o esquerdo e houve um malabarismo atrapalhado de semáforo.

Antoine Griezmann deu exemplo. Não comemorou o gol, seu olhar só pedia desculpa. Baixou a cabeça e seguiu em frente, apesar do estardalhaço de seus compatriotas, como se nada não tivesse acontecido. Quis abafar o escândalo.

Frango merecia ser anulado. É tão vergonhoso para todos os jogadores que desqualifica a vitória.

Crônica publicada em 06/7/2018

QUEM SÃO OS MEUS PAIS?

Os pais podem mudar de opinião. Aliás, eles mudam de opinião. Suas palavras não são eternas. Os filhos não aceitam as transformações dos pais porque percebem qualquer juízo de ambos como um mandamento inviolável.

Eles teriam que manter a mesma posição por toda a trajetória?

É impossível. Nem tudo que vem da boca deles é conselho, nem tudo é tábua de salvação.

Se um dia falaram que não gostam de tal coisa, parece que a ideia será para sempre. Não é, não há como ser.

Eles apresentam restrições, cometem preconceitos, mas melhoram. Abrem a cabeça, abrem o coração. São humanos, como os próprios filhos, em constante transformação. Erram, vacilam, enganam-se, são enganados, levam fora, tropeçam em vexame e se reerguem. Alguns são arrogantes, depois se mostram humildes e compreensivos. Alguns são carinhosos, depois se isolam na mais completa indiferença.

Não são fechados, embalados para presente.

Aqueles mesmos pais que não queriam que você tivesse animais na sua infância são capazes de adotar cachorros na velhice. E ainda chamam os cachorros de filhinhos (ou seja, ganhou irmãos). Os cachorros dormem na cama deles, algo inacreditável diante da antiga fobia.

Coerência é mudar, não ficar parado sem ser modificado pelo tempo.

Conhecemos os pais pelas funções. O Pai. A Mãe. Como entidades. Nunca chamamos pelos nomes, e sim pelas funções: meu pai, minha mãe. O que devemos perguntar, antes que seja tarde, quem são eles? Você pode passar a vida sem conhecer realmente os seus pais. Pois há pessoas dentro do Pai e da Mãe. Pessoas ansiosas, pessoas esperançosas, pessoas sofrendo com a realidade, pessoas com os seus sonhos não realizados e o igual medo de não ser amado.

Os pais aprendem a vida dos filhos de cor e salteado, mas os filhos não param para perguntar o passado deles. Como foi a infância e adolescência dos dois, de que são feitas as suas escolhas, por que eles pensam desse jeito?

Amar depende da permanente curiosidade. Nunca pensar que conhece realmente alguém, para assim nunca parar de se conhecer.

Qual será a sua surpresa ao descobrir que você é mais parecido com os seus pais do que imagina?

E, de repente, descobrindo que os pais mudam, pode estranhamente mudar de opinião sobre eles.

Crônica publicada em 05/7/2018

PICKFORD

Já temos a maior defesa da Copa do Mundo: quando o goleiro inglês Jordan Lee Pickford buscou a bola no ângulo, em chute surpreendente e salteado do colombiano Uribe, da intermediária. Não era previsível o arremate. Uribe mandou um canhão, em reencarnação atômica de Nelinho, de Dirceu Lopes, de Rivelino.

O goleiro do Everton não somente se esticou, ele se desesperou no ar, ele se desintegrou ao vento, ele se arrebentou inumanamente, numa impulsão aquilina. Dos seus 1,85, cobriu os 2,44 da trave e espalmou com a mão canhota para escanteio. Foi uma coreografia encantadora de explosão e elasticidade.

Não sei o que acontece, de modo alquímico, com os goleiros da Inglaterra na Copa do Mundo. O título de defesa do século está, até então, de posse do também inglês Gordon Banks, que apanhou a cabeçada impossível de beija-flor de Pelé em 1970, no México.

Crônica publicada em 03/7/2018

O MEDO DO TÉCNICO DIANTE DO PÊNALTI

Decisão de pênaltis é loteria. O melhor time pode perder, o pior pode ganhar. Apaga-se o histórico dos 120 minutos. É como se fosse um outro dia. Não há mal e bem, certo e errado, é um novo jogo, uma partida essencialmente mental, em que a precisão acaba sendo destruída pela emoção.

Marcou-me no confronto de penalidades entre Inglaterra e Colômbia a postura do técnico argentino José Néstor Pékerman. O maduro homem de 68 anos, de fartos cabelos grisalhos, responsável pela seleção colombiana, figura tarimbada do futebol latino-americano, transformou-se de repente num menino assustado. Da sapiência exemplar dos esquemas táticos, regrediu aos seus medos mais primitivos. Simplesmente fechou os olhos para não ver as cobranças.

Não se conteve diante das câmeras: com a cabeça baixa, vendou a si mesmo. Rezava dentro do escuro de seus pensamentos.

Não seria capaz de suportar o suspense de uma desclassificação por milímetros. Não seria capaz de testemunhar a esperança indo e voltando tresloucadamente. Não seria capaz de aguentar o rodízio sádico entre vitória e derrota, desespero e alívio.

Avaliava cada avanço ou recuo pela comemoração externa. Mesmo com o corpo preso ao campo, abstraía-se, negava a sua presença, ouvia somente o rádio da torcida.

Por mais que já tivesse experimentado várias finais iguais e trepidantes, era uma criança espiando, pelas frestas do dedos, o filme de terror de sua vida.

Crônica publicada em 03/7/2018

A PUREZA DOS JAPONESES

Não há espaço no mundo para a ingenuidade.

Os ingênuos sempre são excluídos.

Eu sofri com a saída do Japão da Copa. Porque os seus jogadores foram inocentes, como nunca se viu num mata-mata.

Não usaram da malandragem e da cena para conquistar a vaga. O time não fingiu lesão, não recorreu à cera, o goleiro não demorou na reposição, o técnico não empregou substituições para assegurar alguns minutos de paralisação.

Venciam de 2 a 0 e os atletas continuaram atacando a Bélgica. Venciam de 2 a 1 e continuaram atacando. Cederam o empate em cinco minutos e continuaram atacando. O jogo estava ganho na metade do segundo tempo, e não recuaram, não mudaram o esquema tático, não criaram um bloqueio, não protagonizaram o anti-futebol pelo resultado.

Samurais da teimosia, não abriam mão do espetáculo ofensivo, da katana do drible e da técnica, alheios à competitividade. Atuavam pelo prazer da emoção e, acima de tudo, pelo gosto de viver os seus princípios de retidão e caráter.

Prevalecia o heroísmo da bondade do Ultraman, do Pokémon, do National Kid.

No fim dos acréscimos, quando já estourava o cronômetro para a prorrogação, tinham um escanteio a seu favor. Bastava prender a bola em triangulação no canto do campo e provocar faltas. Qualquer seleção faria isso, menos o Japão, o incorruptível Japão, o suicida Japão, o encantador e puro Japão, que continuou atacando, preferiu tentar o gol mais uma vez, permitindo o contra-ataque letal da Bélgica.

Estavam mais dispostos a jogar do que a vencer. Assistimos a uma demonstração única e rara do futebol de antigamente. Foi uma viagem ao túnel do tempo dos anos 50.

A derrota prolongou o encanto: futebol não é feito de justiça.

Crônica publicada em 03/7/2018

CASAR É PARA GENTE GRANDE

Casar é coisa séria, para gente grande.

Você transformará os seus hábitos. Não poderá mais se mostrar disponível, assanhado e aberto a risos e flertes. Isso não significa que será mal-humorado e assumirá uma carranca dali por diante. Não haverá alteração em termos de ternura e acolhimento para os amigos.

A postura muda com quem não conhece. Terá que ser direto sobre o seu estado civil, jamais evasivo, para não transmitir a imagem falsa de disponível e interessado.

Frustrará diálogos engraçadinhos, cortará insinuações e indiretas, colocará os pingos nos is, freará as segundas intenções, não avançará em perguntas só para ver até onde vai.

Precisará ser econômico com as dificuldades da relação - brigas pontuais não devem ser confidenciadas a terceiros sob o risco de entender que é infeliz e que o matrimônio está por um fio. Uma confissão pode levar a fofoca e logo expor a sua mulher às maldades e constrangimento público.

Resolverá as diferenças dentro do seu casamento, nunca fora. A cada ameaça do passado ou contato com ex, cabe descrever o que aconteceu na hora, não depois, não aos poucos, com mentiras parciais. Seja simples: a fulana me ligou, a fulana me mandou mensagem.

Não poderá se escandalizar com qualquer acesso da esposa as suas redes como se fosse invasão de privacidade. O celular ou o laptop não são cofres de intimidade, mas aparelhos, somente aparelhos, de uso comum.

Na web e aplicativos, não poderá manter um comportamento diferente das suas abordagens reais. Você e seu avatar continuam sendo o mesmo sujeito com aliança no dedo. Permanece casado na esfera virtual, o que requer controle na emissão de likes e comentários. Não saia atirando emojis para todos os lados. Crie um padrão, reserve um código de linguagem exclusivo a quem ama e outro para os demais, assim evitará o ciúme. Por exemplo, destine olhos de coração apenas para a sua esposa.

Grosseria é pressa. Dispense tempo sendo educado no dia-a-dia. Não é porque a pessoa mora com você que lhe dá o direito de atalhar conversas. Encontre paciência para se explicar, narrar os seus pensamentos, já que a sua companhia não tem ideia do que passa em sua cabeça.

Pensará as refeições a dois, as férias a dois, as folgas a dois, as contas a dois, as adversidades a dois, sem a possibilidade de resolver tudo sozinho, pois interfere na condição alheia.

Não entenda a reserva e a discrição como privação e censura. Casamento não é prisão. Você assumiu um compromisso consciente e toda a escolha traz alguma renúncia - não há como acumular modos de vida.

Amar alguém não é perder a liberdade, mas partilhar responsabilidades. Bem-vindo ao mundo adulto do amor.

Crônica publicada em 01/7/2018