COMECEMOS POR EXPLICAR o que é um comportamento anti-social: trata-se de "toda e qualquer actividade agressiva, intimidatória ou destrutiva que provoca danos à qualidade de vida de outras pessoas" (definição do Home Office britânico).
Ao contrário de algum senso comum, não são apenas os marginais que são propensos a este tipo de comportamento. Infelizmente, também detentores de cargos públicos podem, ocasionalmente, mas com mais frequência do que se desejaria, nele incorrer. Podemos dizer que Adolf Hitler tinha um comportamento anti-social, embora tenha sido democraticamente eleito. É um exemplo extremo, mas útil: pois a partir dele, podemos "descer" às mais diversas variantes, desde a pequena corrupção ao abuso de poder, etc.
A figura do comportamento anti-social em Portugal não é criminalizada, ao contrário do que acontece, por exemplo, no Reino Unido. Mas a sua censura está implícita na lei, nomeadamente na penalização de certo tipo de infracções graves.
A história do reconhecimento da grave crise rodoviária em Portugal é recente, bem como o seu combate. Por isso, é sabido que comportamentos que hoje todos sabemos serem anti-sociais foram durante demasiado tempo tolerados. É sinal desta saudável mudança de paradigma a pena inédita (de três anos de prisão efectiva) aplicada à condutora que, conduzindo a mais de 120 Km/h no perímetro urbano, causou um trágico triplo atropelamento no Terreiro do Paço.
Ou seja, os juízes começam a revelar consciência de que certas infracções graves são, na verdade, comportamentos anti-sociais - e como tal, a tolerância tem de ser menor do que, por razões de atrasos vários, foi durante décadas.
Ora a quase-trágica colisão entre duas viaturas oficiais na Avenida da Liberdade, em 27 de Novembro último, foi evidentemente causado por um comportamento anti-social. Pois é tão ou mais gravoso circular às seis da tarde na Avenida da Liberdade a mais de 130 Km/h que a mais de 120 às cinco da manhã na Infante D. Henrique.
Não somos ingénuos. Sabemos que a infracção grave do veículo que transportou o dr. António Costa ao estádio do Algarve no passado dia 25 de Março não é coisa rara entre detentores de cargos públicos. E que até há alguma tolerância, resquício de um tempo, digamos, menos esclarecido. Mas tal como a condutora que foi condenada a prisão efectiva serviu de exemplo para casos futuros (podendo até queixar-se, com alguma "razão", de ter sido injustiçada, dado que anteriormente os homicídios na estrada não eram punidos), temos de começar por algum lado.
Infelizmente, a comunicação social, que tão útil tem sido ao longo destes anos na denúncia de comportamentos anti-sociais de quem nos governa, não conseguiu esclarecer devidamente as circunstâncias em que a viatura do dr. António Costa foi detectada a 160 Km/h perto de Grândola.
Foi autuado? Não foi autuado? A multa foi paga? Não foi paga? Se sim, por quem? Se não, porquê?
A ACA-M, pugnando pela defesa dos interesses difusos colectivos, acaba de enviar requerimentos para esclarecimento deste assunto ao Provedor de Justiça, à presidência da CML, ao Comandante Geral da GNR, à Inspecção da GNR, ao Comando Territorial de Setúbal da GNR, e aos Comandantes dos Destacamentos de Trânsito de Setúbal e Grândola.
ABAIXO: O REQUERIMENTO
Exmo. Senhor Dr. António Costa, Presidente da Câmara Municipal de Lisboa
Exmo. Senhor,
Considerando:
Que o Art. 64º do Código da Estrada restringe o conceito de marcha urgente assinalada aos “condutores de veículos que transitem em missão de polícia, de prestação de socorro ou de serviço urgente de interesse público assinalando adequadamente a sua marcha”;
Que constitui um abuso do disposto no Art. 64º do CE o entendimento que dele fazem em frequentes ocasiões os detentores de cargos públicos e assim também os motoristas de veículos de fiscalização policial e de emergência médica, como bem o refere o parecer do Dr. Luís Escudeiro, formador com larga experiência técnica e teórica na área da condução em marcha de urgência (Parecer anexo).
Que os cidadãos eleitos para cargos públicos se encontram abrangidos por um dever especial de lealdade e de responsabilidade perante os outros cidadãos do país;
Que a velocidade excessiva é um, senão o, principal factor de insegurança nas vias rodoviárias portuguesas, e evidente um potenciador da gravidade dos traumas decorrentes de sinistros automóveis;
Que a circulação em auto-estrada à velocidade de 160 km/h constitui uma infracção grave de acordo com a Alínea b) do nº 1 do Art. 145º do CE, que constitui circunstância agravante o incumprimento do nº 3 do Art. 139º do mesmo CE, e que a responsabilidade do comitente nas infracções rodoviárias é definida pela alínea a) do nº 7 do Art. 135º do CE e pela legislação complementar;
A importância do bom exemplo no cumprimento das regras de sociabilidade e legalidade que acarreta o exercício de funções públicas;
O carácter socialmente contagiante dos comportamentos rodoviários de risco;
O facto de V. Exa. ter sido, de Abril de 2005 a Julho de 2007, Ministro da Administração Interna, conhecendo por isso em detalhe os problemas de saúde pública decorrentes da elevada sinistralidade rodoviária;
A notícia publicada na edição de 25 de Março último do jornal Correio da Manhã, onde se informava que V. Exa. “foi alvo de uma operação de fiscalização rodoviária, realizada no domingo dia 21 de Março, pelo Destacamento de Trânsito da GNR de Grândola. Pelas 15h00, ao quilómetro 50,9 da auto-estrada do Sul (A2), o radar fotográfico disparou, assinalando uma velocidade de pelo menos 160 Km/h. O Mercedes de serviço [de V. Exa.], onde seguiam mais duas pessoas, foi mandado encostar na área de serviço de Grândola. O condutor terá dito que viajava em missão de serviço. António Costa era um dos convidados de honra da final da Taça da Liga, entre Benfica e FC Porto. Contactado pelo CM, a assessoria de [V. Exa.] referiu que o condutor 'foi autuado e mandado seguir'.
A informação constante no Fórum da Brigada de Trânsito (http://www.brigadatransito.com/), dando conta que, diferentemente do que afirma a referida edição do Correio da Manhã, o veículo em que V. Exa. circulava ostentava, no momento em que foi fiscalizado pela patrulha da GNR, um dístico com a palavra “Polícia” na pala de protecção solar do vidro dianteiro; e que V. Exa. terá abordado o Comandante do destacamento de trânsito de Setúbal, que se encontrava no local da operação de fiscalização da GNR e, informando estar em missão de serviço, alegou a protecção do Art. 64º do CE, não tendo sido assim autuado, o que contradiz claramente a informação prestada pelo gabinete de assessoria da presidência da Câmara Municipal de Lisboa ao jornalista do Correio da Manhã. Mais informa o referido Fórum que nesta operação foram autuados cerca de noventa condutores, alguns dos quais teriam possivelmente o mesmo objectivo da missão de V. Exa. – o de assistir a um jogo de futebol;
A necessidade urgente de esclarecer publicamente a notável discrepância entre as informações publicadas na supramencionada edição do Correio da Manhã, e nomeadamente as declarações, não contraditas, do gabinete de assessoria da presidência da CML, e aquelas disponibilizadas no Fórum da Brigada de Trânsito;
O facto de o início do referido jogo só ter início previsto para as 19.15, ou seja 4.15 horas depois da infracção, às 15.00, pelo que, mesmo aceitando para efeitos de argumento, que a deslocação de V. Exa. era de interesse público, não é vislumbrável qualquer fundamento legal para ponderar ter ela sido uma “missão de serviço urgente”, já que do quilómetro 50,9 da A2 até ao Estádio do Algarve distam 217 quilómetros, bastando por isso uma velocidade média necessária de 54/h para lá ter chegado antes do início do jogo desde o quilómetro referido, e assumindo que o trajecto em viatura automóvel desde o seu local de trabalho até ao Estádio Algarve é de 268 quilómetros, conforme a rota seguinte:
1. Partindo do edifício dos Paços do Concelho, na Praça do Município, em Lisboa;
2. Virando, após 132 m, à direita na R. do Arsenal durante 240 m e continuando pela Rua Bernardino Costa durante 120 m;
3. Na Praça do Duque da Terceira, tomando, após 78 m, a 3ª saída para o Cais do Sodré e virando à direita na Av. 24 de Julho, após 120 m;
4. Percorrendo a Av. 24 de Julho durante 1700 m;
5. Virando à direita na Rua João de Oliveira Miguéns que se torna, após 270 m, a Av. de Ceuta;
6. Após percorrer 168 m da Av. de Ceuta, virando à esquerda para chegar ao IP7, percorrendo essa durante 5,6 km;
7. Mantendo o percurso até à A2 e aí seguindo a via durante 234 km;
8. Tomando a saída para a A22/E01 em direcção a Faro, durante 22,1 km;
9. Tomando a saída 13 em direcção a Faro e seguindo durante 550 m;
10. Tomando o IC4 e percorrendo-o durante 1650 m;
11. Na rotunda, tomando a 3ª saída para a via do Parque das Cidades e percorrendo essa via durante 560 m;
12. Na rotunda seguinte, tomando a 2ª saída onde, após 48 m, se atinge o Estádio do Algarve.
A admissibilidade do facto de V. Exa. se ter deslocado em missão de serviço oficial para assistir, como convidado de honra, ao final da Taça da Liga Portuguesa de Futebol;
A não admissibilidade do facto de a presença de V. Exa. na assistência de um jogo de futebol constituir objectivo válido de uma missão de polícia, de prestação de socorro ou de serviço urgente de interesse público.
A legitimidade da Associação de Cidadãos Auto-Mobilizados (ACA-M) na prossecução da defesa dos interesses difusos e colectivos;
Vimos requerer:
Que V. Exa. esclareça se o veículo em que se deslocava no momento em que foi parado pela operação de fiscalização da GNR ao quilómetro 50,9 da auto-estrada do Sul (A2), pelas 15h00 do dia 25 de Março último, ia ou não em missão oficial, e que confirme se circulava ou não a pelo menos 160 km/h;
Que V. Exa. esclareça se o veículo em que se deslocava ostentava ou não um dístico com a palavra “Polícia” na pala de protecção solar do vidro dianteiro;
Que V. Exa. esclareça se foi, como declarado pelo gabinete de assessoria da presidência da CML, paga ou não a coima prevista ou se alegou encontrar-se em missão oficial e sob o regime de excepção previsto no nº 1 do Art. 64º do CE, e se, em tal caso, o veículo em que circulava cumpria os requisitos do disposto nos nºs 3 e 4 do mesmo Art..
Que envie para a sede desta Associação cópia autenticada do eventual comprovativo da coima aplicada pela infracção grave detectada ao quilómetro 50,9 da auto-estrada do Sul (A2) pelo radar da operação de fiscalização do Destacamento de Trânsito da GNR de Grândola, pelas 15.00 do dia 25 de Março último.
Que nos informe se foi V. Exa. o comitente da prática de excesso de velocidade do motorista do veículo em que circulava, ou se este agiu por iniciativa própria e contra a vontade de V. Exa.;
Que, não tendo havido lugar à aplicação da coima, V. Exa. se digne esclarecer quais os fundamentos que levaram V. Exa. a colocar (ou mandar colocar) um dístico com a palavra “Polícia” na pala de protecção solar do vidro dianteiro do veículo, e a reclamar perante o Comandante do Destacamento de Grândola a anulação da coima ao abrigo do nº 1 do Art. 64º do C.E.
Que nos informe quem pagou a coima anunciada pelo gabinete de assessoria da presidência da CML, caso esta tenha sido aplicada: se V. Exa., se o motorista do veículo oficial, ou se os munícipes da cidade de Lisboa;
Que, caso o motorista tenha, por iniciativa própria, colocado um dístico com a palavra “Polícia” na pala do vidro dianteiro do veículo em que V. Exa. circulava e excedido a velocidade em pelo menos 40km/h em relação ao limite legal aplicável naquela via específica, lhe seja instalado um processo disciplinar, de acordo com a legislação correspondente;
Que, caso a informação prestada pelo gabinete de assessoria da presidência da CML se verifique incorrecta, se digne V. Exa. instaurar um inquérito disciplinar na Autarquia de Lisboa de modo a determinar a responsabilidade pela prestação de declarações falsas à comunicação social e, consequentemente, ao público em geral;
Que V. Exa. emita um esclarecimento público detalhado e fundamentado sobre a matéria substantiva a que se refere o presente requerimento.
Pede Deferimento,
Direccção da Associação de Cidadãos Auto-Mobilizados
Lisboa, 18 de Abril de 2010