Toca o telefone, os sinos da igreja, a campainha da porta, os acordes de uma guitarra e o velho despertador. Toca e sabes que é um sinal de que é hora de começar de novo. Mas ainda não te sentes preparada, enfias a cabeça debaixo da almofada e tentas calar aquele barulho que no dia de hoje te parece infernal. Ouviste as sirenes a zumbir dentro de ti, mas preferiste ignorá-las porque parece que aparecem sempre na altura errada. Para ti desejas o mundo, mas num silêncio absoluto, total, e aí decides levantar-te e segues em frente, de madrugada, ignorando todos os sinais de alarme. Segues pela rua principal. Deixaste-te simplesmente ir, como se entre ti e a vida fosse tudo tão fácil como um jogo em que uma ganha e a outra perde. Aí ouviu-se um estrondo, mas a tua preocupação estava enevoada ou nem sequer estás suficientemente sã para que algo fizesse sentido. Apercebeste-te nessa altura que já só eras metade do que tinhas sido. E tu, tão senhora de ti, começaste a vaguear, perdida, magoada, cada vez mais desnorteada. Só querias recuperar qualquer coisa que já tinha ficado para trás. O silêncio já era incómodo e os pedaços de ti que faltavam começaram a fazer-te sentir incompleta. E as vozes não se calavam "é tarde", "é tarde". Sim, era tarde para teimar em seres uma réplica do que tinhas sido, uma imagem de ti já ultrapassada ou uma pessoa que não queria ser encontrada.
Já não sabias o que sentias, não tinhas nome para o que sentias, mas teimavas em continuar a sentir, especialmente aqueles sentimentos que picavam como pontas de alfinetes. como facas de dois gumes. Como fogo a arder, como lume. Mas porque gostas assim tanto tu de sofrer?
Foi preciso um colete de forças, numa sala de um branco Alasca, num silêncio mais profundo do que aquele que qualquer um de nós conseguiria aguentar, para finalmente perceberes que do lado de lá da porta estava uma placa gasta, estilo anos 20, com um grafismo interessante - olha os detalhes a que te foste agarrar para não leres o que lá estava escrito.
Finalmente tinhas morrido. Ou tinha sucumbido aquela parte de ti que teimavas em não deixar partir.
Já percebeste tudo? Se sim, não chores. Faz antes o favor de sorrir.
Porque naquela sala branca, cheia de gavetas e etiquetas, reparas que há um quadro na parede, que não podia ser mais adequado - ou desadequado - depende da perspectiva.
Começar de novo, era o que lá dizia. E pela primeira vez sorriste. Pela ironia da coisa. Ainda há pouco estavas na tua cama a tapar os ouvidos a tudo e agora só querias ouvir um pouco de barulho e estás presa a um silêncio pegajoso, por trás de uma placa que diz que podes começar de novo. Sonho ou pesadelo?
Fazes bem em sorrir. Sorri. Sorri quando a vida deixa de fazer sentido. É o caminho mais difícil, mas acaba por ser o mais corajoso e real. Sorri. E pela primeira vez decides que nunca mais lhe vais perguntar se é mais feliz sem ti.
Mesmo sentido-te pela metade, sais aos tropeções daquela sala, onde a placa cá fora afasta os curiosos e decides, finalmente, que ainda não é tarde. Aos poucos vais esquecendo aquele sonho ou pesadelo ou realidade. Vais esquecendo amores que não deram certo ou promessas que ficaram pela metade. Esqueces campainhas, acidentes, sofrimentos e vais acordando, à medida que tiras a venda que te colocaram, que tu colocaste. E agora já entendes que o pior cego é aquele que não quer ver.
Já chocaste de frente, já te quebraste em pedacinhos, já caíste, já te levantaste, já choraste, já pediste ou quase suplicaste. Já quase te perdeste.
E agora renasceste. E encontraste. E soltaste. Largaste a parte que te estava a manter presa, que não te deixava evoluir. Sorrir.
Ficaste sozinha, mas de ti não vais fugir. Mesmo que ainda permaneça em ti toda a angústia de já não teres alguém ao teu lado para te ouvir, para te desejar, para te querer.. Nem a quem dizeres boa noite, bom dia ou boa tarde, sempre que te apetecer.
Disseste finalmente adeus à parte de ti que um dia foi tua e perdeste e paraste com as lamurias e foste à luta. E tudo porque finalmente tens contigo o que andavas à procura: A vontade. Lava-a contigo para onde quer que vás e também o quadro a dizer "começar de novo", ao qual escreveste por cima "Nunca é tarde".