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quarta-feira, 5 de julho de 2017

O meu filho ficou retido


Ficou retido? Na escola, na esquadra, no ano escolar? O Afonso vai repetir o 11º ano porque…quis.
Porque não tem capacidades? Havia alturas, confesso que para mim mesma, eu preferia que fosse isso. Não, na verdade o Afonso tem capacidades, mas um profundo desprezo pelas matérias escolares. É que eu nem posso dizer que é pela escola, porque gosta de estar ali, quer continuar e não me pediu uma única vez para mudar.
O que o Afonso quis,  ao crescer e  tornar-se um adolescente com mais consciência, foi tomar a sua decisão. Uma decisão tirada a ferros. Não é a mesma coisa do que ter-nos dito um dia:   eu quero e preciso de reprovar.
Não, o Afonso nunca foi um miúdo que chegasse a casa e nos tivesse algo para contar, mesmo que fosse bom para ele.

Falar com o Afonso é a coisa mais difícil do mundo. Desde sempre. No 3º ano era assim: “O que foi o almoço, meu amor? “Já não me lembro”; “No 11º ano “Então a Concha está a fazer o quê – tentando saber um pouco mais deles, quando estão com o pai. Resposta:” Se queres saber a verdade, nem reparei”.
E os meus filhos não são todos assim. Por exemplo, os mais novos engalfinham-se para dizerem primeiro o que foi o maravilhoso repasto que a empresa mandou para a cantina – e coitadinhos, nem um dia se queixaram.

Portanto, nunca tive o Afonso a entrar-me pela porta dentro a dizer :” temos de ter uma conversa” ou “eu tenho de reprovar.”

Ele sabia que por todas as razões e mais alguma, isso ia dar cabo de mim. Comecemos pela mais óbvia: os nossos últimos dois anos não têm sido propriamente perfeitos, nem pacíficos. Precisava tanto que a crise não nos atingisse a todos, mas uma crise familiar é mesmo assim. As mudanças acontecem e nem sempre são fáceis.

E depois, porque isso vem lá de trás, de muito atrás. Têm tempo? Puxem uma cadeira e leiam com atenção.

O Afonso  já com 1 ano fugia para a sala de 2 e todos achavam piada e era ali que devia estar, se ele queria. Nessa altura, tenho quase a certeza de que não ficava muito orgulhosa. Mas lembro-me de achar que ele parecia desenquadrado entre o que sabia e o que os outros meninos faziam.

O Afonso teve um problema. E ainda não é desse que vamos falar. O Afonso teve o problema de nascer em Janeiro e ainda que não sejamos génios, quem nasceu em Janeiro na minha família não teve um percurso normal. A minha irmã mais nova  entrou logo no  2º Ano e o Afonso fez  o primeiro ano, enquanto devia andar a correr e a saltar e a fazer teatros na pré.
Com uma agravante ainda maior. Andava no Jardim Escola João de Deus, onde se aprende regras, disciplina, a ler e a escrever – através da cartilha maternal – no último bibe da pré- escolar. O bibe azul.
Parece-me assim que  lhe roubámos um ano de brincadeira e de não fazer nada e de pensar nas estórias da carochinha, para fazer coisas sérias, como ler estórias – não só juntar palavras, mas ler estórias e fazer contas e começar a perceber o que era a abstração. Quando ele só queria era brincar. Foi diagnosticado com défict de atenção e hiperatividade. Claro….se não era ali o lugar onde devia estar. E todos nós deixámos correr.  E eu fui muito culpada.
Sinto para mim que lhe roubámos dois. O último ano da pré e o 1º ano, quando ele devia ter ficado na pré. Numa pré de brincadeiras e sem grandes obrigações.

Nessa altura ele já tinha tido o avc e já tinha sido avaliado e era claro: um menino de 5 que cognitivamente tinha capacidades de mais de 7. E a parte emocional? Essa décalage? Essa décalage vai diminuindo com os anos, dizia-se. Mas não diminuiu. E se eu soubesse o que sei hoje, tudo teria sido diferente!!!!!!!!!
Naquela altura estava ainda a fazer o  luto por aquilo que lhe tinha acontecido e por saber que ele teria de fazer não sei quantas coisas adaptadas. Ele não conseguia atar os atacadores ou abotoar a camisa e  demorava o triplo do tempo a fazer fosse o que fosse, mesmo a lavar os dentes ou a cortar o bife.

E eu, ao mesmo tempo que chorava pelo meu filho que tinha limtações físicas, sentia-me orgulhosa das suas capacidades  cognitivas. Ele conhecia as marcas de todos os carros, sabia os nomes das capitais dos países mais longínquos e decorava tudo aquilo a que achava piada. Continua a ser assim.
E a parte emocional? Que se lixe isso. Mentira, sejamos honestos! E eu preocupava-me. Quis tanto perceber que o levei ao prof. Eduardo Sá. Estava tudo bem com ele. Ele era feliz. E nós deixámo-lo seguir, porque “ele era feliz”.
E era…. mas todos os anos era eu que o ouvia: porque é que estou com esta turma? Quando eu faço anos, já alguns fizeram um ano a mais.  E um dia disse-me alto e bom som que não queria ser o mais novo da turma. Não gostava disso, não se sentia bem com isso, fazia-lo sentir-se diferente.
Estando na adolescência, sendo ainda por cima rapaz, imaginam o que isso significava? Ele estava desenquadrado ali.
Que eu saiba nunca foi vítima de bullying na escola. Mas de cada vez que um professor faltava, ele vinha para casa.

E eu não conseguia perceber – parece agora mais simples, não é? Mas não é.
Um dia entrei recentemente no seu no quarto de teen e ele tinha lá o boneco que lhe levámos ao hospital quando teve o avc, aos 3 anos, quase 4. O Afonso não fala a sério. Nunca ninguém chegou ao que se passa lá dentro. Meio na brincadeira, que é a forma que eu tenha de chegar a ele, mas com todo o respeito,  perguntei-lhe porque é que aquele boneco estava ali e num lugar tão visível, não lá atrás, escondido no roupeiro. “Porque foi muito importante para mim receber esse boneco e eu não me esqueço de nada”.

Juro que nessa noite adormeci e acordei a pensar: tive uma epifania. O Afonso vai reprovar porque quer, porque precisa de encontrar a sua tribo – e quando eu vejo as meninas que já foram da sala dele há muitos anos atrás, com mil fotos no instagram, quais modelos profissionais, percebo que aquela não é, definitivamente, a tribo dele.
Sei que  ele se relaciona  com os miúdos e miúdas do 8º , do 9º e alguns do décimo, porque, pela primeira vez, se sente respeitado como mais velho.

Obviamente que fica sempre confuso: foi tudo uma  negação de todos estes anos e agora veio, de repente, no meio da noite, a grande revelação. Aconteceu.

Ele reprovou, não foi sequer fazer os exames e eu zanguei-me muito pouco com ele, porque tenho fé que esta paragem o faça crescer nas emoções, nos contactos sociais, nas experiências com os miúdos certos.

Nunca se volta atrás, mas, se pudesse, eu voltaria, as vezes que fossem precisas. E uma coisa é certa, uma criança não deve andar à frente da sua idade cronológica, da sua idade mental, da sua idade emocional. Isto é muito, muito mais sério do que parece.

Este foi dos posts mais didíceis que já escrevi, mas não estou minimamente procupada com as críticas alheias. Para mim foi bom perceber,  finalmente,  desabafar e deixar um conselho que me parece essencial. As crianças não ganham nada de nada em começar mais cedo o percurso escolar.
Eu achava que ele ia sofrer muito porque ia deixar a turma para trás, porque já vinha com eles da pré. Nunca se saberá quando seria a altura certa para ele parar, para não se sentir desenraizado.
Mas aos 16 foi ele a escolher. E espero que seja uma das melhores decisões da vida dele. Que ele se enquadre, que mature e que se motive para continuar o seu caminho, sendo feliz com isso. É o que eu mais quero.


O Manel passou para o 8º com 3 e 4s, o Vicente com tudo Muito Bom e a Conchinha vai começar um mundo novo em Setembro. Que seja muito feliz e que a saibamos sempre orientar. Que a estrelinha da sorte ou o anjo da guarda ou a minha avó a amparem. 
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