O comboio parou, já lá vão longos minutos, e ao
longe vejo uma pequena povoação onde a torre da igreja se ergue no fim de uma
rua que sobe..por alguma razão, a minha imaginação leva-me a um lugar que não
conhecendo depressa faço meu
Naquela rua que sobe da Igreja e
curva no riacho, antes de chegar á avenida que atravessa a pequena vila da
Lousiga, está um prédio encaixado entre duas casas, que para quem não soubesse
pareceria mais uma casa, mas era na verdade uma moradia bi-familiar. Foi
construído nos anos 30, para dois irmãos, que tendo ido para a guerra
venderam a dois casais amigos em inicio de vida. Seria apenas mais uma entre
tantas outras casas, em tantas outras ruas , e em qualquer lugar do mundo, mas
a historia que aquelas paredes abraçam é especial demais para que seja apenas
mais uma casa.
Os casais eram amigos de colégio,
casaram no mesmo dia, e viveram em partilha os momentos de ansiedade na espera
dos filhos tão desejados. Um teve um rapaz, logo após o casamento, de nome
Leonel. Leonel era um menino loiro de olho azul, acarinhado pelos pais e
os vizinhos amigos. Desde cedo preferiu a calma do seu quarto ás
brincadeiras de rua, mostrando uma aptidão especial pela música. Os pais
orgulhosos, compraram um piano que o menino tocava dia após dia, aprendendo
sozinho melodias que ouvia na rádio. Demorou 7 anos até que os vizinhos
tivessem um filho, ou melhor uma filha, de nome Madalena. Era uma bébé linda, e
quando os amigos trouxeram a menina a casa de Leonel para este a conhecer, o
menino ficou preso naquele olhar profundo dos olhos cor de mel. O quarto do
Leonel era paredes meias com o quarto de Madalena, ainda que em casas
distintas, e a verdade é que a única forma de manter a bébé calma e sem chorar
era quando Leonel tocava piano.
Os anos passaram, e os dois foram
companheiros de brincadeiras até ao dia que Madalena foi enviada para um
colégio interno , dia a partir do qual Leonel nunca mais a viu. Pensava nela
muitas vezes, e à medida que ia crescendo imaginava-a já mulher, provavelmente
com longos cabelos castanhos saltitando de um lado para outro como uma
bailarina e com aquele sorriso que sempre trazia nos lábios quando eram ainda
meninos. Soube pelos pais que numa viagem de curso tinha conhecido o noivo e
estaria prestes a casar-se. Embora o entristecesse a certeza de que jamais
poderia ser mais que seu amigo, ficou feliz por saber que ela era feliz. Não a
via há mais de 12 anos, mas sabia que no dia que ela entrasse pela porta de
casa a reconheceria.
Mas a vida nem sempre é como
imaginamos, e quando Leonel tinha 25 anos, acabado de sair do conservatório e
com um emprego como professor de música no liceu, o pai que tinha sido o
grande pilar da família, foi morto a tiro por um miúdo embriagado, que devido à
idade não foi preso mas apenas enviado para uma casa de correção. Nesse dia,
Leonel perdeu-se, ficou de mal com o mundo, de mal com Deus e o destino, e
acima de tudo sem esperança nas pessoas.
Entregou-se á bebida, perdeu o
emprego e era um trapo que se arrastava entre a casa onde vivia com a mãe
doente e o café do Tio Herminio. Em alturas de lucidez, sentava-se nos degraus
olhando a porta de casa de Madalena, lembrando os momentos em que ambos eram
felizes e a vida era apenas um caminho que percorriam sem preocupações. Com o
passar dos meses a mãe piorou e acabou por morrer.
No dia do funeral, Leonel estava
sentado encostado á parede quando a viu subir as escadas. Trazia um vestido
azul escuro e um casaco de malha branco. Nos braços envolto numa manta azul
clara, um bebé, e nos olhos, nos olhos trazia o olhar que sempre teve da cor de
mel e decerto sabor igual, pelo menos sempre os imaginou assim. Esboçou um leve
sorriso quando o viu, e Leonel baixou os olhos envergonhado, pelo estado em que
se encontrava. Tinha umas velhas calças de bombazine cinzentas, uma camisa
beije desalinhada, o cabelo despenteado, a barba por fazer e os olhos vermelhos
e ausentes. Mas Madalena não pareceu se importar. Colocou o bebé nos seus braços,
e em silêncio entrou na casa dos pais. Leonel ficou ali parado, olhando aquela bebé
linda, de olhos cor de mel como os da mãe, o mesmo sorriso, e lembrou-se do dia
em que tinha tido a ela nos seus braços também bebé, no dia em que se
apaixonou pela primeira e última vez. Olhou para a porta, esperando que ela
viesse buscar o bebé, mas ouvia a sua voz falando pausadamente com os vizinhos,
sem sequer olhar para trás. Apesar do seu aspeto deplorável, Madalena viu
apenas o Leonel que sempre conheceu, viu a sua alma e não o que trajava.
Sentiu-se invadir por uma sensação que não sabia explicar. Depois de tantos
anos, sabendo como ela sabia decerto pelos pais os problemas que ele tinha com
a bebida, e entregou-lhe assim, sem perguntas e sem dúvidas o filho nos seus
braços magros e sujos.
Passado alguns minutos, Madalena
voltou, falaram um pouco, ela mais que ele, sobre o que fazia , onde vivia, e
recordaram a infância. No dia seguinte Madalena partiu, e Leonel também. Partiu
daquele lugar escuro onde se tinha deixado enterrar. Nunca mais bebeu, arranjou
a casa que os pais deixaram, a fachada do prédio e depressa começou a receber pedidos
de outros vizinhos para pequenas obras. Nunca deixou de tocar, e todas as
noites sentava-se no seu antigo quarto, agora uma salinha, a tocar piano. Podia
dizer-se que tinha mãos de ouro, para o trabalho e para a música.
Um dia a vizinha pediu-lhe
que arranjasse o antigo quarto de Madalena, porque também queria fazer dele uma
pequenina sala de leitura. Leonel sentou-se durante quase uma hora no quarto
olhando as paredes. Depois pegou num pincel fino e tinta preta e escreveu ,
escreveu e escreveu. No dia seguinte colocou o papel de parede
amarelo gemada, tal como lhe tinham pedido, e foi esta a última vez que
Leonel entrou naquela casa.
Os anos passaram, os pais de
Madalena faleceram, e com o avançar da idade Leonel deixou de poder trabalhar e
ficava os dias na salinha tocando uma e outra vez piano. Madalena tinha perdido
o marido num acidente em que também ela sofrera graves ferimentos. Perdeu a
vista de um olho e parecia ter desistido de viver. A filha única, dedicada de
corpo e alma à profissão de médica, decidiu voltar para a vila, esperando que
com pessoas que conhecesse a mãe reagisse. Quando entraram na casa, Madalena
foi direta ao seu antigo quarto, sentou-se numa poltrona verde e com os dedos
enrugados tocou no cachimbo que estava na mesinha ao lado. O seu pai sempre
fumou cachimbo e era assim que o recordava sentado na poltrona fumando o seu
cachimbo e contando-lhe as suas aventuras em Africa. Embora não tivesse
melhorias, a verdade é que Madalena sempre sorria quando de manhã a sentavam
naquela salinha e era sempre renitente que ao fim do dia ia para a cama. Vendo
que a mãe gostava tanto daquele espaço, a filha decidiu colocar mãos à obra e
retirar o papel de parede antigo e pintar as paredes de branco, talvez colocar
uns quadros com fotografias.
À medida que ia retirando o
papel, ia ficando intrigada com as letras que iam aparecendo, palavras, frases
inteiras que percorriam em circulo as paredes da pequena sala. Quando terminou,
leu e releu as palavras, e embora não lhe fossem a ela dirigidas, sentiu
borboletas no estomago, sentiu as lágrimas nos olhos enquanto lia, pensando ler
em silêncio sem se aperceber que as palavras lhe saiam pelos lábios como quem
sopra bolinhas de sabão.
“ Estas palavras que copio do
coração e aqui escrevo, certamente não as lerás, se alguma vez virem a luz do
dia, já os meus olhos da cor do mar e os teus da cor da areia se foram deste
mundo. Amei-te no dia em que te colocaram nos meus braços bébé e me perdi nas
dunas dos teus olhos cor de mel, amei-te em silêncio celebrando tuas vitorias e
sofrendo com tuas derrotas, perdi-me e minha alma morreu até ao dia em que
colocaste um pedaço de ti nos meus braços e vi os mesmos olhos confiantes.
Devolveste-me a esperança nas pessoas, e a vontade de viver e quero que quem
venha habitar um dia nesta casa saiba que aqui morou um anjo. Com amor, Leonel”
Passaram alguns minutos até
voltar a colocar os pés assentes no chão de madeira, olhou a mãe e viu as
lágrimas que lhe corriam pelo rosto, e viu nos olhos tão iguais aos seus o que
há muito tempo não via, vida. Sentou-se no chão, segurando as mãos trémulas, em
silêncio, até que a mãe lhe começou a contar a história de Leonel. A meio,
começou a ouvir o som de um piano, do outro lado da parede, e perante o súbito
silêncio da mãe, olhou para cima, e viu como tocava na parede acariciando-a e
murmurando “Leonel”.
Levantou-se e foi bater na porta
ao lado. Na ombreira apareceu um homem alto, de cabelos brancos e uns olhos
azuis de um azul profundo enfiados entre as pálpebras enrugadas. Falou por
momentos com ele, como se o conhecesse há muitos anos, e pediu-lhe que viesse a
sua casa. Levou-o até a salinha e fechou a porta atrás de si. Madalena ergue os
olhos, e Leonel abraçou-os com os seus. Agarrou nas suas mãos e beijou cada um
dos seus dedos com a delicadeza de quem beija as pétalas de uma rosa para que
estas não caiam. Deitou a cabeça no colo dela e ficaram ali, em silêncio, não
se sabe quanto tempo, pois o tempo parou, pois as suas passadas seriam
excessivamente ruidosas e podiam perturbar a melodia perfeita daquele encontro.
Naquela rua, que sobe da Igreja e
curva no riacho, estão três casas aparentemente triviais, são agora iguais por
dentro, mas apenas numa se ouve a mais bonita e perfeita sinfonia da Ternura,
apenas numa as palavras escritas se colaram as notas soltas de um velho piano,
numa sala agora grande onde um arco traz cravado o testemunho de duas vidas que
sempre estiveram destinadas a ser apenas uma.
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