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31 de outubro de 2019

mordaça e poema






o poema mais cruel
tem o peso da minha carne

e urra

tem pelo grosso
e machuca

é cruel pesar

não há docilidade
no grosso do desejo

há feiura

e a face de quem não sabe
do abismo

bem no meio das pernas
cerradas

mordaça e poema

de ossos e dentes
de açoite e cuspe

uma puta no poema

estraga a métrica
vomita o estilo
lambuza a palavra

afoga o grito na saliva
saliva o grito asfixiado

chora de cócoras 
pelo gozo derramado


S. Chaves







20 de setembro de 2019

Confidência Papareia







Alguns anos vivi à beira do mar
Principalmente nasci em cidade de mar
Por isso sou mansa, revolta: de maresias
Noventa por cento de sal nas calçadas
Oitenta por cento de brisa nas almas
E esse alheamento do que na vida é ancoradouro e partida

A vontade de amar, que me paralisa o barco
Vem como barlavento, de noites frias, de uma mulher e um só horizonte

E o hábito de sofrer, que tanto me adverte
É salgada herança litorânea

Do velho porto trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
esta rosa dos ventos, para futuras direções
este astrolábio de um velho navio naufragado
este farol da praia que se chama Solidão
este aceno, o olhar mareado

Tive ondas, tive conchas, tive proa
Hoje sou pescador sem rede
O Altair é apenas uma fotografia na parede
E às vezes dói


(releitura de "Confidência do Itabirano" - Drummond)

exercícios de janeiro









meu amor

o seu cenário seria sempre limpo. o lençol claro recém-lavado e os livros na estante. as capas brancas das suas edições francesas, os pelos brancos e pretos do gato. a pele fresca e o xampu na fronha do travesseiro. a marca das unhas bem aparadas e lixadas na dobra das roupas dentro do armário. as cutículas na lixeira. o sol entrando pela janela depois de bater nas meias penduradas no varal e agora tons muito nítidos de verde e azul do lado de fora. o despertador imobilizado pelo gesto rosado das mãos e depois a sua música aquática mergulhada nos ouvidos.
só ficariam manchas nas minhas mãos a cada carta.

(Cíntia)





meu amor

o seu cenário seria sempre nítido. o lençol manchado, refém e usado, e os livros na estante. as capas claras das suas edições francesas, a pele fresca de tons muito íntimos e o xampu na fronha do travesseiro. a marca das unhas bem aparadas no seu grito e a cada dobra. as cutículas, os pelos, o gesto. e o gato imobilizado na janela depois de virar a lixeira. a noite pendurada no varal. agora sons muito tímidos do seu movimento aquático do lado de dentro. o despertador calado pela música limpa e depois as minhas mãos mergulhadas.
só ficariam cartas nos lençóis recém-lavados e a voz rosada em meus ouvidos.


(Sheila) - releitura do poema da Cíntia França



8 de setembro de 2019

Cheiro de palavra vazia





às vezes o bom da vida é a casca mesmo dos dias
bip da portaria, lixo na rua, 
os tolos que dizem oi e andam e mandam

porque minhas palavras andam esquecidas
e meus dedos não sabem mais escrever
a casca das coisas tem falado comigo

eu respondo
assim consigo ver um pouco 
de tudo o que não me interessa

o troco, a máquina, o cadastro
a pele que envelhece
eu pressinto

que em algum lugar há uma grávida de palavras
egoísta e redonda de si mesma
economiza, guarda, engole e fica ali

gestando

mal sabe que palavra tem tempo
tem hora e lugar nenhum 
aguenta

o cheiro de palavra encolhida

mas invade
ocupa
fica olhando, parada, inchada de nadas

não sabe que cheira mal

a palavra vazia
não pode ler
nem faz casca 

que a casca das coisas
fala comigo 


S. Chaves




29 de janeiro de 2019

cem ideias



     



     II


     Não sei como dizer-te que minha voz te procura
     e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
     esplêndida e vasta.
     Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
     se enchem de um brilho precioso
     e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
     iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
     pelo pressentir de um tempo distante,
     e na terra crescida os homens entoam a vindima
     — eu não sei como dizer-te que cem ideias,
     dentro de mim, te procuram.


     Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
     ao lado do espaço
     e o coração é uma semente inventada
     em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
     tu arrebatas os caminhos da minha solidão
     como se toda a casa ardesse pousada na noite.
     — E então não sei o que dizer
     junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
     Quando as crianças acordam nas luas espantadas
     que às vezes se despenham no meio do tempo
     — não sei como dizer-te que a pureza,
     dentro de mim, te procura.


     Durante a primavera inteira aprendo
     os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
     correr do espaço —
     e penso que vou dizer algo cheio de razão,
     mas quando a sombra cai da curva sôfrega
     dos meus lábios, sinto que me faltam
     um girassol, uma pedra, uma ave — qualquer
     coisa extraordinária.
     Porque não sei como dizer-te sem milagres
     que dentro de mim é o sol, o fruto,
     a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
     o amor,


     que te procuram.


                   Herberto Helder - Tríptico  (excerto do poema)


13 de dezembro de 2018

Overdose




Fila pra entrar no café
Volta pra casa que nós ligamos
na sua vez de tomar café
Temos um lugar na mesa compartilhada
ali entre a cabeceira e o oitavo cliente
aperta que dá pra tomar café
Garçom no celular no café
Música alta no café
Vídeo do youtube em volume alto
no café
Gente q berra no café
Conversa monopólio no café
Gente sem café
Sugestão do dia:
Não me chame pra trocar seu café
Histeria no café – tem muita saída
Selfie de bico de pato no café
Outra selfie com bico de pato no café
Outra, outra, joga o cabelo pro lado
E o bico de pato não toma o café
Telão com futebol no café
Telão com futebol e música alta
Histeria mais apreciada no café
Uma gargalhada sobe na mesa do café
A gargalhada quer ser mais que café
Temos uma promoção do dia
Se pedir um café ganha uma colher
de açúcar demerara pra misturar com café
Não pedi expresso, era carioca o café
Esse é o carioca do café
Aula de inglês no café
com a música alta do café
o telão com futebol do café
o vídeo do youtube no café
A gargalhada derruba o café
Quadrinho com frase fofa
"Relaxe. Tome um café"
Agora só se escreve com giz no café
Nesta data querida se apaga a velinha
Quanta felicidade no café
A gargalhada já dança Cancan
Em cima do balcão do café
Um bom lugar pra ver um livro
Mofado na estante do café
Mexer na herança pra pagar o café
A maquininha não funciona no café
Põe no crédito os 10%, vou deixar um pago
pra quem nunca vai entrar no café
Contribua com a caixinha
dos funcionários do café
Deixe sua sugestão...
Ajude-nos a melhorar!


S. Chaves

9 de dezembro de 2018

Cidadão de Benz



(Ilustração: Fernando Vicente)



Cidadão de bem
De bens
De benzo
Mercedes-Benz

Cidadão do Bem
Apresentado
Sucedido
Cidadão Bem estar
Em todo lugar
Bem vindo

Benzido – benze a minha mão
Independente, Bendito
Cidadão Benefício
Independente o ofício

Cidadão Bem quisto
Bem visto
Bem branco
Que banca
Banquete
Banqueiro e puteiro

Bandeira fede e
Amarela

Cidadão bancarrota
Faz, mas não banca
E arrota

Cidadão Bonzinho
Bonzão
Bom de bola

De Bola nas costas
Quentes
Já dá uma “bolada”

Cidadão de Bolso
Cheio de méritos
De bolso pequeno
Pra tanto crédito

Cidadão auxílio
Covardia

Cidadão do Bozo
Palhaço
De cara larvada

Cidadão de Bem
Servido
Cidadão esquecido
Pede perdão
Absolvido

SIDA - Adão
De bons costumes
Bem representado
À noite bem maquiado

Cidadão correto
Rápido e direto
Que assim ninguém vê
Que não era a Eva

Cidadão de Bolso
Abarrotado

Cidadão cristão

Em nome do Pai dos Filhos
Dos outros em prantos

Reféns!


6 de dezembro de 2018

Era outro país






Era outro país
era para ir
e morar
mas não consegui arrumar minha mala

Coloco três peças 
aleatórias 
dois blusões (para o frio) e uma blusa 
um blusão era cinza
a blusa, dessas que se põe por baixo
vermelha 
a outra peça não lembro 

Na rodoviária
parece que ela vai comigo 
enquanto o ônibus não chega
peço que cuide da mala
Vou até o quarto pegar mais coisas

Era ali mesmo
mas depois das faixas de ônibus
tinha que atravessá-las
ficava meio escondido
só não dava mais tempo

Chego até a porta, não sei se entro 
não faço uma coisa nem outra
só, eu não tinha tempo 
eu sofria! 
não tinha arrumado a mala
eu que sabia que partiria

Aquelas roupas, insuficientes, eu não gostava delas
não gostava da blusa vermelha de gola redonda, apertada
sensação familiar
digo a mim mesma: De novo? 

Eu tenho as coisas para pôr na mala
mas não sei mais daquele quarto
a porta não abre
ela está lá 
sentada
na primeira poltrona do ônibus
ela cuida da mala 
de roupas insuficientes

A porta se abre, parece que insisto
está tudo claro
roupas no chão
não dá para escolher
o ônibus saiu
eu de pé 
no quarto
ela aleatória 
com a mala 

Se foi a blusa 
de um vermelho insuficiente
que eu não ousava mais


S. Chaves




22 de junho de 2018

para não morrer de sede, Hilda

(Doisneau)

I
Vida da minha alma:
Recaminhei casas e paisagens
Buscando-me a mim, minha tua cara.
Recaminhei os escombros da tarde
Folhas enegrecidas, gomos, cascas
Papéis de terra e tinta sob as árvores
Nichos onde nos confessamos, praças
Revi os cães. Não os mesmos. Outros
De igual destino, loucos, tristes,
Nós dois, meu ódio-amor, atravessando
Cinzas e paredões, o percurso da vida.
Busquei a luz e o amor. Humana, atenta
Como quem busca a boca nos confins da sede.
Recaminhei as nossas construções, tijolos
Pás, a areia dos dias
E tudo que encontrei te digo agora:
Um outro alguém sem cara. Tosco. Cego.
O arquiteto dessas armadilhas.

II
Que dor desses calendários
Sumidiços, fatos, datas
O tempo envolto em visgo
Minha cara buscando
Teu rosto reversivo.
Que dor no branco e negro
Desses negativos
Lisura congelada do papel
Fatos roídos
E teus dedos buscando
A carnação da vida.
Que dor de abraços
Que dor de transparência
E gestos nulos
Derretidos retratos
Fotos fitas
Que rolo sinistroso
Nas gavetas.
Que gosto esse do Tempo
De estancar o jorro de umas vidas.

III
Se a tua vida se estender
Mais do que a minha
Lembra-te, meu ódio-amor,
Das cores que vivíamos
Quando o tempo do amor nos envolvia.
Do ouro. Do vermelho das carícias.
Das tintas de um ciúme antigo
Derramado
Sobre o meu corpo suspeito de conquistas.
Do castanho de luz do teu olhar
Sobre o dorso das aves. Daquelas árvores:
Estrias de um verde-cinza que tocávamos.
E folhas da cor das tempestades
contornando o espaço
De dor e afastamento.
Tempo turquesa e prata
Meu ódio-amor, senhor da minha vida.
Lembra-te de nós. Em azul. Na luz da caridade.

 (Hilda Hilst - Cantares de perda e predileção)

17 de setembro de 2017

Não, não vou



(foto: Sheila Chaves)



"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos laços,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não,eu não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Feito farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Somente para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis machados, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes tratados, Tendes filósofos, tendes sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!"   

Cântico Negro - José Régio