terça-feira, 2 de abril de 2024

Chegou abril, com os seus cheiros, as suas cores, flores e poesia...


"Eu vi Abril por fora e Abril por dentro

vi o Abril que foi e Abril de agora

eu vi Abril em festa e Abril lamento

Abril como quem ri como quem chora


Eu vi chorar Abril e Abril partir

vi o Abril de sim e Abril de não

Abril que já não é Abril por vir

e como tudo o mais contradição


Vi o Abril que ganha e Abril que perde

Abril que foi Abril e o que não foi

eu vi Abril de ser e de não ser


Abril de Abril vestido (Abril tão verde)

Abril de Abril despido (Abril que dói)

Abril já feito. E ainda por fazer."


Manuel Alegre

in, Mala d’estórias (adaptado)



sexta-feira, 1 de março de 2024

BALADA DA NEVE
Batem leve, levemente,
como quem chama por mim.
Será chuva? Será gente?
Gente não é, certamente

e a chuva não bate assim.


É talvez a ventania:
mas há pouco, há poucochinho,
nem uma agulha bulia
na quieta melancolia
dos pinheiros do caminho...

Quem bate, assim, levemente,
com tão estranha leveza,
que mal se ouve, mal se sente?
Não é chuva, nem é gente,
nem é vento com certeza.

Fui ver. A neve caía
do azul cinzento do céu,
branca e leve, branca e fria...
- Há quanto tempo a não via!
E que saudades, Deus meu!

Olho-a através da vidraça.
Pôs tudo da cor do linho.
Passa gente e, quando passa,
os passos imprime e traça
na brancura do caminho...

Fico olhando esses sinais
da pobre gente que avança,
e noto, por entre os mais,
os traços miniaturais
duns pezitos de criança...

E descalcinhos, doridos...
a neve deixa inda vê-los,
primeiro, bem definidos,
depois, em sulcos compridos,
porque não podia erguê-los!...

Que quem já é pecador
sofra tormentos, enfim!
Mas as crianças, Senhor,
porque lhes dais tanta dor?!...
Porque padecem assim?!...

E uma infinita tristeza,
uma funda turbação
entra em mim, fica em mim presa.
Cai neve na Natureza
- e cai no meu coração.

(Augusto Gil)





terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

A CAIXA DE PANDORA


A Caixa de Pandora é um dos mitos mais fascinantes da mitologia grega, uma narrativa repleta de mistério e simbolismo que tem perdurado por séculos, cativando gerações com a sua mensagem complexa e atemporal.

Segundo a lenda, Pandora foi a primeira mulher criada pelos deuses, concebida como um presente para Epimeteu, irmão de Prometeu. Ela foi dotada de beleza, inteligência e curiosidade, mas também carregava consigo uma caixa, que lhe foi entregue com a advertência de jamais a abrir. No entanto, a curiosidade incessante de Pandora acabou por vencê-la, e ela não resistiu à tentação de espiar o que havia dentro da caixa proibida.

Ao abrir a caixa, Pandora liberou uma série de males e desgraças que se espalharam pelo mundo, trazendo consigo doenças, guerras, sofrimento e todos os males que afligem a humanidade. Aterrorizada com as consequências de sua ação, Pandora fechou a caixa rapidamente, mas foi tarde demais para evitar a propagação do caos.

No entanto, dentre todos os males que escaparam da caixa, restou uma última coisa: a esperança. Apesar de tudo o que foi libertado, a esperança permaneceu dentro da caixa, oferecendo um raio de luz em meio às trevas, uma promessa de que, mesmo nos piores momentos, há a possibilidade de encontrar conforto e renovação.

A história da Caixa de Pandora é rica em significados e interpretações, refletindo a complexidade da condição humana e a dualidade entre o bem e o mal. Ela lembra-nos a importância de lidar com as nossas emoções e impulsos com sabedoria, e do poder das escolhas que fazemos nas nossas vidas. Além disso, ensina-nos que, mesmo diante das adversidades mais sombrias, a esperança continua presente, oferecendo-nos força e determinação para seguir em frente.

Texto de Helena Sacadura Cabral




domingo, 11 de fevereiro de 2024

“O menino que escrevia versos” – um conto de Mia Couto

De que vale ter voz
se só quando não falo é que me entendem?
De que vale acordar
se o que vivo é menos do que o que sonhei?
(Verso do menino que fazia versos)
— Ele escreve versos!
Apontou o filho, como se entregasse criminoso na esquadra. O médico levantou os olhos, por cima das lentes, com o esforço de alpinista em topo de montanha.
— Há antecedentes na família?
— Desculpe doutor?
O médico destrocou-se em tintins. Dona Serafina respondeu que não. O pai da criança, mecânico de nascença e preguiçoso por destino, nunca espreitara uma página. Lia motores, interpretava chaparias. Tratava bem, nunca lhe batera, mas a doçura mais requintada que conseguira tinha sido em noite de núpcias:
— Serafina, você hoje cheira a óleo Castrol.
Ela hoje até se comove com a comparação: perfume de igual qualidade qual outra mulher ousa sequer sonhar? Pobres que fossem esses dias, para ela, tinham sido lua-de-mel. Para ele, não fora senão período de rodagem. O filho fora confeccionado nesses namoros de unha suja, restos de combustível manchando o lençol. E oleosas confissões de amor.
Tudo corria sem mais, a oficina mal dava para o pão e para a escola do miúdo. Mas eis que começaram a aparecer, pelos recantos da casa, papéis rabiscados com versos. O filho confessou, sem pestanejo, a autoria do feito.
— São meus versos, sim.
O pai logo sentenciara: havia que tirar o miúdo da escola. Aquilo era coisa de estudos a mais, perigosos contágios, más companhias. Pois o rapaz, em vez de se lançar no esfrega-refrega com as meninas, se acabrunhava nas penumbras e, pior ainda, escrevia versos. O que se passava: mariquice intelectual? Ou carburador entupido, avarias dessas que a vida do homem se queda em ponto morto?
Dona Serafina defendeu o filho e os estudos. O pai, conformado, exigiu: então, ele que fosse examinado.
— O médico que faça revisão geral, parte mecânica, parte eléctrica.
Queria tudo. Que se afinasse o sangue, calibrasse os pulmões e, sobretudo, lhe espreitassem o nível do óleo na figadeira. Houvesse que pagar por sobressalentes, não importava. O que urgia era pôr cobro àquela vergonha familiar.
Olhos baixos, o médico escutou tudo, sem deixar de escrevinhar num papel. Aviava já a receita para poupança de tempo. Com enfado, o clínico se dirigiu ao menino:
— Dói-te alguma coisa?
—Dói-me a vida, doutor.
O doutor suspendeu a escrita. A resposta, sem dúvida, o surpreendera. Já Dona Serafina aproveitava o momento: Está a ver, doutor? Está ver? O médico voltou a erguer os olhos e a enfrentar o miúdo:
— E o que fazes quando te assaltam essas dores?
— O que melhor sei fazer, excelência.

— E o que é?
— É sonhar.
Serafina voltou à carga e desferiu uma chapada na nuca do filho. Não lembrava o que o pai lhe dissera sobre os sonhos? Que fosse sonhar longe! Mas o filho reagiu: longe, porquê? Perto, o sonho aleijaria alguém? O pai teria, sim, receio de sonho. E riu-se, acarinhando o braço da mãe.
O médico estranhou o miúdo. Custava a crer, visto a idade. Mas o moço, voz tímida, foi-se anunciando. Que ele, modéstia apartada, inventara sonhos desses que já nem há, só no antigamente, coisa de bradar à terra. Exemplificaria, para melhor crença. Mas nem chegou a começar. O doutor o interrompeu:
— Não tenho tempo, moço, isto aqui não é nenhuma clinica psiquiátrica.
A mãe, em desespero, pediu clemência. O doutor que desse ao menos uma vista de olhos pelo caderninho dos versos. A ver se ali catava o motivo de tão grave distúrbio. Contrafeito, o médico aceitou e guardou o manuscrito na gaveta. A mãe que viesse na próxima semana. E trouxesse o paciente.
Na semana seguinte, foram os últimos a ser atendi dos. O médico, sisudo, taciturneou: o miúdo não teria, por acaso, mais versos? O menino não entendeu.
— Não continuas a escrever?
— Isto que faço não é escrever, doutor. Estou, sim, a viver. Tenho este pedaço de vida — disse, apontando um novo caderninho — quase a meio.
O médico chamou a mãe, à parte. Que aquilo era mais grave do que se poderia pensar. O menino carecia de internamento urgente.
— Não temos dinheiro — fungou a mãe entre soluços.
— Não importa — respondeu o doutor.
Que ele mesmo assumiria as despesas. E que seria ali mesmo, na sua clínica, que o menino seria sujeito a devido tratamento. E assim se procedeu.
Hoje quem visita o consultório raramente encontra o médico. Manhãs e tardes ele se senta num recanto do quarto onde está internado o menino. Quem passa pode escutar a voz pausada do filho do mecânico que vai lendo, verso a verso, o seu próprio coração. E o médico, abreviando silêncios:
— Não pare, meu filho. Continue lendo…
Mia Couto, “O fio das missangas”, Companhia das Letras, São Paulo, 2004.

OBRIGADA / OBRIGADO


Há outra palavra mágica

Gentil e bem educada

Que cai bem a toda a gente:

Obrigado ou obrigada.


Obrigado, se és menino

É ouvido com prazer.

Obrigada, se és menina

Não custa nada a dizer.


Emprega-a todos os dias

Com todos, e tu vais ver

Como há montes de magia

Na arte de agradecer.


Rosa Lobato Faria, “ABC das Coisas Mágicas em Rima infantil"

in, Mala d’estórias



A MAIOR FLOR DO MUNDO

“As histórias para crianças devem ser escritas com palavras muito simples. Quem me dera saber escrever essas histórias. 

Se eu tivesse aquelas qualidades, poderia contar, com pormenores, uma linda história que um dia inventei. Seria a mais linda de todas as que se escreveram desde o tempo dos contos de fadas e princesas encantadas… 

… havia uma aldeia. 

…e um menino. 

Sai o menino pelos fundos do quintal, e, de árvore em árvore, como um pintassilgo, desce o rio e depois por ele abaixo. Em certa altura, chegou ao limite das terras até onde se aventurara sozinho. Dali para diante começava o “planeta Marte”. 

Dali para diante, para o nosso menino, será só uma pergunta: Vou ou não vou? E foi. 

O rio fazia um desvio grande, afastava-se, e de rio ele estava já um pouco farto, tanto que o via desde que nascera. Resolveu cortar a direito pelos campos, entre extensos olivais, ladeando misteriosas sebes cobertas de campainhas brancas, e outras vezes metendo pelos bosques de altas árvores onde havia clareiras macias sem rasto de gente ou bicho, e ao redor um silêncio que zumbia, e também um calor vegetal, um cheiro de caule fresco. 

Ó que feliz ia o menino! Andou, andou, foram rareando as árvores, e agora havia uma charneca rasa, de mato ralo e seco, e no meio dela uma inclinada colina redonda como uma tigela voltada. 

Deu-se o menino ao trabalho de subir a encosta, e quando chegou lá acima, que viu ele? Nem a sorte nem a morte, nem as tábuas do destino… Era só uma flor. 

Mas tão caída, tão murcha, que o menino se achegou, de cansado. E como este menino era especial de história, achou que tinha de salvar a flor. Mas que é da água? Ali, no alto, nem pinga. Cá por baixo, só no rio, e esse que longe estava! 

Não importa. 

Desce o menino a montanha, atravessa o mundo todo, chega ao grande rio, com as mãos recolhe quanta de água lá cabia, volta o mundo atravessar, pelo monte se arrasta, três gotas que lá chegaram, bebeu-as a flor com sede. Vinte vezes cá e lá. 

Mas a flor aprumada já dava cheiro no ar, e como se fosse uma grande árvore deitava sombra no chão. 

O menino adormeceu debaixo da flor. Passaram as horas, e os pais, como é costume nestes casos, começaram a afligir-se muito. Saiu toda a família e mais vizinhos à busca do menino perdido. E não o acharam. 

Correram tudo, já em lágrimas tantas, e era quase sol-pôr quando levantaram os olhos e viram ao longe uma flor enorme que ninguém se lembrava que estivesse ali. 

Foram todos de carreira, subiram a colina e deram com o menino adormecido. Sobre ele, resguardando-o do fresco da tarde, estava uma grande pétala perfumada… 

Este menino foi levado para casa, rodeado de todo o respeito, como obra de milagre. 

Quando depois passava pelas ruas, as pessoas diziam que ele saíra da aldeia para ir fazer uma coisa que era muito maior do que o seu tamanho e do que todos os tamanhos."

in, “A Maior Flor do Mundo” - José Saramago

in, Mala d’estórias







MARCELO E AS TÁGIDES

Marcelo, em cupidez municipal

de coroar-se com louros alfacinhas,

atira-se valoroso – ó bacanal! –

ao leito húmido das Tágides daninhas.

Para conquistar as Musas de Camões

lança a este, Marcelo, um desafio:

Jogou-se ao verso o épico? Ilusões!…

Bate-o Marcelo que se joga ao rio.

E em eleitorais estrofes destemidas,

do autárquico sonho, o nadador

diz que curara as ninfas poluídas

com o milagre do seu corpo em flor.

Outros prodígios – dizem – congemina:

ir aos bairros da lata e ali, sem medo,

dormir para os limpar da vil vérmina

e triunfal ficar cheio de pulguedo.

Por fim, rumo ao céu, novo Gusmão

de asa delta a fazer de passarola,

sobrevoa Lisboa o passarão

e perde a pena que é de galinhola.

Natália Correia




segunda-feira, 6 de novembro de 2023

A fábula do burro

Um dia, o burro de um camponês caiu num poço. Não chegou a ferir-se, mas não podia sair dali por conta própria. Por isso o animal zurrou fortemente durante horas, enquanto o camponês pensava no que fazer.

Finalmente, o camponês tomou uma decisão cruel: concluiu que já que o burro estava muito velho e que o poço estava mesmo seco, precisaria ser tapado de alguma forma. Portanto, não valia a pena esforçar-se para tirar o burro de dentro do poço. Ao contrário, chamou os seus vizinhos para ajudá-lo a enterrar vivo o burro. Cada um deles pegou uma pá e começou a atirar terra para dentro do poço.

O burro não tardou a dar-se conta do que estavam a fazer com ele e “chorou” desesperadamente. Porém, para surpresa de todos, o burro aquietou-se depois de umas quantas pás de terra com que tinha levado.

O camponês finalmente olhou para o fundo do poço e surpreendeu-se com o que viu. A cada pá de terra que caía sobre as suas costas o burro a sacudia, dando um passo sobre a terra, que caía ao chão. Assim, em pouco tempo, todos viram como o burro conseguiu chegar até a boca do poço, passar por cima da borda e sair dali trotando.

 Moral da história:

A vida vai atirar-lhe muita terra nas costas. Principalmente se já estiver dentro de um poço. Muitas vezes pelas pessoas que mais deviam ajudar e proteger. A própria "família".

O segredo para sair do poço é sacudir a terra que se leva nas costas e dar um passo sobre ela. Cada um de nossos problemas é um degrau que nos conduz para cima. Podemos sair dos mais profundos buracos se não nos dermos por vencidos. Use a terra que lhe atiram para seguir adiante!!!