História da ortografia em Portugal e no Brasil
A história da ortografia da língua portuguesa pode dividirse em três períodos:
fonético, até ao século XVI; pseudoetimológico, desde o século XVI até 1911; moderno, desde 1911 até hoje.
Quando a língua portuguesa começou a ser escrita, quem escrevia procurava representar foneticamente os sons da fala. Esta representação, no entanto, nunca foi satisfatória. Por um lado, não havia norma e, assim, por exemplo, o som /i/ podia ser representado por i, por y, e até por h (1); a nasalidade por m, por n, ou por til, etc. Por outro lado, a ortografia conservouse em certos casos antiquada em relação à evolução da pronúncia das palavras, como em leer (ler) e teer (ter). Nos documentos mais antigos, de qualquer modo, o que se observa é a procura de uma grafia fonética. Com o decorrer do tempo, esta simplicidade foi desaparecendo por causa da influência do Latim. Assim, começaram a aparecer grafias como fecto (feito), regno (reino), fructo (fruito), etc. Realmente, uma das características do Renascimento foi a admiração pelos tempos clássicos e, em particular, pelo Latim. Isso consolidou, por assim dizer, e levou ao extremo a influência daquela língua na escrita do Português. Daqui resultou o aparecimento de inúmeras consoantes duplas, o aparecimento dos grupos ph, ch, th, rh, que antes praticamente ninguém usava. Por outro lado, já nesse tempo, tal como hoje, a ignorância e o pretensiosismo se aliavam para produzir os maiores disparates, tais como, por exemplo, lythographia, typoia, lyrio, etc. (2)(3). É por esta razão que se chama pseudoetimológico ao período em que esta tendência se impôs. Isto é, queriase pretensiosamente fazer etimológica a ortografia, mas a ignorância não deixava ir além da pseudoetimologia. Além disso, segundo J. J. Nunes (4), "por este processo [o da procura da grafia etimológica] recuavamse bastantes séculos, fazendo ressurgir o que era remoto, e punhase de lado a história do nosso idioma...".
Devese dizer que cedo começou a haver reacções simplificativas. Por exemplo, Duarte Nunes de Leão, um dos primeiros gramáticos portugueses, reprova a pseudoetimologia nascente em "Ortographia da lingoa portuguesa", livro de 1576. Outro gramático que se opôs a esta ortografia complicada foi Álvaro Ferreira de Vera, no seu livro "Ortographia ou arte para escrever certo na lingua portuguesa" (1633) (5). Também D. Francisco Manuel de Melo (século XVII) usou, pelo menos na sua obra "Segundas três musas do Melodino", uma ortografia simplificada em que quase não havia consoantes dobradas, o ph era substituído por f, e o ch com som /k/ era substituído por qu (pharmacia > farmacia, Achilles > Aquiles) (3).
No século seguinte, o XVIII, o célebre Luís António Verney apresentou também a sua proposta de ortografia simplificada e, mais do que isso, publicou nessa ortografia a sua grande obra "O verdadeiro método de estudar".
O que é certo, porém, é que, na quase totalidade dos escritos, principalmente a partir da publicação em 1734 da "Ortographia ou arte de escrever e pronunciar com acerto a lingua portugueza" de João de Morais Madureyra Feyjó, se procurava a grafia mais complicada. Notese, no entanto, que, apesar de tudo, o número de acentos era bastante restrito e empregue em casos e para fins algo diferentes dos actuais.No princípio do século XIX, também Garrett defendia a simplificação ortográfica e criticava a ausência de norma. Nesse mesmo século proliferaram os pretendentes a reformadores da ortografia. Além de Garrett, podese mencionar, por exemplo, Castilho, como um dos mais conhecidos.
No decorrer do século XIX, começou a compreenderse a falta de justificação de muitas das grafias complicadas que então se usavam, mas, por outro lado, caiuse no extremo de, mesmo aqueles sem quaisquer habilitações para tal, desatarem a simplificar disparatadamente. O resultado foi que, no fim do século XIX, a desordem ortográfica era total. Cada um escrevia como lhe parecia melhor.
Assim, em 1911, o Governo nomeou uma comissão para estabelecer a ortografia a usar nas publicações oficiais. Desta comissão fazia parte o insigne foneticista Gonçalves Viana, que já em 1907 apresentara um projecto de ortografia simplificada. O trabalho da comissão consistiu praticamente em adoptar o que propunha Gonçalves Viana e a nova ortografia foi oficializada por portaria de 1 de Setembro de 1911. Esta reforma da ortografia, a primeira oficial em Portugal, foi profunda e modificou completamente o aspecto da língua escrita, aproximandoo muito do actual. Foi, pode dizerse, uma mudança verdadeiramente radical e feita sem qualquer acordo com o Brasil. Ao fazer desaparecer muitas consoantes dobradas, e os grupos ph, th, rh, etc., a reforma, afinal, fazia desaparecer os exageros do período pseudoetimológico e promovia um "regresso" ao período fonético. Por isso, é que, a propósito das muitas reacções adversas que houve na altura, escrevia J.J. Nunes (6), em 1918: "Pena é que a ortografia nova, que, em rigor, é velha, não seja compreendida por todos, ou antes, que se não queira ver a sua justeza, acabandose de vez com os desconchavos que ainda perduram, quase sempre resultantes da ignorância...". Como estas palavras continuam actuais !
O essencial da reforma ortográfica de 1911 foi acabar com o despotismo da etimologia, aproximando a ortografia oficial de uma escrita fonética. Aproximando, apenas, notese, dado que, apesar de tudo, se fizeram vastas concessões a hábitos anteriores, como era o caso de manter inúmeras consoantes mudas, com um ou outro pretexto (homem, directo, sciência, etc.).
Um ponto em que a reforma foi incoerente e em que se afastou da tradição dos primeiros tempos do Português escrito foi a introdução profunda de acentos. Em particular, passaram a ser acentuadas todas as palavras esdrúxulas, o que não acontecia antes.
A seguir à reforma de 1911, houve vários ajustamentos efectuados por portarias de 19.11.1920, 23.09.1929, e 27.05.1931. A grande reforma seguinte foi a resultante do acordo ortográfico Portugal Brasil de 1945, a qual, ligeiramente alterada por um decreto de 1971, deu origem à ortografia oficial que até agora se usou em Portugal. Notese, de passagem, que o acordo de 1945 anulou algumas modificações introduzidas em 1911 e 1931.
Vejamos o que entretanto se passava no Brasil. No século XIX, a ortografia no Brasil estava no mesmo estado que em Portugal. Podese dizer que havia unidade... no caos.
Em 1907, a Academia Brasileira de Letras tivera em estudo um projecto de reforma análogo ao de Gonçalves Viana, que, como vimos, levou à reforma portuguesa de 1911. Neste projecto, embora baseado no do foneticista português, colaboraram vários brasileiros ilustres, como Euclides da Cunha, Rui Barbosa e outros (7). Isto mostra que, em ambos os países, há muito se sentia a necessidade de modificar a ortografia. O mesmo, aliás, se passava noutros países e tinham sido e viriam a ser feitas reformas em vários deles, como se verá mais à frente.
O projecto da Academia Brasileira de Letras de 1907 acabou por não ir por diante e, por outro lado, Portugal cometeu o absurdo erro de avançar sozinho para a reforma. Assim, e apesar de a reforma portuguesa ser defendida sem alterações, para uso no Brasil, por filólogos brasileiros do calibre de
Antenor Nascentes e Mário Barreto, o certo é que, durante alguns anos, ficaram os dois países com ortografias completamente diferentes: Portugal com uma ortografia moderna, o Brasil com a velha ortografia pseudoetimológica.
Foi em 1924 que as duas Academias, a Brasileira de Letras e a das Ciências de Portugal, resolveram procurar uma ortografia comum. Claro que, para isso, o Brasil teria que se aproximar de Portugal, que, na altura, caminhava na frente. Houve em 1931 um acordo preliminar entre as duas Academias, em que se adoptava praticamente a ortografia portuguesa. Assim se iniciou o processo de convergência das ortografias dos dois países com um reconhecimento quase total, por parte do Brasil, da superioridade da ortografia portuguesa. Contudo, os vocabulários que se publicaram, em 1940 (Academia das Ciências de Portugal) e 1943 (Academia Brasileira de Letras), continham ainda algumas divergências. Por isso, houve, ainda em 1943, em Lisboa, uma Convenção Ortográfica, que deu origem ao Acordo Ortográfico de 1945. Este acordo tornouse lei em Portugal pelo Decreto 35 228 de 08.12.45, mas no Brasil não foi ratificado pelo Congresso; e, por isso, os Brasileiros continuaram a regularse pela ortografia do Vocabulário de 1943.
Em 1971, novo acordo entre Portugal e o Brasil aproximou um pouco mais a ortografia do Brasil da de Portugal. Tratouse de cedência brasileira, mais uma vez. O acordo teve a sorte de ser oficializado sem burburinho. Notese aqui que, do ponto de vista absoluto, ambas as grafias eram nesta altura perfeitamente razoáveis e sua única desvantagem era apresentarem ainda algumas diferenças. Não fosse isso, seria, de facto, inútil "mexer" mais.
Em 1973, recomeçaram as negociações e, em 1975, as duas Academias mais uma vez chegaram a acordo, o qual "não foi contudo transformado em lei, pois circunstâncias adversas de vária ordem não permitiram uma consideração pública da matéria" (8).
Em 1986, o Presidente José Sarney tentou resolver o assunto, que há longo tempo se arrastava, e promoveu o encontro dos sete países de língua portuguesa no Rio de Janeiro. Deste encontro, mais uma vez saíu um acordo ortográfico e mais uma vez o acordo não foi por diante, devido a um surpreendente alarido que se levantou em Portugal. Este alarido, longe de ser resultado de defeitos do acordo, deveuse sobretudo a uma confrangedora ignorância do assunto por parte dos pouco ponderados adversários da união ortográfica. Mas a verdade é que o acordo foi suspenso.
O pior é que se concluiu este ano novo acordo, dito "mais moderado", mas na verdade mais incoerente, e exposto, este sim, a críticas com fundamento. Os responsáveis portugueses pelo Acordo de 1986, que garantia uma unificação quase total da ortografia da língua, cederam aos autoproclamados donos da Cultura Nacional e, agora, em 1990, produziram um acordo imperfeito, que não unifica, cheio de grafias duplas, defeitos estes que são deslealmente aproveitados pelos detractores que os causaram. É o castigo da demagogia. Enfim, se encarado como transitório, como mais uma pequena dose de mudança sem dor para não assarapantar o profanum vulgum, este acordozito é um passo na direcção certa. Para mim, no entanto, o método correcto seria fazer a unificação total de uma só vez e liquidar definitivamente o problema.
REFERÊNCIAS
• (1) Nunes, José Joaquim Compêndio de gramática histórica portuguesa, Livraria Clássica Editora, Lisboa, 1945, p. 193
• (3) Fonseca, Fernando O Português entre as línguas do mundo, Livraria Almedina, Coimbra, 1985, p. 326
• (4) Nunes, José Joaquim Compêndio de gramática histórica portuguesa, Livraria Clássica Editora, Lisboa, 1945, p. 196
• (5) Cuesta, Pilar Vasquez Gramática da língua portuguesa, Edições 70, Lisboa, 1980, p. 338
• (6) Nunes, José Joaquim Compêndio de gramática histórica portuguesa, Livraria Clássica Editora, Lisboa, 1945, p. 198
• (7) Carmo Vaz, Álvaro Código de escrita, Livros técnicos e científicos, Lisboa, 1983, p. 112
• (8) Protocolo de Acordo Ortográfico de 1986
por Manuel Mendes de Carvalho (1990, com algumas notas de actualização, 1996)