Ilustração de Luís Alvoeiro no livro "Lisboa à Mesa", de Miguel Pires
Espaço ecléctico e multifacetado, dedicado à reflexão, à divulgação e à partilha de ideias.
quarta-feira, 30 de janeiro de 2013
Gramática(s)!!!
Teolinda Gersão faz uma declaração de amor à Língua portuguesa
Tempo de exames no secundário, os meus
netos pedem-me ajuda para estudar português. Divertimo-nos imenso, confesso. E
eu acabei por escrever a redacção que eles gostariam de escrever. As palavras
são minhas, mas as ideias são todas deles.
11-06-2012
Redacção – Declaração de Amor à Língua Portuguesa
Vou chumbar a Língua
Portuguesa, quase toda a turma vai chumbar, mas a gente está tão farta que já
nem se importa. As aulas de português são um massacre. A professora? Coitada,
até é simpática, o que a mandam ensinar é que não se aguenta. Por exemplo,
isto: No ano passado, quando se dizia “ele está em casa”, “em casa” era o
complemento circunstancial de lugar. Agora é o predicativo do sujeito. “O Quim
está na retrete”: “na retrete” é o predicativo do sujeito, tal e qual como se
disséssemos “ela é bonita”. Bonita é uma característica dela, mas “na retrete”
é característica dele? Meu Deus, a "setôra" também acha que não, mas passou a
predicativo do sujeito, e agora o Quim que se dane, com a retrete colada ao rabo.
No ano passado havia
complementos circunstanciais de tempo, modo, lugar etc., conforme se precisava.
Mas agora desapareceram e só há o desgraçado de um “complemento oblíquo”.
Julgávamos que era o simplex a funcionar: Pronto, é tudo “complemento oblíquo”,
já está. Simples, não é? Mas qual, não há simplex nenhum, o que há é um
complicómetro a complicar tudo de uma ponta a outra: há por exemplo verbos
transitivos directos e indirectos, ou directos e indirectos ao mesmo tempo, há
verbos de estado e verbos de evento, e os verbos de evento podem ser
instantâneos ou prolongados, almoçar por exemplo é um verbo de evento
prolongado (um bom almoço deve ter aperitivos, vários pratos e muitas
sobremesas). E há verbos epistémicos, perceptivos, psicológicos e outros, há o
tema e o rema, e deve haver coerência e relevância do tema com o rema; há o
determinante e o modificador, o determinante possessivo pode ocorrer no
modificador apositivo e as locuções coordenativas podem ocorrer em locuções
contínuas correlativas. Estão a ver? E isto é só o princípio. Se eu disser:
Algumas árvores secaram, ”algumas” é um quantificativo existencial, e a
progressão temática de um texto pode ocorrer pela conversão do rema em tema do
enunciado seguinte e assim sucessivamente.
No ano passado se
disséssemos “O Zé não foi ao Porto”, era uma frase declarativa negativa. Agora
a predicação apresenta um elemento de polaridade, e o enunciado é de polaridade
negativa.
No ano passado, se
disséssemos “A rapariga entrou em casa. Abriu a janela”, o sujeito de “abriu a
janela” era ela, subentendido. Agora o sujeito é nulo. Porquê, se sabemos que
continua a ser ela? Que aconteceu à pobre da rapariga? Evaporou-se no espaço?
A professora também
anda aflita. Pelo vistos no ano passado ensinou coisas erradas, mas não foi
culpa dela se agora mudaram tudo, embora a autora da gramática deste ano seja a
mesma que fez a gramática do ano passado. Mas quem faz as gramáticas pode dizer
ou desdizer o que quiser, quem chumba nos exames somos nós. É uma chatice.
Ainda só estou no sétimo ano, sou bom aluno em tudo excepto em português, que
odeio, vou ser cientista e astronauta, e tenho de gramar até ao 12º estas
coisas que me recuso a aprender, porque as acho demasiado parvas. Por exemplo,
o que acham de adjectivalização deverbal e deadjectival, pronomes com valor
anafórico, catafórico ou deítico, classes e subclasses do modificador, signo
linguístico, hiperonímia, hiponímia, holonímia, meronímia, modalidade
epistémica, apreciativa e deôntica, discurso e interdiscurso, texto, cotexto,
intertexto, hipotexto, metatatexto, prototexto, macroestruturas e
microestruturas textuais, implicação e implicaturas conversacionais? Pois vou
ter de decorar um dicionário inteirinho de palavrões assim. Palavrões por
palavrões, eu sei dos bons, dos que ajudam a cuspir a raiva. Mas estes
palavrões só são para esquecer. Dão um trabalhão e depois não servem para nada,
é sempre a mesma tralha, para não dizer outra palavra (a começar por t, com 6
letras e a acabar em “ampa”, isso mesmo, claro.)
Mas eu estou farto.
Farto até de dar erros, porque me põem na frente frases cheias deles, excepto
uma, para eu escolher a que está certa. Mesmo sem querer, às vezes memorizo com
os olhos o que está errado, por exemplo: haviam duas flores no jardim. Ou: a
gente vamos à rua. Puseram-me erros desses na frente tantas vezes que já quase
me parecem certos. Deve ser por isso que os ministros também os dizem na
televisão. E também já não suporto respostas de cruzinhas, parece o totoloto.
Embora às vezes até se acerte ao calhas. Livros não se lê nenhum, só nos dão
notícias de jornais e reportagens, ou pedaços de novelas. Estou careca de saber
o que é o lead, parem de nos chatear. Nascemos curiosos e inteligentes, mas
conseguem pôr-nos a detestar ler, detestar livros, detestar tudo. As redacções
também são sempre sobre temas chatos, com um certo formato e um número certo de
palavras. Só agora é que estou a escrever o que me apetece, porque já sei que
de qualquer maneira vou ter zero.
E pronto, que se
lixe, acabei a redacção - agora parece que se escreve redação. O meu pai diz
que é um disparate, e que o Brasil não tem culpa nenhuma, não nos quer impor a
sua norma nem tem sentimentos de superioridade em relação a nós, só porque é
grande e nós somos pequenos. A culpa é toda nossa, diz o meu pai, somos muito
burros e julgamos que se escrevermos ação e redação nos tornamos logo do
tamanho do Brasil, como se nos puséssemos em cima de sapatos altos. Mas, como
os sapatos não são nossos nem nos servem, andamos por aí aos trambolhões, a
entortar os pés e a manquejar. E é bem feita, para não sermos burros.
E agora é mesmo o
fim. Vou deitar a gramática na retrete, e quando a “setôra” me perguntar: Ó
João, onde está a tua gramática? Respondo: Está nula e subentendida na retrete,
“setôra”, enfiei-a no predicativo do sujeito.
João Abelhudo, 8º
ano, turma C (c de c…r…o, “setôra”, sem ofensa para si, que até é simpática).
Teolinda Gersão,
junho, 2012 (adaptado)
E esta, hein!?!
domingo, 27 de janeiro de 2013
Ser professor, hoje...
Os professores...
Achei por muito tempo que ia ser professor. Tinha pensado em
livros a vida inteira, era-me imperiosa a dedicação a aprender e não guardava
dúvidas acerca da importância de ensinar. Lembrava-me de alguns professores
como se fossem família ou amores proibidos. Tive uma professora tão bonita e
simpática que me serviu de padrão de felicidade absoluta ao menos entre os meus
treze e os quinze anos de idade. A escola, como mundo completo, podia ser esse
lugar perfeito...
Ver mais de liberdade intelectual, de liberdade superior, onde
cada indivíduo volta a encontrar o seu mais genuíno, honesto, caminho. Os
professores são quem ainda pode, por delicado e precioso ofício, tornar-se o
caminho das pedras na porcaria de mundo em que o mundo se tem vindo a tornar.
Nunca tive exatamente de ensinar ninguém. Orientei uns cursos breves, a muito
custo, e tento explicar umas clarividências ao cão que tenho há umas semanas.
Sinto-me sempre mais afetivo do que efetivo na passagem do testemunho. Quero
muito que o Freud, o meu cão, entenda que estabeleço regras para que tenhamos
uma vida melhor, mas não suporto a tristeza dele quando lhe ralho ou o fecho
meia hora na marquise. Sei perfeitamente que não tenho pedagogia, não estudei
didática, não sou senão um tipo intuitivo e atabalhoado. Mas sei, e disso não
tenho dúvida, que há quem saiba transmitir conhecimentos e que transmitir
conhecimentos é como criar de novo aquele que os recebe. Os alunos nascem
diante dos professores, uma e outra vez. Surgem de dentro de si mesmos a partir
do entusiasmo e das palavras dos professores que os transformam em melhores
versões. Quantas vezes me senti outro depois de uma aula brilhante. Punha-me a
caminho de casa como se tivesse crescido um palmo inteiro durante cinquenta
minutos. Como se fosse muito mais gente. Cheio de um orgulho comovido por haver
tantos assuntos incríveis para se discutir e por merecer que alguém os
discutisse comigo. Houve um dia, numa aula de história do sétimo ano, em que
falámos das estátuas da Roma antiga. Respondi à professora, uma gorduchinha
toda contente e que me deixava contente também, que eram os olhos que induziam
a sensação de vida às figuras de pedra. A senhora rejubilou. Disse que eu
estava muito certo. Iluminei-me todo, não por ter sido o mais rápido a
descortinar aquela solução, mas porque tínhamos visto imagens das estátuas mais
deslumbrantes do mundo e eu estava esmagado de beleza. Quando me elogiou a
resposta, a minha professora contente apenas me premiou a maravilha que era, na
verdade, a capacidade de induzir a maravilha que ela própria tinha. Estávamos,
naquela sala de aula, ao menos nós os dois, felizes. Profundamente felizes.
Talvez estas coisas só tenham uma importância nostálgica do tempo da meninice,
mas é verdade que quando estive em Florença me doíam os olhos diante das
estátuas que vira em reproduções no sétimo ano da escola. E o meu coração
galopava como se estivesse a cumprir uma sedução antiga, um amor que começara
muito antigamente, se não inteiramente criado por uma professora, sem dúvida
que potenciado e acarinhado por uma professora. Todo o amor que nos oferecem ou
potenciam é a mais preciosa dádiva possível. Dá-me isto agora porque me ando a
convencer de que temos um governo que odeia o seu próprio povo. E porque me
parece que perseguir e tomar os professores como má gente é destruir a nossa
própria casa. Os professores são extensões óbvias dos pais, dos encarregados
pela educação de algum miúdo, e massacrá-los é como pedir que não sejam capazes
de cuidar da maravilha que é a meninice dos nossos miúdos. É como pedir que
abdiquem de melhorar os nossos miúdos, que é pior do que nos arrancarem telhas
da casa, é pior do que perder a casa, é pior do que comer apenas sopa todos os
dias. Estragar os nossos miúdos é o fim do mundo. Estragar os professores, e as
escolas, que são fundamentais para melhorarem os nossos miúdos, é o fim do
mundo. Nas escolas reside a esperança toda de que, um dia, o mundo seja um
condomínio de gente bem formada, apaziguada com a sua condição mortal mas
esforçada para se transcender no alcance da felicidade. E a felicidade, disso
já sabemos todos, não é individual. É obrigatoriamente uma conquista para um
coletivo. Porque sozinhos por natureza andam os destituídos de afeto. As
escolas não podem ser transformadas em lugares de guerra. Os professores não
podem ser reduzidos a burocratas e não são elásticos. Não é indiferente ensinar
vinte ou trinta pessoas ao mesmo tempo. Os alunos não podem abdicar da
maravilha nem do entusiasmo do conhecimento. E um país que forma os seus
cidadãos e depois os exporta sem piedade e por qualquer preço é um país que
enlouqueceu. Um país que não se ocupa com a delicada tarefa de educar, não
serve para nada. Está a suicidar-se. Odeia e odeia-se.
Valter Hugo Mãe, Jornal
de Letras, 19/09/ 2012 (adaptado)
quarta-feira, 23 de janeiro de 2013
Que saudades, apesar de tudo!!!
O ensino era controlado e muito dirigido a todos os níveis, mas…
Imagem retirada do blogue Estado de Barrancos
quinta-feira, 17 de janeiro de 2013
Mestre vs ministro
O vocábulo "maestro"
vem do latim "magister" e
este, por sua vez, do advérbio "magis" que significa "mais"
ou "mais que". Na antiga Roma o "magister" era o que estava
acima dos restantes, pelos seus conhecimentos e habilitações. Era um mestre.
Por exemplo, um "magister equitum" era um
chefe de cavalaria, e um "magister militum" era um chefe militar.
Já o vocábulo "ministro" vem do latim "minister" e este, por sua vez do advérbio "minus"
que significa "menos" ou "menos que". Na antiga Roma o
"minister" era o servente ou o subordinado que apenas tinha habilidades
ou era jeitoso...
Como se vê, o latim explica a razão por que qualquer
imbecíl pode ser ministro, mas não um mestre!...
Silêncio(s)...
Um dia bateram-me à porta e anunciaram-me
que o governo tinha decidido cortar-me meio subsídio de Natal. Apesar de
inconstitucional, compreendi o sacrifício que o Governo me pedia.
Noutro dia bateram à porta do meu pai e
anunciaram-lhe que iam cortar meio subsídio de Natal. Apesar de considerar que
era um roubo, ainda admiti, porque o país estava em estado de emergência.
Depois bateram-me à porta e anunciaram que
me iam tirar dois meses de salário e dois meses de pensão ao meu pai. Depois da
estupefacção, resignação.
A 7 de Setembro, bateram-me à porta para me
anunciar que tiravam 7% do salário para dar 5,75% ao patrão e ficavam com os
trocos, em principio para os cofres da Segurança Social. Desta vez fiquei
indignado. Achei que estava a ser roubado e que estavam a transformar os
patrões em receptadores do dinheiro roubado.
Em reacção, corri para a rua para
protestar.
Bateram-me mais uma vez à porta e
informaram-me de que o ministro das finanças ia reescalonar as taxas de IRS, de
modo a torná-lo mais progressivo.
Imaginando que iam poupar os rendimentos
mais baixos e taxar fortemente os mais altos, pensei que o Governo, finalmente,
voltava ao trilho da lei.
Mas para surpresa minha, voltaram a
bater-me à porta para me ameaçarem com aumentos brutais no IMI. A minha
indignação transformou-se em ira e juntei-me ao movimento nacional de
resistentes ao pagamento do IMI.
Ainda mal refeito do choque do IMI,
bateram-me novamente à porta para me mostrarem nos jornais, em grandes
parangonas e cinco colunas, os novos escalões de IRS. Afinal aumentaram as
taxas dos rendimentos mais baixos, menos os dos mais altos e não criaram nenhum
escalão para os mais ricos. E a progressividade do rei dos impostos diminuiu. A
minha raiva subiu de tom e resolvi não mais voltar a votar estou preparado para
qualquer acção revolucionária que apareça. Ao fim e ao cabo eu o meu pai e a
minha família já não temos nada a perder.
(J. Nunes de
Almeida, Ericeira)
Na primeira noite, eles se aproximam e
colhem uma flor de nosso jardim. E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem, pisam
as flores, matam o nosso cão. e não dizemos nada.
Até que um dia, o mais frágil deles, entra
sozinho em nossa casa, rouba-nos a lua, e, conhecendo o nosso medo, arranca-nos
a voz da garganta.
E porque não dissemos nada, já não podemos
dizer nada.
Maiakovski,
poeta russo (1893-1930)
Primeiro levaram os negros, mas não me
importei com isso. Eu não era negro. Em seguida levaram alguns operários, mas
não me importei com isso. Eu também não era operário. Depois prenderam os
miseráveis, mas não me importei com isso. Porque eu não sou miserável. Depois
agarraram uns desempregados, mas como tenho meu emprego também não me importei.
Agora estão levando-me, mas já é tarde. Como eu não me importei com ninguém, ninguém
se importa comigo.
Bertold
Brecht (1898-1956)
Um dia vieram e levaram o meu vizinho que
era judeu. Como não sou judeu, não me incomodei. No dia seguinte, vieram e
levaram o meu outro vizinho que era comunista. Como não sou comunista, não me
incomodei. No terceiro dia vieram e levaram o meu vizinho católico. Como não
sou católico, não me incomodei. No quarto dia, vieram e levaram-me; já não
havia mais ninguém para reclamar?
Martin
Niemöller,(1892-1984) símbolo da resistência aos nazis
O que mais me preocupa não é nem o grito
dos violentos, dos corruptos, dos desonestos, dos sem carácter, dos sem ética. O
que mais me preocupa é o silêncio dos bons!!!
Martin
Luther King (1929.1968)
segunda-feira, 7 de janeiro de 2013
Conto de encantar
A Mariema tem 6 anos e vive muito longe de
mim, com terras e águas e florestas e países a separarem-nos. Mora num país
pequeno, que para a Mariema se resume a uma tabanca de palha, a um tapete de
ráfia, a muito pó, muitos percursos de terra batida, árvores de troncos finos e
grossos, animais que sorriem e outros que se zangam, cheiros de vários sabores,
pedrinhas, mangas, mandioca, um mar lindo de imenso, que é tanto, e meninos e
meninas descalços com cabelos desgrenhados. A mãe trabalha muito, vai para o campo
quando ainda não se fez dia e vem do campo quando já é noite. O pai tem uma
cara imaginada pela Mariema.
Ela salta e pula e suja todos os dias mais
um bocadinho o seu vestido azul bebé que está roto e que lhe dá pelos pés. Veio
de outra menina, de um outro país que ela imagina ser grande mas não sabe o que
mais lá dentro deve ter. Mariema queria vestir uma roupa igual à de algumas
meninas que vê passar, com um caderno debaixo do braço a caminho do saber. Quer
ser como elas e aprender a dar as mãos às letras. Chegou à idade de ir para a
escola, mas ainda ninguém se importou. Gostava de vestir a farda para ser
importante e ser importante para a Mariema é ser igual às outras meninas.
Já percebeu que existe um senhor mais
velho com quem, daqui a uns tempos, não muitos, irá ficar. Disseram-lhe que era
para tomar conta dela mas ouviu falar de casamento e só não sabe se as duas
coisas querem dizer o mesmo. Não quer partir com esse senhor de barbas brancas,
com costas curvadas e um cajado para não se sabe onde, mas também não quer
fugir antes que isso aconteça, porque lhe custa muito deixar a sua tabanca, o
seu bocado de terra, que fica sempre enorme de cada vez que inventa histórias e
passeia ao colo, a sua boneca Ary. A espreitar do seu vestido azul bebé, apenas
se vê um molho de fios castanhos, restos de plantas, que fazem de conta ser os
cabelos da Ary. O corpo, não existe, mas também não faz mal, porque a Mariema
sabe com são, tal e qual, as pernas, os braços e até a cara expressiva da sua
boneca. Ah! E o vestido da Ary é cor-de-rosa e dá-lhe pelos joelhos.
Há pouco tempo e durante uns dias, Mariema
teve uma forte dor de cabeça, diarreia, febre e ouvia vozes. Nessa altura, viu
uma luz tão clarinha que pensou que iria voar. Mas não, afinal, uns senhores
grandes chegaram à sua tabanca e levaram-na. Fizeram-lhe uma magia qualquer
que, no momento em que se preparava para levantar voo, o rosto da sua mãe
apareceu-lhe à frente, muito nítido, a sorrir. Estas dores já as tinha sentido
antes, duas vezes. Uma senhora velhinha, sábia, que mora na tabanca do lado, e
que costuma fazer fogueiras e entoar cânticos estranhos enquanto chora e ri,
contou-lhe, um dia, que essas febres com dores de cabeça e de barriga, eram por
culpa dos mosquitos e de outras coisas complicadas para gente crescida que
agora não lhe podia explicar. Alguns meninos têm umas redes à volta do local
onde dormem para se protegerem, mas essas redes não chegam a todos. "E
chegarão para todos?", perguntou-se Mariema, para dentro de si.
Aliás, falar para dentro de si, é um dos
seus passatempos preferidos e fica tão distraída que nem repara quando o sol e
a lua trocam de lugar, sem amuarem. Conversa consigo sobre o seu pequeno mundo,
muito colorido com as cores das machambas, das frutas, dos vegetais, das
especiarias que a mãe usa nos cozinhados que faz à entrada da tabanca, com
pauzinhos e lume. Conversa sobre o seu maior segredo que não conta a ninguém,
nem mesmo às suas amigas com quem vai apanhar sementes e com quem se perde, de
propósito, para sentirem um medo pequenino dentro das barrigas. Perdem-se e
voltam a encontrar-se, regressando a casa pelo rasto do caminho que desenharam
com uma ripa, na terra, levantando a poeira que cobre os seus pés descalços. Já
pensou várias vezes em partilhar o seu segredo com a Rimaly ou a Nonô, mas
prefere só contar, por enquanto (enquanto o tempo de criança durar), à sua
amiga de colo, a Ary. Ela sabe todos os seus segredos, mesmo o gigante que
existe desde que se lembra e lembra-se desde que passou a existir. Foi um dia
muito especial, o dia em que o segredo gigante entrou na sua pequena vida.
Mariema tem medo de que, ao partilhá-lo com as outras pessoas, grandes e
pequenas, ele possa fugir-lhe e nunca mais o voltar a ver.
Tem medo de poucas coisas. Que se lembre
com força, tem medo de quatro: que o segredo gigante fuja; que a noite escura
traga algum desses homens feios que fazem coisas ainda mais feias, detestáveis,
às crianças e mulheres; tem medo de voltar a sentir aquela dor vivida durante o
tal ritual que parece normal para todos à sua volta e que dizem existir para o
bem de todas as meninas, mas cuja dor foi tão insuportável, que todos os dias é
como se a sentisse outra vez, durante uns breves momentos. E tem ainda medo de
nunca chegar a aprender a dançar com os números e as letras, e que, por isso,
quando for grande, não consiga curar todos os meninos e meninas das dores que
os mosquitos provocam (os mosquitos e as outras coisas estranhas de que falava
a velhinha sábia ...).
Guarda-o, então, só para si e espera não
ser como aquelas pessoas que falam enquanto dormem, porque, como partilha o
mesmo tapete de ráfia com a mãe, ela poderá ouvir e contar à aldeia, ao país,
ao mundo. E, depois, o que será de Mariema sem o seu segredo gigante?
Só que o dia mais esperado de todos chegou
finalmente, o dia em que, muito cedo, de manhãzinha, um grupo de homens e
mulheres com ar simpático se aproximou das tabancas ali à volta. Estavam à
procura de crianças com idade de irem para a escola. Mariema ouviu a palavra
poderosa, que a faz suspirar e saiu a correr do seu cantinho. Disse que sim e
que já não era sem tempo! Precisava com urgência de ir para a escola e ser
igual a tantas outras meninas e meninos que falam línguas diferentes mas que já
podem mostrar, sem receios, os seus segredos gigantes. Era o que Mariema mais
queria.
Decide falar para dentro de si e para a
sua boneca Ary, (porque só assim é mas fácil controlar o medo):
"Deverei eu agora contar o meu
segredo?"
Seguiram-se segundos de silêncio muito
prolongados, com o coração a bater a grande velocidade como aquela a que
circulava o vento que levantava as folhas do chão e que, normalmente, não se
fazia sentir assim.
O silêncio foi interrompido abruptamente,
porque de forma atabalhoada, as palavras ganharam uma vida só delas, e livres,
agruparam-se, saindo da boca da Mariema e fazendo a seguinte revelação: "O
meu segredo gigante chama-se Livro, tenho-o desde sempre, porque o sempre é
muito e nunca deixei que ninguém o visse. Está escondido debaixo da terra e eu
não sei o que lá diz, mas sei que me faz acreditar que quando o conseguir ler,
irei voar."
Depois disto, passou-se uma vida inteira.
A Mariema estudou e estuda ainda, todos os
dias um bocadinho. Anda pelo mundo, a tentar garantir que as crianças de todas
as cores possam sentar-se nos bancos de escola de todos os géneros e feitios.
Catarina Furtado, Revista VISÃO, 20/12/2012
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