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quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Quem?

(n. 1955)

Exemplar único em Portugal: Peito Grande, Ancas Largas (Lisboa: Ulisseia, 2007).

Diziam que era o Kafka à Beira-Mar, mas enganaram-se (por pouco) nas coordenadas geográficas, saiu o suposto Kafka das letras chinesas.

O seio rosado de Virgem Maria e a terminação lombar desnuda do rechonchudo Menino Jesus vistos pelo auto-reprimido de Shandong na abertura do seu único romance editado em Portugal:   
«From where he lay on the brick-and-tamped-earth sleeping platform, his Kang, Pastor Malory saw a bright red beam of light shining down on Virgin Mary’s pink breast and on the pudgy face of the bare-bottomed Blessed Infant in her arms.»
Mo Yan, Big Breasts, Wide Hips (New York: Arcade, 2004; trad. Howard Goldblatt.)
Sinais dos tempos: A Academia Sueca dobra-se ao poderio chinês e ao seu heteróclito Socialismo de Mercado. É histórico: o autor, com a sua profissão de fé mutista, instado a comentar o Prémio Nobel da Paz atribuído ao seu colega dissidente Liu Xiaobo disse que "nada tinha a dizer", da mesma forma que uns anos antes, transcreveu mudamente, com uma fé dilacerante, um dos muitos discursos do Educador do Povo para um livro comemorativo. Mao rejubilaria. Por cá, o MRPP renovou, decerto, a sua esperança no levantamento das vítimas da fome, como se sabe, completamente extinta na dita República Popular desde a derrota, em 1949, de Chiang Kai-shek. 

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Liu Xiaobo

Cuba, Venezuela e quejandos, os defensores do australiano Assange – o pai da bufaria internacional, que actua sob a capa da liberdade de expressão, pondo milhões de vidas em risco –, não se farão representar na cerimónia, que hoje decorre em Oslo, de atribuição do Prémio Nobel da Paz 2010 ao dissidente chinês:

Liu Xiaobo
(n. 1955)
A minha homenagem será feita com o meu silêncio e com as palavras dos outros. Paul Auster, curiosamente, disse quase tudo no romance que escreveu durante o ano de 2009, a propósito da tirania do torcionário regime comunista de Pequim:

«O crime de Liu: ter sido um dos autores de um documento intitulado Carta 08, uma declaração apelando a reformas políticas, a mais amplos direitos humanos, e ao fim do governo de partido único na China.
»Liu Xiaobo começou como crítico literário e como professor na Universidade de Pequim e tornou-se uma figura tão importante que viria a trabalhar como professor convidado numa série de instituições estrangeiras, em particular a Universidade de Oslo e a Columbia em Nova Iorque, (…) e o activismo de Liu remonta a 1989, o ano dos anos, o ano em que o muro de Berlim veio abaixo, o ano da fatwa, o ano da Praça Tiananmen, e foi precisamente na Primavera de 1989 que Liu deixou o seu posto na Columbia e regressou a Pequim, onde fez uma greve da fome (na Tiananmen) de apoio aos estudantes, e defendeu métodos não violentos de contestação a fim de que não houvesse mais derramamento de sangue. Passou dois anos na prisão por causa disso, e, depois, em 1996, foi condenado a três anos de reeducação pelo trabalho por ter sugerido que o governo chinês encetasse negociações com o Dalai Lama. Continuou a ser importunado pelas autoridades e, desde então, tem vivido sob vigilância da polícia. A sua última detenção ocorreu a 8 de Dezembro de 2008, por coincidência ou não, um dia antes do sexagésimo aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Tem estado detido num local desconhecido, sem direito a um advogado, sem material para escrever, sem nenhuma possibilidade para comunicar com ninguém. O facto de a mulher o ter visitado na noite de Ano Novo significará uma viragem importante, ou será apenas um pequeno acto de misericórdia sem quaisquer consequências no desfecho do caso?»
Paul Auster, Sunset Park, pp. 175-176 [Alfragide: Asa, 1.ª edição, Outubro de 2010, 231 pp; tradução de José Vieira de Lima; obra original: Sunset Park, 2010.]

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

O Escravo, por Llosa

Com a descrição da aculturação forçada e o desbaste culpável e criminoso da personalidade intrínseca ao ser humano, desde que este solta o primeiro gemido neste mundo, o Nobel peruano dá início à sua carreira literária na narrativa longa de ficção, com o excepcional romance de 1962 La ciudad y los perros (A Cidade e os Cães). Uma vertiginosa alegoria. Los perros para Mario Vargas Llosa, são os cadetes internados no Colégio Militar Leoncio Prado na cidade de Lima, um microcosmos das práticas torcionárias durante o apogeu dos movimentos repressivos e a expansão dos seus ideais nas trevas da Guerra Fria, que, em nome de uma ideologia, coarctaram toda a sensibilidade em nome de um colectivo amorfo e obediente perante um directório cujos interesses se subsumem ao poder e ao seu exercício indiscriminado e cruel.
O Escravo que refiro no título do texto, é a alcunha do infeliz Ricardo Arana – talvez o personagem mais marcante e pungente de todo o memorável romance (já o li há anos e continua a marcar o meu pensamento, e quiçá parte do meu comportamento) –, o representante de uma minoria, mesmo entre os “perros” (ou os “cães”), que se vai autodestruindo pelo consentimento de aniquilação da sua vontade perante o poder dos outros, pela submissão dos seus sentimentos que enformam a sua personalidade.
Eis um trecho inesquecível deste romance, onde se retrata O Escravo e a sua sede de liberdade que pode assumir-se numa miríade de maneiras, tantas quantas as formas de pensar, sentir e agir de cada indivíduo – esta é uma alegoria de um mundo de repressão:
«Podia suportar a solidão e as humilhações que conhecia desde menino e que só feriam o seu espírito: o horrível era estar fechado, essa grande solidão exterior que não escolhera, que alguém lhe atirara para cima, como uma camisa-de-forças. Estava em frente ao quarto do tenente, no entanto, não levantava a mão para tocar. Sabia, contudo, que ia fazê-lo, tinha demorado três semanas a decidir-se, já não tinha medo, nem angústia. Era a sua mão que o atraiçoava: permanecia quieta, fraca, pegada às calças, morta. Não era a primeira vez. No Colegio Salesiano chamavam-lhe “boneca”: era tímido e tudo o assustava. “Chora, chora, boneca”, gritavam os seus companheiros no recreio, rodeando-o. Ele retrocedia até que as suas costas encontravam a parede. As caras aproximavam-se, as vozes eram mais altas, as bocas dos meninos pareciam focinhos dispostos a ferrá-lo. Punha-se a chorar. Um dia disse para si: “Tenho de fazer qualquer coisa.” Em plena aula desafiou o mais valente do ano: esquecera o seu nome e cara, os seus punhos certeiros e o seu ofegar. Quando se viu frente a ele, no canto da lixeira, encerrado dentro de um círculo de espectadores ansiosos, também não sentiu medo, nem sequer excitação: apenas um abatimento total. O corpo não respondia, nem se esquivava aos golpes; esperou que o outro se cansasse de lhe bater. Era para dar castigo a esse corpo cobarde e transformá-lo que se havia esforçado para entrar no Leoncio Prado: por isso tinha suportado esses vinte quatro largos meses. Agora já não tinha esperança; nunca seria como o Jaguar, que se impunha pela violência, nem sequer como Alberto, que podia desdobrar-se e dissimular para que os outros não fizessem dele uma vítima. A ele conheciam-no logo, tal como era, sem defesas, débil, um escravo. Só a liberdade lhe interessava agora para manejar a sua solidão à vontade, levá-la a um cinema, encerrar-se com ela em qualquer parte. Levantou a mão e bateu três vezes à porta.»
Mário Vargas Llosa, A Cidade e os Cães, pág. 106. [Mem Martins: Europa-América, 1988, 302 pp; tradução de José Eduardo Mendonça; obra original: La ciudad y los perros, 1962.]
Decorridas mais de doze horas após o anúncio, ainda persiste na minha mente um forte sentimento de exultação e de comprazimento: hoje, a Academia Nobel fez finalmente justiça. Será para manter? No início do próximo Outono veremos se o lixo ideológico de outros anos foi definitivamente expurgado daquelas mentes e reciclado em substância exclusivamente literária. Saiu-se do círculo de uma intelligentsia deslumbrada pelo exercício sedutor do poder, mesmo que arbitrário, iníquo e criminoso. Conceder o Nobel a Llosa foi uma forma de homenagear os oprimidos por Trujillo ou por Castro, à direita ou à esquerda, os filhos esmagados pelo peso dos ditadores deste mundo. O anúncio da Academia Sueca hoje de manhã sancionou esse grito de liberdade, antes que fosse tarde de mais. Llosa tem 74 anos e continua jovem e enérgico a escrever sem rodeios através da «sua cartografia das estruturas de poder e imagens incisivas da resistência, da rebelião e da derrota do indivíduo.»

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Prémio Nobel da Literatura 2010

Os 18 vigorosos membros (com uma média de idades a rondar os 72 anos) da Academia Sueca (fundada em 1786 pelo rei sueco Gustavo III) elegeram este ano:

(n. 1936, Arequipa, Peru)
FINALMENTE! Fez-se justiça ao mais brilhante escritor latino-americano vivo. 
(Llosa, apesar de ser um dissidente da esquerda radical, deverá seguramente participar no “grande diálogo da Literatura”, critério em nada abstracto para a atribuição de um prémio com esta dimensão, com forte impacto não só nos meios culturais internacionais, interferindo com o orgulho de nações, como também na vertente económico-financeira das empresas que operam no suficientemente rentável mercado editorial. García Márquez estará, decerto, a caminho de Havana para chorar no ombro amigo do fidel ditador.)
Para mais informações, ler aqui artigo em permanente actualização.
Os meus preferidos: A Cidade e os Cães (La ciudad y los perros, 1962); A Casa Verde (La casa verde, 1966); Os Cadernos de Dom Rigoberto (Los cuadernos de don Rigoberto, 1997); A Tia Julia e o Escrevedor (La tía Julia y el escribidor, 1977); A Festa do Chibo (La Fiesta del Chivo, 2000) e até, o recente e brutal, e não menos soberbo, Travessuras da Menina Má (Travesuras de la niña mala, 2006).

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Cambridge em Alta

Depois de, pela primeira vez, ter sido considerada a melhor universidade do mundo – ocupou o 1.º lugar em 2010 no certificado ranking da QS, onde a eterna rival Oxford desceu uma posição para 6.º lugar, e destronando Harvard, a habitual n.º 1 –, acabou de ver um dos seus mais ilustres académicos ser reconhecido com o Prémio Nobel da Medicina, anunciado hoje – critério (número de académicos galardoados com o Nobel) que tem um forte peso na elaboração da listagem.
Eis, metonimicamente, o pai dos “bebés proveta”:
Robert G. Edwards
(n. 1925, Manchester, Reino Unido)

domingo, 3 de outubro de 2010

Nobel da Literatura 2010 – anúncio

É já na próxima quinta-feira, dia 7 de Outubro, pelo meio-dia (hora de Lisboa), que será anunciado o 107.º vencedor do Prémio Nobel da Literatura, na sua 103.ª edição desde que começou a ser atribuído no primeiro ano do século XX.
Como tem sido hábito aqui neste blogue, tentar-se-á dar notícia do laureado em cima do acontecimento, isto é, se a rede, normalmente congestionada na ocasião, o permitir. É que os assuntos para-literários também são notícia, embora desprovidos da arte e intelectualidade superiores que os zelosos literatos (patrulheiros) adoptam nos seus comportamentos públicos, cuja pulsão snobenta conduz ao desprezo daqueles que se dedicam a este tipo de jogos florais. Pues que, a mí me encantan los juegos florales.
Outra pequena nuance ou exercício de desperdício de palavras comummente associados a esta ocasião, consiste em verificar as probabilidades atribuídas a autores consagrados pelas casas de apostas – no caso do Nobel da Literatura, já se tornou tradição citar a tabela da casa inglesa Ladbrokes, que em 2006 acertou em cheio no autor laureado, o turco Orhan Pamuk. Assim sendo, confiramos as probabilidades retiradas da tabela de apostas publicada hoje dos 15 nomes mais prováveis a arrecadar o Nobel da Literatura:

1) Tomas Tranströmer (n. 1931; Suécia), com 4/1
2) Haruki Murakami (n. 1949; Japão), com 7/1
3) Ko Un (n. 1933; Coreia do Sul), com 8/1
--- Adonis (n. 1930; Síria)
5) Adam Zagajewski (n. 1945; Ucrânia/Polónia), com 10/1
6) Antonio Tabucchi (n. 1943; Itália), com 12/1
7) Les Murray (n. 1938, Austrália), com 13/1
8) Yves Bonnefoy (n. 1923; França), com 15/1
--- Assia Djebar (n. 1936; Argélia)
--- Thomas Pynchon (n. 1937; Estados Unidos)
11) Joyce Carol Oates (n. 1938; Estados Unidos), com 18/1
--- Margaret Atwood (n. 1939; Canadá)
--- Alice Munro (n. 1931; Canadá)
--- A.S. Byatt (n. 1936; Reino Unido)
--- Michel Tournier (n. 1924; França)
Na lista surge também António Lobo Antunes (n. 1942) com uma probabilidade associada de 35/1.
Entre os 72 nomes constantes da lista, para além dos referidos anteriormente, em que apenas Thomas Pynchon e Margaret Atwood me deixam entusiasmado, há 8 (com Pynchon e Atwood, são 10) que pertencem ao clube restrito da devoção literária aqui da casa e que considero merecerem o Nobel:
  • Philip Roth (20/1);
  • Don DeLillo (22/1);
  • Mario Vargas Llosa (25/1);
  • Milan Kundera (25/1);
  • Umberto Eco (45/1);
  • Ian McEwan (50/1);
  • John Banville (66/1);
  • Paul Auster (66/1).

Há, no entanto, alguns outros autores, para além dos 10 atrás referidos e de ALA, cuja atribuição do Nobel de 2010 não me deixaria, de forma alguma, nada desagradado, como são os casos de Munro, Byatt, Cormac McCarthy, Magris, Oz, Handke, Carlos Fuentes, Modiano, Javier Marías, Barnes, Atiq Rahimi ou o notável serôdio norte-americano William H. Gass.
Mencionei 23 autores em 72 que constam da listagem da Ladbrokes e tenho, desde já, uma certeza: nenhum deles irá vencer, ou porque não participam no diálogo da cultura universal, ou porque são de direita, ou mesmo de esquerda, mas americanos, ou até porque os seus nomes são excessivamente conhecidos e os seus livros vendáveis (segundo os critérios obscuros da Academia Sueca).
Em memória de Henry James, Pessoa, Proust, Joyce, Woolf, Musil, Nabokov, Walser, Borges, Bernhard e Updike.   

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

As pulsões de Augie March

Bellow, Saul Bellow, não me canso de repetir nestas páginas que ninguém lê, a minha intensa, por vezes pungente, admiração por este artesão da palavra que, em 1976, recebeu da Academia Sueca o Prémio Nobel da Literatura e, segundo confessam as fontes subterrâneas que vogam acima das ratazanas da Academia – e permitam-me esta inversão metafórica de papéis no teatro social, justificada pela repugnância que tais seres me provocam a cada Outubro –, estava destinado ao para sempre injustiçado Borges, que, segundo o próprio, nasceu com a sina de nobelizado e morreu sem que tal distinção lhe fosse atribuída. Bellow poderia esperar, e não foi tão-pouco o prémio que o marcou como um gigante da literatura universal, atribuído já o judeu americano-cannuck era sexagenário, porquanto aquele já havia publicado as suas melhores obras – se exceptuarmos a sagração da Literatura materializada no romance Morrem Mais de Mágoa (More Die of Heartbreak), publicado onze anos após o Nobel.
Detenho-me em Augie e na irrepreensível tradução que Salvato Telles de Menezes fez para a Quetzal – corajosa editora que imprimiu três mil exemplares de uma obra-prima a que apenas, estou seguro, uma centena de pessoas neste país atribuirá algum valor –, e no momento em que o nosso “herói”, acompanhando Mrs. Renling, a sua patroa e pretensa mentora milionária da alta sociedade de Chicago, numa deslocação à estância de repouso de Benton Harbor, num hotel de luxo bordejando as margens do rio St. Joseph, no ponto em que águas deste se fundem com as do lago Michigan, se apaixona arrebatadamente pela intocável e inacessível Esther Fenchel, num convencimento de sucesso a não ser que a sua pátina de «credenciais forjadas» por um jogo de aparências abrisse uma brecha e deixasse ver o mundo de pobreza que se escondia por baixo:
«Eu trabalhava, com o coração nas mãos, em prol do maior êxito possível nestes limites, como um impostor. Passava horas preparando-me para ser uma petição viva. Por meio de uma concentração muda e de uma batalha para atrair as atenções. A única maneira que consegui conceber, na minha paixão pitoresca e carregada de sangue. Porém, da mesma forma que um prenúncio de praga pode ser sentido no vento brando que faz tremular bandeiras e na beleza de um porto – uma cena de paz activa e segura –, talvez pudesse, apesar de toda a minha aparência equilibrada de quem vive circunstâncias normais e tranquilas, ter passado o tom dos meus pensamentos pelo ar – na praia, no relvado enfeitado de flores, no grande espaço aberto da sala de jantar branca e dourada –, e estes pensamentos eram que poderia sujeitar-me a ser enforcado nos cabelos da rapariga – coisas desta ordem. Sonhava pesadamente com os lábios dela, com as mãos, seios, pernas, entre pernas. Ela não podia baixar-se para apanhar uma bola no campo de ténis – eu parado e hirto, com um foulard com cavalos castanhos sobre um fundo verde engenhosamente enfiado numa argola de madeira talhada à mão que Renling tornara popular nessa estação em Evanston –, não podia testemunhar isto, dizia eu, sem sentir uma pontada de amor e adoração nas minhas entranhas pela curva das suas ancas, a gloriosa forma virginal do seu traseiro, o seu macio e protegido segredo. Onde ser admitido com amor seria o endosso do mundo, de que não era a infecunda confusão que distantes temores secos sugeriam e sussurravam, mas necessário, justificado, a validade da justificação comprovada pelo júbilo. Que se aceitasse, aprovasse, beijasse, usasse as suas mãos em mim, me deixasse tocar no pó de barro do campo de ténis colado às suas pernas, o leve suor, a sujidade e o suor íntimos, livrar-me-ia do mal da falsidade – mostraria que não havia nada que fosse falso, ofensivo ou leviano que não pudesse ser corrigido!»
Saul Bellow, As Aventuras de Augie March, pp. 192-193. [Lisboa: Quetzal, Setembro de 2010, 712 pp; tradução de Salvato Telles de Menezes; obra original: The Adventures of Augie March, 1953.]
É Bellow no seu melhor. Um parágrafo inteiro de puro deleite e arrebatamento literário, em que uma palavra a mais ou a menos estragaria a obra de arte subsumida no bombardeamento de um feixe de sentimentos que perpassam pela mente pré-adulta de Augie.
Também a Literatura (assim grafada) tem os seus momentos em que a síndrome de Stendhal se pode manifestar através do cadinho dos seus sintomas pela arte etérea que alguns dos seus artesãos apõem aos seus escritos: a perfeição, craftsmanship (perde toda a sua potência na tradução).
Por fim, a recusa e o vórtice que transforma as pulsões num buraco negro aglutinador da esperança: «O sangue fugiu-me da cabeça, do pescoço, dos ombros, e desmaiei pura e simplesmente.» (pág. 197)

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Prémio Nobel da Paz 2009 (act. – “desvarios asininos”)

Este prémio fica-lhe tão bem...



Barack Hussein Obama
(Honolulu, Havai, 4 de Agosto de 1961)

Nota: ver esta minha curta, mas significativa, manifestação de vontade a 3 de Novembro de 2008. Para mais informações, consultar a página oficial do Prémio Nobel da Paz deste ano ou a notícia aqui publicada em português (com vídeo).


(...)
O! thus be it ever, when freemen shall stand
Between their loved home and the war's desolation!
Blest with victory and peace, may the heav'n rescued land
Praise the Power that hath made and preserved us a nation.
Then conquer we must, when our cause it is just,
And this be our motto: 'In God is our trust.'
And the star-spangled banner in triumph shall wave
O'er the land of the free and the home of the brave

[actualização] Numa coisa Sócrates tem razão, e foi por diversas vezes referida nos debates quinzenais na Assembleia da República, o sectarismo primário (passe o pleonasmo) dos agentes políticos da esquerda portuguesa mina, à partida, ou inviabiliza, por cautela, qualquer tipo de transferência (por integração ou por cessão) de parte da responsabilidade governativa para os partidos que representam, na tentativa de prossecução de uma política global equilibrada e coerente na condução dos destinos do país.
Se mais palavras faltassem – e suponho que a sua intensidade no parágrafo anterior não peca por escassez –, complementá-las-ia com as declarações hoje proferidas pelo secretário-geral dos PCP e do coordenador do Bloco de Esquerda – e neste último caso sempre achei curiosa esta denominação eufemística para o chefe supremo, por quem vitupera aqueles que designam os seus “trabalhadores” como “colaboradores” – a propósito da atribuição do Prémio Nobel da Paz ao presidente Barack Obama. E o que se me afigura de mais grave em ambas as declarações, não se prende com a useira demagogia de pendor esquerdista (também a há a rodos na direita), nem tão-pouco com uma repentina soberba pela derrogação do vituperado “politicamente correcto”, mas com a ostensiva pobreza de espírito revelada até à náusea, bem demonstrativa da pequenez de políticos que, ao arrepio do que acontece em qualquer país dito civilizado, obtiveram em conjunto 1.005.056 de votos (cerca de 17,7% sobre o total de votantes) e 31 mandatos na A.R. nas eleições legislativas de 27 de Setembro último. Jerónimo – que vê uma espécie de democracia em países como a Coreia do Norte, Cuba ou até a Venezuela – e Louçã – o nacionalizador verde eufémia – alinharam as suas vozes com gente bem reputada no panorama político internacional: Hugo Chávez, Zabihullah Mujahid (porta-voz dos talibãs afegãos), ou os moderados dirigentes do Hamas.
De todo o mundo surgiram vozes de exultação. Para além das manifestações de regozijo dos tradicionais aliados ocidentais ou ocidentalizados (tanto de esquerda, como de direita), houve, para citar alguns exemplos, demonstrações de clara satisfação de Nelson Mandela, Mikhail Gorbachov, Muhammad Yunus ou de Wangari Maathai (activista política queniana).

Já bem perguntava o outro, o pai inspirador destes desvarios asininos: Que Fazer?

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Nobel da Literatura 2009


Herta Müller
(Niţchidorf, Roménia em 17 de Agosto de 1953 – actualmente, cidadã alemã)
«…quem, com a consistência da sua poesia e a franqueza da sua prosa, retrata o panorama dos desapossados.» palavras das Academia Sueca [tradução: AMC]
Müller foi uma das mais activas vozes na literatura mundial que combateu feroz e frontalmente o regime despótico e torcionário do líder comunista da Roménia (entre 1967 e 1989) Nicolae Ceausescu e a sua impiedosa guarda pretoriana, a Securitate. Fugiu para Alemanha Federal em 1987. Actualmente, vive em Berlim.

Por enquanto, a autora alemã dispõe de 2 obras publicadas em Portugal (por ordem cronológica): O homem é um grande faisão sobre a terra (Cotovia, 1993; obra original: Der Mensch ist ein grosser Fasan auf der Welt, 1986); e A terra das ameixas verdes (Difel, 1999; obra original: Herztier, 1994).

Nota: para mais informações consultar a página oficial do Prémio Nobel da Literatura e, entre outros, este artigo do jornal Público.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Dia 8 – Nobel da Literatura 2009 (act.)


É já amanhã ao meio-dia (hora de Lisboa) que o emproado secretário permanente da Academia Sueca, Horace Engdahl (ao lado na imagem, com o seu habitual fácies efusivo, homem irradiador do mais aconchegante calor humano), anunciará, no seu inglês arrevesado, o vencedor do Prémio Nobel da Literatura de 2009.

Segundo a listagem deste ano da casa de apostas britânica Ladbrokes, o autor israelita Amos Oz lidera a lista dos prováveis laureados, lista que inclui nas dez primeiras posições quatro escritores que “não participam no diálogo da literatura mundial”, sinónimo de “norte-americanos” ou de “estado-unidenses”:

1.º) Amos Oz (Israel) - 3/1
2.º) Joyce Carol Oates, (EUA), e Philip Roth (EUA) - 5/1
4.º) Herta Müller (Alemanha) - 6/1
5.º) Thomas Pynchon (EUA) - 7/1
6.º) Haruki Murakami (Japão), e Mario Vargas Llosa (Peru) - 9/1
8.º) Claudio Magris (Itália), Don DeLillo (EUA) e Thomas Tranströmer (Suécia) - 12/1

De notar que António Lobo Antunes figura na lista deste ano, com uma probabilidade de 100/1 – fazendo companhia a nomes como Cormac McCarthy, David Malouf, McEwan, Banville, Littell, Julian Barnes, Tournier, Modiano e Auster. Se o homem ganha, ninguém o cala…
Pessoalmente, gostaria que daquela lista de dez nomes saísse DeLillo como vencedor, não me desagradando, no entanto, que o prémio fosse atribuído a Vargas Llosa (se mais faltasse, irritar García Márquez deixar-me-ia à beira da felicidade) ou então, a Roth ou a PynchonUpdike já era; Auster tem de consolidar a sua obra e apesar de não ser um bestseller, tem um conjunto de fãs incondicionais, e era o que faltava ceder a lobbies de putativos literatos pós-modernistas; Kundera também não deve participar no diálogo da literatura mundial (é um dissidente do comunismo…); com Rushdie há o medo dos árabes; Eco escreveu romances históricos, apesar de serem brilhantes, talvez ofusquem a sua notável obra ensaística; McEwan e Barnes sofrem do mal (acima identificado) de Auster, mas vencendo poderiam servir como uma vingança esquerdista (moderada) às posições assumidas por Martin Amis que, de uma vez por todas, desapareceu das listas de favoritos.

Prognósticos (face à tendência Grass, Pinter, Lessing, Fo, Gordimer, Saramago, Coetzee):
  • Ernesto Cardenal, John Berger (não incluído na lista), Tabucchi ou Handke (apesar de brilhante, esse grande democrata miloseviquiano);
  • Joyce Carol Oates, para fugir à questão política, dar o braço a torcer à melhor literatura do mundo (a norte-americana), embora dissimulado por um activismo feminista ou pela “condição das mulheres” (frase que integrará a curta descrição justificativa na atribuição do prémio).

A ver vamos.

[rectificação] *O supracitado Horace Engdahl (ocupante da 17.ª cadeira da Academia Sueca desde 1997) deixou, felizmente, de desempenhar o cargo de Secretário Permanente da Academia Sueca no final do mês de Maio deste ano. Engdahl foi substituído pelo historiador e ensaísta Peter Englund (ocupante da 10.ª cadeira da Academia Sueca desde 2002), o que pode dar um sinal de abertura à literatura norte-americana, que já não é galardoada com o Nobel desde 1993, quando o prémio foi atribuído a Toni Morrison. Assim, os prognósticos aqui postados foram efectuados na presunção de Engdahl ainda como Secretário Permanente, que, em abono da verdade, na questão primordial da atribuição do prémio apenas contribuía com 1/17 dos votos (a Academia Sueca é originariamente composta por 18 membros – 18 cadeiras – mas, neste momento, a cadeira n.º 1 está vaga), logo a política seguida até Junho de 2009 poder-se-á manter. [Tomei conhecimento da substituição de Engdahl por Englund no blogue Bibliotecário de Babel.]

domingo, 28 de dezembro de 2008

O Nobel e... a vaselina

«De repente, assalta-me uma ideia!… e se eles me dessem, a mim, o prémio Nobel?… seria uma ajuda formidável para o gás, as contribuições, as cenouras!… mas os palermas lá de cima não mo vão dar! nem o rei deles! dão-no a todos os panascas que se possa imaginar!… sim, os que mais vaselina usam em todo o planeta!… claro! está tudo decidido!… a si basta-lhe ter visto Mauriac, de casaca, inclinando-se como uma dobradiça, encantado, concordante, em cima do pequeno palanque… nada constrangido!… nada engasgado!… “oh! como é belo, gordo, o vosso Nobel!” dizia eu ontem a alguém… e esse alguém insurgia-se! “então! mas Nimier propõe-no a si!… ingrato!… você não leu? só precisa de um pouco de coragem!… escreva-nos outra Viagem e eles resolvem tudo!…” eu posso ter a minha opinião… pessoalmente, não acho a Viagem assim tão divertida…»
Louis-Ferdinand Céline, Castelos Perigosos, p. 43
[Lisboa: Ulisseia, Setembro de 2008, 362 pp.; tradução de Clara Alvarez; obra original: D’un château l’autre, 1957.]

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

O Nobel ficou em França

Depois da expectativa, quiçá deliberadamente criada pelo inefável Secretário permanente da Academia Sueca, eis o Prémio Nobel da Literatura de 2008:

J.M.G. Le Clézio


Jean-Marie Gustave Le Clézio
(n. 1940, Nice, França, a 13 de Abril)


«Autor de novas paragens, aventura poética e êxtase sensual, explorador de uma humanidade mais além e subjacente à civilização dominante.» [tradução: AMC]


Obras de J.M.G. Le Clézio editadas em Portugal:

  • O Processo de Adão Pollo (Le Procès-verbal, 1963), obra editada pela Europa-América - 1.ª obra do autor, vencedora do prestigiado prémio literário francês Renaudot;
  • A febre (La fièvre, 1965), obra editada pela Ulisseia – contos e narrativas;
  • Índio branco (Haï, 1971), obra editada pela Fenda;
  • Deserto (Désert, 1980), obra editada pela Dom Quixote;
  • O caçador de tesouros (Le chercheur d'or, 1985), obra editada pela Assírio & Alvim;
  • Estrela errante (Étoile errante, 1992), obra editada pela Dom Quixote;
  • Diego e Frida (Diego et Frida, 1995), obra editada pela Relógio D'Água – não-ficção, biografia sobre a relação amorosa tempestuosa da pintora mexicana Frida Kahlo e o muralista mexicano Diego Rivera.

Nota: O Eduardo acertou em cheio e desperdiçou o "14/1" da casa de apostas britânica Ladbrokes (o Da Literatura contém uma mini-biografia).

O voto dos leitores


A vencer um norte-americano – resultado que me parece de todo improvável dadas as declarações de Engdahl na semana passada, e daí ter colocado este desafio, em forma de inquérito em linha, para eleger um escritor norte-americano (insular, não participante no grande diálogo da literatura mundial, em suma, um gentio provinciano) – a escassíssima comunidade de leitores deste blogue, votou:

  • Philip Roth (n. 1933), com 30% dos votos;
  • seguido do esquivo J.D. Salinger (n. 1919) e do literariamente brutal Cormac McCarthy (n. 1933), cada um obteve 15% das preferências.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Depois de Revel, um remate com Gombrowicz

Witold GombrowiczFicaram coisas por dizer… ou melhor, por citar dos assomos de perplexidade de Jean-François Revel perante a sobranceria e a obstinação primária da elite intelectual europeia, em particular da francesa, perante a criação artística e filosófica norte-americana, infectada por um dogmatismo torpe que rejeita liminarmente qualquer tipo de manifestação política, económica, social, cultural e tecnológica provinda do outro lado do Atlântico.
Talvez insularidade concorde com globalização, ou imperialismo com ignorância (ou primitivismo). Possivelmente, noções como liberdade e democracia, pluralidade e livre iniciativa, se tenham transformado em conceitos tão desfasados que, à luz do espírito do europeu moderno e progressista, o caminho da libertação se dê pela opressão, aproximando, em síntese, o extremista racista e xenófobo do revolucionário antiglobalização. Perdeu-se a referência social por uma heteróclita fusão de ideologias. E Sempre o 11 de Setembro, para o melhor e para o pior, e o caso paradigmático daquilo que referi no parágrafo anterior, contado (ainda) por Revel à laia de demonstração: os festejos com champanhe de Le Pen e do seu inominável séquito na sede da Frente Nacional em Paris enquanto assistiam ao desmoronamento em directo das Torres Gémeas em Nova Iorque, e os apupos ao presidente da confederação sindical francesa CGT (equivalente à nossa CGTP-IN) quando, em 16 de Setembro de 2001, pretendia fazer três minutos de silêncio em memória das vítimas dos atentados ao WTC e ao Pentágono.

Termino com Gombrowicz [na imagem], postando um excerto de um deslumbrante prefácio ao seu conto «Filifor revestido de criança» [tradução livre], que dedico à Academia Sueca e, de forma especial e terna, ao seu secretário permanente Horace Engdahl:

«Meus senhores, existem sobre a terra sociedades mais ou menos ridículas, mais ou menos desonrosas, vergonhosas e humilhantes, e desta forma a quantidade de estupidez é igualmente variável. Assim, por exemplo, o meio dos cabeleireiros parece-me, à primeira vista, mais sujeito à imbecilidade que o meio dos sapateiros. Mas o que se passa no meio artístico do orbe supera todas as marcas da estupidez e da infâmia, a tal ponto que um homem normalmente decente e equilibrado não pode senão baixar o seu rosto inundado pelo suor da vergonha, perante essas orgias infantis e pretensiosas. Oh, esses cantos sublimes que ninguém escuta! Oh, as conversas lúcidas dos sabedores e o frenesim dos concertos e nas sessões de leitura de poesia, oh, aquelas iniciações íntimas e aquelas valorizações, discussões, e oh, os rostos dessas mesmas pessoas quando declamam ou escutam, celebrando entre si o santo mistério do belo! Por que dolorosa antinomia tudo o que vocês fazem ou dizem se converte, sob estas circunstâncias, em fantochada e vergonha? Se, com o passar dos séculos, uma sociedade cai em tais convulsões de imbecilidade, então, quase com toda a certeza, pode-se formular o juízo de que as suas ideias não correspondem à realidade, que, simplesmente, vive de ideias falsas. Já que, sem dúvida alguma, as vossas concepções artísticas constituem o cúmulo da ingenuidade conceptualista; e se querem saber como e em que sentido teríamos de as transformar, e qual deveria ser a concepção justa e não ridícula, eu poder-vos-ei dizê-lo de seguida, mas têm de apurar o ouvido.
«Na realidade, o que se imagina aquele que, nos nossos tempos, sente a vocação da pena, do pincel ou do clarinete? Ele, antes de tudo, quer ser artista. Quer criar arte. Anseia, então, através da beleza, da bondade e da verdade satisfazer-se a si mesmo e aos seus concidadãos, propõe-se a ser Vate, Bardo, Sacerdote e obsequiar com o seu ser os restantes, imolar-se no altar do sublime, procurando, em prol da humanidade, esse maná celestial tão desejado. Ao mesmo tempo, quer dedicar o seu Talento ao serviço da ideia e, talvez, conduzir a humanidade ou a nação a um melhor futuro. Que fins tão nobres! Que magníficos desígnios! Acaso não eram esses os fins e os desígnios de Shakespeare, Goethe, Beethoven ou Chopin? Mas aqui reside o problema, na realidade, vocês não são Chopins, nem Shakespeares, senão, no melhor dos casos, semi-Shakespeares e um quarto de Chopin (oh, as malditas partes de novo!) e, por conseguinte, essa atitude só põe a nu a vossa triste inferioridade e insuficiência, e iria parecer como se pretendessem, a toda a força, saltar para o pedestal em torpes saltos, pondo em perigo as mais sensíveis e preciosas partes do vosso corpo.»
Witold Gombrowicz, Ferdydurke, pp. 73-74
(Buenos Aires: Sudamericana, segunda edición, enero de 1983, 268 pp; tradução do polaco para castelhano: Witold Gombrowicz; obra original: Ferdydurke, 1937.)

[Nota: traduzido por AMC a partir da versão espanhola (Argentina), por sua vez traduzida do polaco pelo próprio autor em 1964.]

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Revel – II

E prossegue Revel com as suas perplexidades na obra já citada no texto anterior, num capítulo a que chamou «A pior sociedade que jamais existiu», recheado de algumas proposições injectadas de forma reiterada na opinião pública, sem qualquer tipo de contrastação, apenas sancionadas pelo tradicional ufanismo e verborreia narcísica de um grupelho de intelectuais que, engenhosamente, esconde o seu sectarismo primário e faz uso recorrente da falácia através do seu instrumento mais popular: o argumentum ad nauseam, por vezes mais bem descodificado como “a mentira nazi”.

«Replicando a um artigo de Jacques Julliard publicado no Libération, um certo Jean-Marc Adolphe, critica-o, no mesmo jornal por considerar a América uma democracia, quando obviamente não o é, uma vez que “reserva para os mais ricos o direito de cuidar da saúde e de envelhecer com dignidade”.
[…]
«Dando preferência aos termos vagos, o senhor Adolphe afirma que a América não pode ser uma democracia porque, segundo ele, é um país “onde tudo se compra e tudo se vende”. Mas que generalização mais audaciosa! Também gostaríamos de saber se a América é um país onde o poder dos juízes é excessivo, como tantas vezes se afirma, ou se não se trata mesmo de um Estado de direito. O direito existe, prossegue o senhor Adolphe, mas é o “direito dos produtores, que prevalece sobre o dos autores”. Que quererá isto dizer? Que nos Estados Unidos não há contratos editoriais? Que a propriedade literária e artística não está protegida? Que a história da literatura americana, tal como a do cinema, é um deserto, vazio de grandes criadores, de talentos originais, porque estes foram constantemente, reprimidos pelos “produtores”?
«As letras europeias não são as únicas a desprezar a literatura americana, à qual, no entanto, devem não só tantos temas inovadores como técnicas narrativas revolucionárias. O diário Asahi Shimbun, que realizou um inquérito de opinião entre escritores e filósofos japoneses, na sequência do 11 de Setembro, dá-nos conta não só de tendências políticas mais próximas dos terroristas islâmicos do que das suas vitimas, como também de críticas literárias eivadas de condescendência e de um sentimento de superioridade. O filósofo Yujiro Nakamura, por exemplo, escreve: “A cultura americana sempre dignificou a saúde física e mental e sempre desdenhou o que se dissimula na sombra da natureza humana: as fraquezas e as carências. [...] Quando os seres são fracos, ela ignora-os, pois trata-se de uma dimensão humana que não se pode colocar ao serviço da produtividade e da eficiência. Semelhante civilização veicula uma visão unidimensional do mundo que suprime a sensibilidade para com o abismo de sombras que os outros homens trazem consigo.”
É evidente que o senhor Nakamura nunca leu Melville, nem Poe, nem Hawthorne, nem Henry James, nem Faulkner, nem Tennessee Williams, nem
The Crack up de Scott Fitzgerald, para citar apenas alguns autores.
[…]
«Além de tudo o mais, os escritores americanos são muito mais críticos em relação à sua própria sociedade do que proclamam os papagaios do antiamericanismo, sejam eles japoneses, franceses, ou quaisquer outros. Especialmente no período entre 1865 e 1914, ou seja, desde o fim da Guerra de Secessão até ao início da Primeira Guerra Mundial, e que é designado por Gilded Age, que se poderia traduzir por “idade do caroço”, vêem-se surgir vários romancistas que denunciam a sociedade como corrupta, vulgar, inculta, materialista e hipocritamente puritana. É o tempo de Frank Norris, de Theodore Dreiser, de Upton Sinclair e de Sinclair Lewis, cujos romances são outros tantos libelos acusatórios tão cáusticos para com a sociedade americana como o foram os mais negros dos romances de Zola em relação à sociedade francesa da mesma época. Os temas tratados por estes autores são frequentemente produto de investigações jornalísticas escrupulosas na procura dos factos e sem recurso a eufemismos na formulação das ilações a retirar, o que é mais uma criação da cultura americana. Na altura, estes jornalistas eram apodados de muckrackers (literalmente “agitadores da lama”). No entanto, esta veia literária não se esgotou em 1914, bastando para isso mencionar, entre as duas guerras, a obra de John dos Passos, tendo-se prolongado para além da Segunda Guerra Mundial, como demonstram as obras de John Updike e de Tom Wolfe.»
Jean-François Revel, A obsessão antiamericana, pp. 105-107.
[Lisboa: Bertrand, Dezembro de 2002, 225 pp; tradução de Victor Antunes; obra original: L'obsession anti-américaine, 2002]

domingo, 5 de outubro de 2008

Revel – I

Jean-François RevelSem mais, e tal como prometi, as palavras do escritor, jornalista, ensaísta e filósofo francês Jean-François Revel (1924-2006), membro da Academia Francesa, no lugar que hoje é ocupado por Max Gallo (cadeira outrora ocupada, por exemplo, por La Fontaine ou por Poincaré), ex-militante socialista e director da revista semanal L’Express, genro de Nathalie Sarraute (casou com a sua filha Claude), publica em 1970 o seu grande ensaio de ruptura com o seu passado socialista, que culpa de indulgente para com o comunismo soviético, Nem Marx Nem Jesus (Ni Marx ni Jésus : De la seconde révolution américaine à la seconde révolution mondiale), denunciando a elite europeia e o seu antiamericanismo primário.
Nas suas palavras:


«Repisa-se constantemente que o terrorismo antiamericano se explica, se justifica mesmo, pela “pobreza crescente” que o capitalismo espalha pelo mundo através da globalização orquestrada pelos Estados Unidos. É o tema que circula nos círculos Attac, na revista Politis, no seio dos Verdes alemães, no meio dos intelectuais latino-americanos e de diversos editorialistas franceses. Mesmo nos Estados Unidos, a extrema-esquerda (Radical Left) organizou manifestações para a divulgação desse slogan. É também a convicção do célebre juiz Baltasar Garzon (El País, 3 de Outubro de 2001), para quem um crime só é um crime se tiver sido cometido por Pinochet, tal como do Prémio Nobel, Dario Fo (Corriere della Sera, 15 de Setembro de 2001), que então escreveu: “Que são os vinte mil mortos de Nova Iorque (sic) comparados com os milhões de vítimas que caem cada ano às mãos dos especuladores?” A atribuição do Prémio Nobel da Literatura a uma nulidade como Dario Fo já tinha levantado dúvidas sobre a competência da Academia de Estocolmo na matéria. Finalmente, o equívoco foi dissipado: o prémio que lhe queriam na realidade atribuir era o da economia.»
Jean-François Revel, A obsessão antiamericana, pp. 84-85.
[Lisboa: Bertrand, Dezembro de 2002, 225 pp; tradução de Victor Antunes; obra original: L'obsession anti-américaine, 2002]

sábado, 4 de outubro de 2008

Insulares, ignorantes e provincianos

DeLillo, McCarthy, Pynchon, Roth e Updike
Estes acima bem podem esperar. Horace Engdahl já os sentenciou ao olvido da Academia Sueca, por muitos livros que vendam, por muitos encómios que lhes dirija a crítica literária, por muito estudados que sejam nos bancos da universidade, nos cursos de filologia e nas inúmeras teses sobre a literatura americana.
É apenas o Nobel, o prémio máximo da literatura mundial que condecora a carreira de um escritor, que lhe dedicou, de corpo e alma, uma vida... mas não é o fim do mundo.
Aquele quinteto nascido na década de 30 do século passado, por azar Nobel criado em terras do Tio Sam, não necessita desse género de honrarias snobes de uma chusma de pedantes suecos colocados na sua torre de marfim, onde mora uma sala bafienta e anquilosada da elite nórdica das letras.
O quinteto é realmente apreciado por leitores e literatos de todo o mundo, mesmo por aqueles que tolamente costumam desdenhar de tudo o que seja americano, esquecendo-se que as suas vidinhas enfadonhas são quotidianamente assaltadas por algo que está directamente relacionado com a maior democracia do mundo.
Uma democracia com defeitos, pois claro. Apontados com toda a legitimidade e em primeiro lugar pelos seus filhos. Leiam-se as obras mais representativas do quinteto. São os primeiros a apontar o dedo aos exageros e aos contrastes da sociedade americana, à politica governamental tanto interna como externa. Todavia, une-os um sentimento de pertença a um todo heterogéneo que acolheu uma série de raças, crenças e ideologias, e é isto que alguns europeus não perdoam, perdidos nas mesquinhas rivalidades ancestrais entre povos no mesmo território.
O grande inimigo é a maior democracia do mundo. O desnazificador da Europa, o escudo contra o retrocesso primitivista da barbárie comunista da União Soviética. O governo que Pinter acusou de genocídio e de gerador de todos os males do mundo, o país que Dario Fo chamou de império do mal, a nação que Lessing chamou de histérica pela recordação comovida dos milhares de civis inocentes mortos no 11 de Setembro… e Grass e Saramago e Gordimer
Os esquerdistas europeus não gostam de Roth, desconhecendo a sua militância esquerdista – o que pensarão de DeLillo ou do mais radical Gore Vidal?
É verdade, não suporto aqueles intelectuais da treta que ostentam ou ostentaram a foice e o martelo, pertencem ou pertenceram a partidos que os exibem ou exibiam com um orgulho impune. O símbolo sob o qual se mataram inocentes pelos ideólogos Lenine e Trotsky entre 1917 e 1924, o Terror Vermelho, a Tchéka, o KGB, os gulags, Estaline, Pol Pot, Mao Tsé-Tung, Ceausescu, e que continua a figurar sem condenação nas bandeiras de alguns sectários que se alimentam das democracias ocidentais. A “suástica metamorfoseada, vermelha e dourada” que legitimamente continua entrar-nos pela casa dentro com uma indiferença amnésica da barbárie comunista.
Mas somos avessos a insulares e a provincianos. Exprobramos os ignorantes da iridescência cultural que pinta o mundo – mas não queremos misturas, nem multiculturalismo, nem liberdade religiosa, nem véus, nem memórias coloniais, nem capitalismo e nem tão-pouco um mercado livre e despojado de paternalismos vomitados por uma elite intelectual.

A seguir, ou seja, quando houver tempo, um pouco de Jean-François Revel.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Nobel da Literatura 2008

Já foi divulgada a data para o anúncio do vencedor do Prémio Nobel da Literatura de 2008. Será no próximo dia 9 de Outubro, quinta-feira, ao meio-dia (hora de Lisboa).
De acordo com a casa de apostas online Ladbrokes, perfilam-se nos primeiros lugares (ordenados pela maior probabilidade de ocorrência) os seguintes candidatos:

1.º) Claudio Magris (Itália, 1939) – 3/1
2.º) Adonis (Síria, 1930; Líbano) – 4/1 (poesia)
3.º) Amos Oz (Israel, 1939) – 5/1
----- Joyce Carol Oates (EUA, 1939) – 5/1
----- Philip Roth (EUA, 1933) – 5/1
6.º) Don DeLillo (EUA, 1936) – 7/1
----- Haruki Murakami (Japão, 1949) – 7/1
----- Les Murray (Austrália, 1938) – 7/1 (poesia)
9.º) Yves Bonnefoy (França, 1923) – 10/1 (poesia e ensaio)
10.º) Inger Christensen (Dinamarca, 1935) – 14/1
----- J.M.G. Le Clézio (França, 1940) – 14/1
----- Michael Ondaatje (Sri Lanka, 1943; Canadá) – 14/1
----- Thomas Pynchon (EUA, 1937) – 14/1

Alguns dos autores mais lidos em Portugal aparecem com as seguintes probabilidades associadas:

  • Kadaré / Vargas Llosa – 20/1;
  • M. Atwood – 33/1;
  • Munro / Tabucchi / C. Fuentes / Kundera / P. Carey / U. Eco – 40/1;
  • Achebe / C. McCarthy / McEwan / Updike – 50/1;
  • A.S. Byatt / Rushdie – 66/1;
  • Doctorow / Banville / J. Barnes / M. Tournier / J. Littell / Auster – 100/1

Até à data do anúncio, irá figurar na coluna do lado direito deste blogue um pequeno inquérito – que, diga-se, dada a sua cada vez mais reduzida audiência, jamais gozará de qualquer tipo de representatividade, a não ser a minha própria –, inquérito que apenas incluirá autores norte-americanos.
Facto: o ano de 1993 foi o último em que a inescrutável Academia Sueca resolveu galardoar com o Nobel da Literatura um autor proveniente dos Estados Unidos da América. O prémio foi atribuído à escritora Toni Morrison.
Quem me lê decerto não estranhará a inclusão deste inquérito assaz selectivo, uma vez que conhece a minha especial predilecção pela literatura norte-americana contemporânea.
Assim, na lista sujeita a votação será incluído o quarteto bloomiano (Roth, Pynchon, McCarthy e DeLillo), tal como outros nomes que considero relevantes no actual panorama da literatura norte-americana.
O que não se consegue compreender, para além de um primarismo antiamericano e de um desconhecimento grotesco da literatura da segunda metade do século XX e da contemporânea que se produziu e produz do outro lado do Atlântico, são as declarações de Horace Engdahl secretário permanente da Academia Sueca à Associated Press:

«O Estados Unidos estão bastante isolados, demasiado insulares. Eles não traduzem o suficiente e, na realidade, não participam no grande diálogo da literatura. (…) Essa ignorância é uma condicionante.» [tradução: AMC]

Para parecer um Chávez secundado pela dupla Putin/Medvedev só faltou apelidar a literatura norte-americana e os seus autores de diabo.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

A Verdade

Morreu aos 89 anos, aquele que pela verdade viu ser-lhe retirada por decreto a sua amada nacionalidade e foi obrigado ao exílio em 1974 por ter aceitado receber o Prémio Nobel da Literatura, atribuído em 1970 pela Academia Sueca – regressou à Rússia em 1994.
Acusado por muitos de anti-semitismo e de um desmedido fervor religioso Ortodoxo, ninguém lhe retira o mérito das suas denúncias de opressão de um regime totalitário e de haver escrito O Arquipélago de Gulag, o seu magnum opus. Escrita entre 1958 e 1968, a obra circulou clandestinamente pela União Soviética até ser publicada pela primeira vez no ocidente em 1973, pondo a nu a brutalidade e perversidade do regime comunista soviético entre 1918 e 1956, condenando milhões aos campos de trabalhos forçados designados pelo acrónimo Gulag (transliterado em Glavnoye Upravleniye Ispravitelno-trudovykh Lagerey – Administração dos Campos de Trabalho ou de Reeducação).

Aleksandr Solzhenitsyn

Aleksandr Solzhenitsyn
(Kislovodsk, 11 de Dezembro de 1918 – Moscovo, 3 de Agosto de 2008)

«Os provérbios acerca da verdade são muito apreciados em russo. Eles dão uma expressão firme e por vezes surpreendente da não negligenciável dura experiência nacional:
UMA PALAVRA DE VERDADE DEVE PREVALECER SOBRE O MUNDO INTEIRO.
E é aqui, num imaginário de fantasia, uma violação do princípio da conservação da massa e da energia, em que eu fundamento tanto a minha actividade, como o meu apelo a todos os escritores do mundo inteiro.
»

Aleksandr Solzhenitsyn, parte da habitual prelecção Nobel entregue à Academia Sueca, que não chegou a ocorrer devido a impedimento das autoridades soviéticas e por alguns pruridos da Academia em entregar o prémio na embaixada sueca em Moscovo.

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

On not winning the Nobel Prize

Doris LessingPor motivos de saúde Doris Lessing não compareceu à sessão solene de entrega dos Prémios Nobel de 2007, realizada em Estocolmo na passada segunda-feira, dia 10 de Dezembro. No entanto, a escritora britânica, nascida em 1919 na antiga Pérsia, enviou a prelecção (ou oração de sapiência) Nobel, parte integrante e indispensável do ritual dos galardões desde a sua fundação em 1901.
A prelecção de Lessing intitula-se “On not winning the Nobel Prize”, disponibilizada a 7 de Dezembro.
Sou franco, nunca li um livro de Doris Lessing, apesar de, a priori, lhe conhecer alguns dos seus traços biográficos mais marcantes – facto que, essencialmente, ficou a dever-se ao seu rutilante activismo literário –, conhecimento que aprofundei após a entrega do galardão no passado dia 11 de Outubro.
Li o texto, e lembrei-me da prelecção de Auster proferida a 23 de Outubro do ano passado na sessão de atribuição do Prémio Príncipe das Astúrias para as Letras de 2006, quando refere «Que sentido tem a arte, em particular a arte de contar histórias, no tal mundo real? Nenhum que me ocorra agora – pelo menos num sentido prático da coisa. Um livro nunca encheu o estômago de uma criança faminta.» (texto na íntegra,
traduzido por mim e publicado neste blogue em jeito de comemoração no dia em que Paul Benjamin Auster completou 60 anos).
Lessing pega no mesmo tema, introduz-lhe o sabor das histórias que povoaram o seu imaginário em terras africanas*, e, no seu final, narra a fabulosa história ficcionada de uma rapariga negra que, no meio da miséria provocada por um longo período de seca em África, enquanto aguarda numa fila de espera, ao pó e com os seus dois filhos pendurados nas suas vestes, para que um indiano lhe encha de água a vasilha que transporta, lê extasiada um fragmento de Anna Karénina de Tolstói... E de onde veio esse fragmento? Um simples pedaço de uma obra-prima da literatura universal poderá mudar uma vida?

Ler
aqui (em inglês) a excepcional e comovente prelecção de Lessing. A ela, à autora, prometo que irei voltar sob a forma da narrativa longa (vencida a barreira...)

Nota: *Lessing, no decurso do texto, aconselha os jovens escritores a não desistir perante a voracidade mediática do mercado literário nos tempos que correm, e diz:

«E nós, os velhos, apetece-nos sussurrar nesses ouvidos inocentes. “Ainda manténs o teu espaço? O teu solo, o teu lugar único e essencial onde as tuas próprias vozes te poderão falar, a ti sozinho, onde poderás sonhar. Oh, agarra-te a isso, não o deixes escapar.”» Doris Lessing, On not winning the Nobel Prize. Stockholm: Nobel Lecture, December 7, 2007. [tradução livre: AMC]