«Eu sabia exa[c]tamente qual a cabana que queria. Disse-lhe o número. Ela [a recepcionista/proprietária] abriu a porta, pousou o balde no vestíbulo e vi-a a tirar a chave do quadro na parede que tinha várias fileiras de pequenos ganchos, um número para cada gancho e o mesmo número na placa plástica presa ao porta-chaves.»Per Petterson, Maldito seja o rio do tempo, p. 208.[Alfragide: Dom Quixote, 1.ª edição, Junho de 2013, 237 pp; tradução de Maria João Freire de Andrade; obra original: Jeg forbanner tidens elv, 2008 – se bem que, por preguiça ou por falta de pilim para pagar a um tradutor de norueguês/português, a editora tenha optado por traduzir da tradução em língua inglesa: I Curse the River of Time.]
«Glenn Gould said, "Isolation is the indispensable component of human happiness."» [Contraponto] «How close to the self can we get without losing everything?»
Don DeLillo, “Counterpoint”, Brick, 2004.
sexta-feira, 26 de julho de 2013
Parágrafos Redundantes
domingo, 16 de novembro de 2008
Combater o destino
«Havia algo acerca do homem e do rosto que eu vira sob a luz trémula das nossas lanternas. Agora de repente tenho a certeza. […] e se aquilo fosse algo de um romance, limitar-se-ia apenas a ser irritante. De facto, tenho lido muito, em especial durante os últimos anos, mas antes também o fazia, e tenho pensado sobre aquilo que li, e esse tipo de coincidência parece demasiado rebuscado na ficção, pelo menos nos romances contemporâneos, e acho que é difícil de aceitar. Pode parecer muito bem em Dickens, mas quando se lê Dickens estamos a ler uma longa balada de um mundo desaparecido, em que tudo tem de se juntar no fim como uma equação, em que o equilíbrio daquilo que foi anteriormente perturbado deve ser restaurado de modo a que os deuses possam sorrir. Talvez uma consolação ou um protesto contra um mundo que saiu dos eixos, mas agora já não é assim, o meu mundo não é assim, e nunca me dei bem com aqueles que acreditam que as nossas vidas são governadas pelo destino. Eles queixam-se, lavam as mãos e infundem piedade. Eu acredito que somos nós que modelamos as nossas vidas, de qualquer maneira, eu modelei a minha, valha o que valer, e assumo toda a responsabilidade. Mas de todos os lugares para onde me poderia ter mudado, tinha de aterrar exactamente aqui.»
Per Petterson, Cavalos Roubados, pp. 73-74.
[Cruz Quebrada: Casa das Letras, 1.ª edição, Outubro de 2008, 275 pp.; tradução de Maria João Freire de Andrade; obra original: Ut og stjæle hester, 2003.]
sábado, 15 de novembro de 2008
Sair para roubar cavalos [actualizado]
A perplexidade foi ainda maior conhecendo-se a priori a lista dos oito semifinalistas seleccionados pelo referido júri – constituído por seis elementos, que em 2007 incluía o escritor português Almeida Faria – dos quais destaco cinco, para além do vencedor, todos já com edição portuguesa: Arthur & George de Julian Barnes (Asa); O Homem Lento de J.M. Coetzee (Dom Quixote), Nobel da Literatura em 2003; Extremamente Alto, Incrivelmente Perto de Jonathan Safran Foer (Quetzal); Este País Não É para Velhos de Cormac McCarthy (Relógio D’Água); e Shalimar, o Palhaço de Salman Rushdie (Dom Quixote).
Porém, havia um facto anterior que não poderia ser desprezado, o mesmo romance já havia vencido em 2006 o prémio do jornal britânico The Independent para a melhor obra de ficção estrangeira, derrotando autores como David Grossman, Claudel, Murakami, Kertész (Nobel da Literatura em 2002) e o autor marroquino Tahar Ben Jelloun.
Tal como referi aqui, a versão portuguesa chegou (tarde) pelas mãos da Casa das Letras, adiantando-me, desde já, à nota de apreciação, para referir a tradução irrepreensível de Maria João Freire de Andrade* – menção que tem alguma razão de ser, dada a debilidade de algumas das traduções de obras lançadas pela mesma editora, cujo livro de memórias de Gore Vidal, Navegação Ponto por Ponto, é o epítome.
«Toda a minha vida ansiei estar sozinho num lugar como este. Mesmo quando tudo corria bem, como era frequente acontecer.» (pág. 11)
Aí instalado, na companhia da sua cadela Lyra, previamente adquirida para atenuar o isolamento previsto, Trond é o protagonista de uma estranha coincidência que irá despoletar uma série de rememorações dolorosas: «isso liga-me a um passado que pensei estar muito atrás de mim e afasta para o lado os cinquenta anos com uma ligeireza quase obscena.» (pág. 115). Rememorações que vão tão longe como o ano de 1940, quando o narrador tinha sete anos; passando pela ocupação nazi na Noruega e a sua retirada com a vitória dos Aliados em 1945; o Verão do afloramento de toda a verdade em 1948, desfrutado na companhia do pai, na última vez que estiveram juntos, deixando a mãe e a irmã em Oslo, num local muito parecido com o que actualmente escolheu para morrer; e as duas mortes trágicas ocorridas, no intervalo de um mês, três anos antes do momento presente. O agora é Novembro de 1999, um mês antes da passagem do milénio, segundo o autor e uns tantos milhões de pessoas em todo mundo na altura, que, com a sua ignorância, contribuíram para mais umas vergastadas na tão maltratada Matemática – e já agora, a talho de foice, o mesmo erro é cometido por Frederico Lourenço por haver escolhido, no inquérito levado a cabo pelo blogue Os Livros Ardem Mal, como o melhor livro de ficção portuguesa do século XX A Ilustre Casa de Ramires de Eça de Queirós publicado em 1900, logo, ainda, no último ano do século XIX, embora aqui interesse a influência que a obra exerceu na literatura portuguesa subsequente e nas gerações vindouras, e assim durante o século XX.
Per Petterson, com uma escrita limpa, escorreita, sem o recurso a artifícios de linguagem ou a uma bateria de figuras de estilo, consegue agarrar o leitor do princípio ao fim, alternando com mestria os diversos períodos históricos atrás referidos. E talvez seja nessa limpidez de linguagem onde reside o principal brilho da obra: inocente, jamais estéril, que consegue captar a ingenuidade imanente de um ser intrinsecamente bom, profundamente emocional e sem a mácula da violência dos tempos que corriam.
De seguida Trond reflecte sobre as admiravelmente tocantes palavras da filha, depois de lhe haver citado a introdução de Dickens: «Não me é fácil responder àquilo. Não sabia que ela pensava daquele modo. Nunca mo disse. É óbvio que pelo simples motivo de que eu não estava lá quando ela precisara de falar, mas ela não pode saber com que frequência pensei o mesmo e li aquelas primeiras linhas de David Copperfield e depois tive de continuar, página após página, quase petrificado de terror porque tinha de ver se no fim tudo encaixava no seu devido lugar, e como é natural encaixava, mas demorava sempre muito tempo até me sentir seguro. No livro. A vida real era de certo modo diferente.» (pág. 229).
É esta a magia de Cavalos Roubados, o paradoxo da inquietação tranquila, de um raro lirismo na literatura contemporânea. E que melhor resumo nos pode dar a percebida epígrafe dissimulada, porque há uma pequena chamada na ficha técnica que nos alerta, sem mais assunto, para umas frases no interior do texto, cujo sentido é repetido umas páginas mais adiante. As palavras pertencem ao romance de 1934 Viagem no escuro (Voyage in the Dark) da escritora dominicana Jean Rhys (1890-1979):
«Foi como um cortinado se tivesse fechado e escondido tudo aquilo que eu sempre conhecera. Era quase como renascer. As cores eram diferentes, os cheiros diferentes, a sensação que tocar nas coisas nos dava interiormente era diferente. Não apenas a diferença entre calor, frio; claridade, escuridão; roxo, cinzento. Mas a diferença estava no modo como me sentia assustado e no modo como me sentia feliz.» (pág. 255).
Uma nota final para as estrelas que encerram esta nota de apreciação. Das 40 obras publicadas este ano que tive a oportunidade de ler, três figuram na categoria de excepção – se se tratassem de hotéis, eram de super luxo –, às restantes 35 que figuram em posições inferiores a esta – das 5 estrelas (Muito Bom) a 1 estrela (Mau) –, uma vez que 2 não foram reveladas para esta contagem, Cavalos Roubados é aquela que se aproxima mais do limiar da genialidade, e só não figura na categoria mais acima dados o fôlego, a profundidade e a intemporalidade das obras de Musil, Cortázar e Donoso que aí são referenciadas; em suma, ainda não dispõe da pátina de genialidade, ainda não obtida pela curta distância temporal entre os dias que correm e o momento em que foi publicada.
Classificação final: ***** (Muito Bom)
Referência bibliográfica:
Per Petterson, Cavalos Roubados. Cruz Quebrada: Casa das Letras, 1.ª edição, Outubro de 2008, 275 pp. (tradução de Maria João Freire de Andrade; obra original: Ut og stjæle hester, 2003).
[adenda: 22:50]: *Alertado por e-mail, dei conta que ficou por referir, no que à tradução diz respeito, que a versão editada pela Casa das Letras foi elaborada a partir da versão inglesa, Out Stealing Horses, da poetisa e tradutora Anne Born (tradutora de norueguês e dinamarquês, traduziu, entre outras, obras de Isak Dinesen/Karen Blixen), cuja tradução do 2.º romance de Petterson (Cavalos Roubados) foi objecto de enorme aclamação no meio literário anglófono, realçada pelo próprio júri do IMPAC Award. Quanto às minhas referências neste campo apenas se circunscrevem (constava do espírito) à comparação entre a tradução inglesa (que já havia lido em deambulações livreiras) e a tradução de Maria João Freire de Andrade – infelizmente, não sei norueguês, e como diz Chico Buarque «devia ser proibido debochar de quem se aventura em língua estrangeira.»
sábado, 18 de outubro de 2008
Per Petterson
Trata-se do romance Cavalos Roubados (Ut og stjæle hester, 2003; versão em língua inglesa: Out Stealing Horses, 2005) do escritor norueguês Per Petterson, nascido em Oslo em 1952 – até agora inédito em Portugal – que não só venceu a edição de 2007 do IMPAC, como também a edição de 2006 do Independent Foreign Fiction Prize – de recordar que José Eduardo Agualusa foi o vencedor de 2007 com o romance O Vendedor de Passados (2004), prémio que já contemplou escritores como Pamuk, Kundera, Saramago (com O Ano da Morte de Ricardo Reis em 1993), Sebald ou Javier Cercas.
«Princípio de Novembro. São nove horas. Os chapins embatem contra a janela. Por vezes voam atordoados depois do impacto, outras caem a debater-se sobre a neve recente até conseguirem voltar a levantar voo. Não sei o que quererão que eu possa ter. Olho pela janela para a floresta. Há uma luz avermelhada sobre as árvores junto ao lago. O vento começa a soprar. Consigo ver-lhe a forma sobre a água.»
Per Petterson, Cavalos Roubados, pág. 9.
[Cruz Quebrada: Casa das Letras, 1.ª edição, Outubro de 2008, 275 pp.; tradução de Maria João Freire de Andrade; obra original: Ut og stjæle hester, 2003.]
quinta-feira, 14 de junho de 2007
Impac(to) Norueguês
(seguindo os passos até ao São João)
Per Petterson, com o seu romance Out Stealing Horses, acabou de vencer a edição de 2007 do mais generoso prémio literário do mundo a galardoar uma obra de ficção: o International IMPAC Dublin Literary Award.
Petterson derrotou obras dos também finalistas: J.M. Coetzee, Cormac McCarthy, Salman Rushdie, Julian Barnes, entre outros.
Curiosamente, a obra do escritor norueguês, originalmente publicada na sua língua nativa em 2003 (sob o perceptível título: Ut og stjæle hester), integrou, apenas, a lista inicial de 138 romances porque foi nomeado por 2 das 3 bibliotecas norueguesas participantes na selecção inicial (a de Oslo e a de Stavanger) num total de 169 bibliotecas participantes pertencentes a 49 países – Portugal participou com as bibliotecas públicas do Porto e de Lisboa, com escolhas exemplares, diga-se.
De referir que do júri deste ano, composto por 6 elementos, fazia parte o escritor português Almeida Faria (n. 1943).
Aqui fica um excerto – os dois primeiros parágrafos – do romance vencedor:
«Early November. It’s nine o'clock. The titmice are banging against the window. Sometimes they fly dizzily off after the impact, other times they fail and lie struggling in the new snow until they can take off again. 1 don't know what they want that I have. I look out the window at the forest. There is a reddish light over the trees by the lake. It is starting to blow. I can see the shape of the wind on the water.
«I live here now, in a small house in the far east of Norway. A river flows into the lake. It is not much of a river, and it gets shallow in the summer, but in the spring and autumn it runs briskly, and there are trout in it. I have caught some myself. The mouth of the river is only a hundred metres from here. I can just see it from my kitchen window once the birch leaves have fallen. As now in November. There is a cottage down by the river that I can see when its lights are on if I go out onto my doorstep. A man lives there. He is older than I am, I think. Or he seems to be. But perhaps that's because I do not realise what I look like myself, or life has been tougher for him than it has been for me. I cannot rule that out. He has a dog, a border collie.»
Per Petterson, Out Stealing Horses (Harvill Secker, 2005)
Notas:
- Não há qualquer obra de Per Petterson editada em português de Portugal;
- Colm Tóibín foi o vencedor da edição de 2006 – tornando-se o primeiro irlandês a vencer este prémio – com a sua obra-prima The Master – editado em Portugal pela Dom Quixote como O Mestre, que no meu entender é, para já, a melhor obra editada no nosso país em 2007.