Mostrando postagens com marcador Cidadania. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Cidadania. Mostrar todas as postagens

sábado, 30 de novembro de 2024

Ganhar ou perder ...


Ganhar ou perder ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Ganhar ou perder é parte de qualquer esporte. Mas, não é de hoje, que as profundas mudanças organizacionais e estruturais nos times de futebol trazem dúvidas em torno dos resultados das partidas.  

Ora, euforia não ganha jogo! Por mais torcida que exista, em favor de um e em detrimento de outro, esportes são marcados pela incerteza do placar. Pelo menos em tese! De modo que aprendemos, há tempos, a conviver com a marotice de uma zebrinha, na TV aberta, que trazia os resultados surpreendentes da rodada!

Além disso, por mais que os calendários sejam absurdamente perversos, trazendo uma sobrecarga indiscutível às equipes, espera-se, no mínimo, a manutenção do espírito desportivo, da dignidade dos atletas ao vestirem a camisa e entrarem em campo. Especialmente, quando se trata de atletas da elite do futebol.

Estamos falando de gente experiente que, apesar de jovem, já carrega uma bagagem suficiente para saber se portar e dar o melhor de si, em campo.  Que torna inadmissível uma participação repleta de atitudes principiantes. Afinal, não dá para escolher, quando a dignidade deve entrar em campo. Se no jogo A, B ou C. Como dizem, por aí, jogo é jogo e não se escolhem adversários! Cada vitória é o fim de uma batalha bem sucedida!

Portanto, quando se chega ao final de um grande campeonato, espera-se dos competidores um nível total de motivação e de entrega. Como se aquele fosse o jogo de suas vidas. Nada é mais importante! Nada pode ser empecilho para buscar a vitória! Hipoteticamente, o que se imagina são atletas driblando todo e qualquer obstáculo que surja na sua frente. Seja a chuva ou o sol. Sejam os erros de arbitragem. Sejam os desalinhos no campo. Seja o cansaço. ... Não interessa.

Afinal, aquela conquista já é, em si mesma, o trampolim para outras tantas que o futuro reserva. E não é só isso! O futebol contemporâneo, que lida com cifras astronômicas de investimento; sobretudo, a partir das premiações, tem condições de construir equipes cada vez mais competitivas. Formar elencos de primeira grandeza, oferecendo-lhes a melhor infraestrutura de trabalho possível.

De modo que as derrotas não são apenas motivo de um pesar momentâneo. Elas reverberam pelo tempo. Elas sinalizam desafios concretos adiante. E tudo isso é sim, um gigantesco balde de água fria sobre o torcedor. A relação entre times e a população, no Brasil, é historicamente muito intensa e passional. Atravessa gerações de uma mesma família. Agrega amigos ao longo do caminho. Tece afetos enamorados entre simpatizantes de um mesmo escudo.  

Por essas e por outras, é que a repentina falta de apetite, de garra, de vontade de vencer, atinge de maneira tão cruel e dolorosamente o torcedor. Há uma ruptura da reciprocidade que se imaginava existir. De certo modo, o torcedor sente-se traído na sua devoção, no seu apoio, no seu genuíno amor. O que explica porque, depois do apito final da partida, as coletivas de imprensa são insuficientes e ineficientes para justificar o que se viu. Desculpas não alteram o resultado. Se faltou isso ou aquilo, não importa mais. No entanto, jamais saberemos o que, de fato, acontece nos bastidores dessa teia, que envolve a organização e a estrutura dos times de futebol contemporâneos, para que as equipes se comportem dessa ou daquela maneira.

Diante desse cenário, vitórias e derrotas acabam tendo um gosto amargo. Como se, de algum modo, o curso dos acontecimentos não tivesse fluído de uma maneira natural, sem interferências diversas. Infelizmente, a alma do futebol perdeu muito do seu brilho. Está opaca. Está arranhada. Está visivelmente melancólica. Não é à toa que Nelson Rodrigues dizia, “Estão a postos os jogadores, o técnico e o massagista. Mas quem ganha e perde as partidas é a alma” (À sombra das chuteiras imortais, por Ruy Castro, p.29).

Enquanto o torcedor parece continuar o mesmo. Maluco. Insano. Passional. Irracional. O futebol não. Está longe e distante da sua molecagem tradicional. Da sua leveza inspiradora. Da sua euforia indomável. O coração pulsa; mas, a alma não. Por isso, gostaria muito que o futebol brasileiro resgatasse a sua alma inspirando-se no feito incrível da Seleção Sul-Africana de Rugby, que venceu a sua principal competição, a Copa do Mundo, em 1995, contrariando todos os prognósticos 1. Uma história que mostra como é possível fazer o esporte sair do fracasso para a glória, a partir de um verdadeiro movimento de renascimento das suas próprias cinzas.  



1 Invictus – trailer (https://www.youtube.com/watch?v=211tsGoram8)

CARLIN, J. Playing the Enemy: Nelson Mandela and the Game That Made a Nation. 2008.

sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Mal humorados ...


Mal humorados ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Mais uma vez, o mercado sendo o mercado! Tamanho mau humor é facilmente explicado pela própria historicidade nacional. Contudo, o que causa desapontamento é ver certos segmentos da população se comprazendo na construção de um pseudocaos.

De certa forma, as manifestações contrárias à proposta de isenção do Imposto de Renda até R$5 mil deveriam constranger quem se posiciona dessa maneira. Considerando que o salário-mínimo atual, no Brasil, é de R$1.412,00, essa faixa de isenção significaria aproximadamente 3,5 salários-mínimos.  

Caro (a) leitor, a distribuição da pirâmide social brasileira está apresentada da seguinte forma: classe A – 2,9% da população, renda superior a 20 salários-mínimos, o equivalente  a R$28.240,00; classe B1 – 5,1% e B2 – 16,7% da população, renda entre 10 e 20 salários-mínimos, o que corresponde entre R$14.120,00 e R$28.240,00; classe C1 – 21% e C2 – 26,4% da população, renda entre 4 e 10 salários-mínimos, o que corresponde entre R$5.648,00 e R$14.120,00; classe D/ E – 27,9% da população, o que corresponde entre 2 e 4 salários-mínimos ( R$2.824,00 e R$5.648,00) e abaixo de 2 salários-mínimos (até R$2.824,00).

Observando o painel elaborado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), para o mês de outubro de 2024, a realidade entre o salário-mínimo nominal e o salário-mínimo necessário foi de R$1.412,00 e R$6.769,87, respectivamente. De modo que um cidadão que recebesse o salário-mínimo necessário à sua sobrevivência seria taxado dentro da nova proposta.

Portanto, nada mais legítimo para um país cuja renda mínima está aquém das necessidades fundamentais de um indivíduo e sua família, no que diz respeito à moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, do que promover a isenção no Imposto de Renda.  Essa é uma política pública de combate ao histórico de reafirmação das desigualdades socioeconômicas, no Brasil. Daí o incômodo por parte das elites ou oligarquias nacionais.

Infelizmente, não há como negar a aporofobia nacional! Acontece que a manutenção das velhas práxis que fundamentam as desigualdades, na verdade, aprofundam a necessidade de políticas compensatórias e mitigadoras a esses processos. A legitimação do empobrecimento social, a fim de favorecer as classes A e B da população, não desobriga o governo das suas responsabilidades institucionais e constitucionais com a dignidade humana. A não ser que a intenção seja consolidar explicitamente a necropolítica, no país.

Então, quando se percebe a condescendência subserviente de membros da população, de representantes político-partidários, de entidades públicas ou privadas, de veículos de comunicação e de informação, ao manifestarem posições de afirmação à manutenção de práxis historicamente perversas e cruéis, é possível entender o longo caminho que o Brasil precisa trilhar para superar os seus ranços coloniais.

Infelizmente, há um certo tipo de vira-latismo, nesse país, que diante de uma visão inferiorizada de si mesmo, torna o cidadão um bajulador de quem o maltrata e oprime, sob diferentes formas de violência, a fim de obter algum benefício. Essas pessoas não entendem, ou não querem entender, que a ínfima parcela abastada da pirâmide social, jamais olha para baixo.

Aqueles que estão no topo se mantêm focados, o tempo todo, para administrar e resguardar as regalias, os privilégios e os poderes, os quais lhes foram repassados de geração em geração, até aqui. Eles enxergam a base da pirâmide como um efeito colateral da sua posição, ou seja, para que estejam por cima é preciso que alguém os sustente nessa posição. Nada diferente, do que as Metrópoles europeias promoviam em suas colônias, durante os séculos XVI a XIX. O que significa uma reprodução abjeta de padrões ideológicos e comportamentais.

Como escreveu Darcy Ribeiro, “O espantoso é que os brasileiros, orgulhosos de sua tão proclamada, como falsa, ‘democracia racial’, raramente percebem os profundos abismos que aqui separam os estratos sociais. O mais grave é que esse abismo não conduz a conflitos tendentes a transpô-lo, porque se cristalizam num modus vivendi que aparta os ricos dos pobres, como se fossem castas e guetos. Os privilegiados simplesmente se isolam numa barreira de indiferença para com a sina dos pobres, cuja miséria repugnante procuram ignorar ou ocultar numa espécie de miopia social, que perpetua a alternidade” (Darcy Ribeiro – O Povo Brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil, 1995).

Por essas e por outras, se entende tamanho mau humor!  Tanto ranger de dentes! Tanta irritação desmedida! Todas as vezes que esses indivíduos se sentem contrariados, eles agem assim. Mostrando todas as camadas da sua aporofobia, da sua xenofobia, do seu racismo estrutural, do seu desvirtuamento ético e moral. Afinal, “A estratificação social separa e opõe, assim, os brasileiros ricos e remediados dos pobres, e todos eles dos miseráveis, mais do que corresponde habitualmente a esses antagonismos. Nesse plano, as relações de classe chegam a ser tão infranqueáveis que obliteram toda comunicação propriamente humana entre a massa do povo e a minoria privilegiada, que a vê e a ignora, a trata e a maltrata, a explora e a deplora, como se esta fosse uma conduta natural” (Darcy Ribeiro – O Povo Brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil, 1995).


CONSUMO...


CONSUMO...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Hoje é um dia bastante oportuno para a reflexão a respeito do consumo consciente. Quando incorporamos estratégias consumistas, largamente utilizadas em outros países, esquecemos de observar certos detalhes fundamentais. A começar pelas diferenças socioeconômicas que marcam as realidades.

Sim, o primeiro ponto de análise aborda as desigualdades. A estimulação do consumismo em países afetados por esses abismos socioeconômicos, não só expõe os cidadãos a uma corrida frenética pela constante aquisição de bens, produtos e serviços, como estabelece fronteiras subjetivas para o pertencimento social. O Ter se transforma, portanto, em palavra de ordem.

Milhares de pessoas começam a ultrapassar os seus limites orçamentários, físicos e mentais para atingir as metas que os possibilitem acompanhar a avalanche de novidades trazidas pelo mercado. Seus propósitos de vida acabam condicionados pelo consumo, o que fomenta uma crise inevitável de fastio ou de insatisfação, na medida em que é um caminho sem fim, sem limites. O que significa algo extremamente viciante ao mesmo tempo em que exaustivo, extenuante, sob diferentes aspectos.    

Contudo, não para por aí. O comportamento consumista afeta diretamente o espaço geográfico do planeta e o equilíbrio socioambiental. Um bom exemplo para compreender essa questão está em matérias, tais como “Lixões persistem e coleta seletiva ainda não é universal: IBGE revela como o Brasil lida com resíduos” 1 , “’Lixo do mundo’: o gigantesco cemitério de roupa usada no deserto do Atacama” 2, e “Os segredos revelados pelas ilhas de lixo formadas nos oceanos” 3.

Queiram ou não aceitar, o consumo excessivo e desinteligente é flagrantemente incompatível com o bem-estar do planeta e da população.  Veja, a maioria dos produtos possui um tempo de decomposição superior à expectativa de vida dos seres vivos. De modo que as áreas de descarte e aterro consomem espaços geográficos importantes para a dinâmica cotidiana, incluindo áreas de vegetação nativa que auxiliam no ciclo hidrológico. Sem contar, a diversidade de contaminantes que passa a penetrar no solo e nos cursos d’água, durante o processo metamórfico dos resíduos. Portanto, alguns lugares se tornam impossibilitados de permitir um reaproveitamento espacial pela população.

Muitos se esquecem ou não se dão conta, também, de que a produção industrial por si só, já resulta no consumo de recursos naturais, especialmente, a água. Cada produto consumido é fruto de processos os quais, nem sempre, são planejados de maneira sustentável e de menor potencial degradante. Além disso, a própria engenhosidade produtiva resulta em novos resíduos e efluentes a serem descartados na atmosfera, no solo e nas fontes hídricas, sem que se respeite eventuais medidas de controle e mitigação.

Daí a necessidade de se REPENSAR o consumo, analisando criticamente as nossas prioridades, inclusive, pelo nosso ponto de vista cidadão, que extrapola o individualismo para exercitar um olhar mais coletivo. Essa consciência RESPONSÁVEL não significa abolir o consumo, por completo. Temos necessidades e precisamos supri-las. No entanto, isso pode ser feito de uma maneira inteligente.

Podemos, por exemplo, RECUSAR os excessos. Se por um lado, as promoções do tipo “leve 3 pague 2” parecem economicamente atraentes e viáveis, por outro, elas nos levam a consumir um volume de produtos desnecessário. O que muitas vezes, acaba ocasionando em perdas do prazo de validade e mais resíduos para descarte. Uma lista de compras bem planejada, pensada, permite REDUZIR não só os gastos, como, também, as falsas demandas.

Por isso, na hora de elaborá-la, vale um olhar atento sobre o que se pode REUTILIZAR, RECICLAR e RESTAURAR. São muitas as publicações e reportagens disponíveis, a respeito dessas estratégias sustentáveis. Termos como upcycling 4 e downcycling 5 já são uma realidade na consolidação da chamada moda ecológica ou eco-friendly. Afinal, o objetivo é fazer com que a população estabeleça uma consciência sobre o seu papel na minimização do impacto ambiental tanto na produção quanto no consumo.

E esses comportamentos, não dizem respeito somente à moda. Eles cabem em qualquer segmento da vida cotidiana. Utensílios domésticos. Decoração. Mobiliário. Material escolar. Cozinha. ... Basta um bocado de atenção ao ambiente em que se está inserido e uma boa pitada de criatividade, para colocar em movimento essas práxis.

Assim, pensando sobre todas essas questões, é impossível não lembrar das palavras da poetisa Cecília Meireles: “É preciso amar as pessoas e usar as coisas e não, amar as coisas e usar as pessoas”. Sim, porque é nesse sentido que o consumismo tem conduzido milhões de seres humanos. A uma hipervalorização da monetização e da mercantilização das coisas e das pessoas, como se tudo pudesse ser despojado de ética e de moral, para atender aos desejos insaciáveis da sociedade de consumo.   



4 É o termo dado para a transformação de um produto que iria ser descartado, em um novo produto pronto para o uso.

5 É uma solução prática e importante para reaproveitar e reutilizar matéria-prima que não poderia ser reciclada de outra forma, acabando num aterro ou incinerada. 

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Da teoria à prática


Da teoria à prática

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Quando um dos filhos do ex-Presidente da República se permitiu falar publicamente, em 2018, ano que elegeu o seu pai, que para fechar o Supremo Tribunal Federal (STF) bastaria um Cabo e um Soldado, o recurso golpista já era uma intenção; mas, apenas como uma carta na manga diante de alguma eventualidade.

Afinal, até aquele momento, a engenharia das tramas tecidas nos bastidores da República nacional pareciam suficientes para sustentar as pretensões de poder da Direita brasileira e seus matizes; sobretudo, os mais radicais e extremistas.

A primeira Presidente eleita no país havia sido afastada. A operação Lava Jato fazia luzir os olhos desavisados dos defensores ardorosos do combate à corrupção. Alguns membros da justiça brasileira figuravam como verdadeiros paladinos desse processo. Havia se conseguido prender o principal oponente nas eleições, ainda que sem provas. Enfim...

Tudo parecia estável e favorável, quando, de repente, o castelo de cartas começou a ruir. As entrelinhas dessa construção nefasta, para se chegar ao topo do poder nacional, tornaram-se visíveis à população. Consumidos pelo excesso de certezas e vaidades, as verdades indigestas da República vieram à tona e macularam as “boas intenções” direitistas, fazendo com que houvesse um abalo na solidez da opinião pública. Portanto, era fundamental conter os estragos.

Foi, então, que a rispidez tomou conta da relação entre o governo e qualquer um que representasse algum tipo de entrave ou obstáculo às suas pretensões. Caso o nível das pressões e das tensões sobre o governo alcançasse um patamar insustentável, para garantir a viabilidade de permanência do projeto eleito, as linhas gerais do recurso golpista já eram uma realidade. O que significa que da teoria para a prática seria, em tese, um piscar de olhos.

Haja vista que, após o processo de redemocratização brasileiro, esse foi o governo mais militarizado que se teve notícia. Conhecendo os caminhos que culminaram na eleição de 2018, esse tipo de intimidação era um recurso valioso. Relembrar velhas e dolorosas memórias da historicidade nacional, seria algo útil, na percepção deles.

Embora, um aspecto parecesse estranho nessa construção, ou seja, a aliança de um ex-militar e as forças de segurança do país. Com um currículo considerado desonroso pelos militares, o que se pode pensar a respeito, é que ele foi uma ponte útil para o regresso delas ao poder.  

Apesar da anistia, ampla, geral e irrestrita, concedida em 1979, havia entre muitos militares um sentimento de insatisfação a respeito. Havia quem temesse algum tipo de retaliação, depois dos longos anos de opressão e violência instituídos no país.

De modo que era perceptível o viés ideológico antidemocrático, manifestado por certos indivíduos, e sua reverberação pelas décadas seguintes. Razão pela qual, uma oportunidade de retornar ao poder não poderia ser desperdiçada a fim de garantir-lhes alguma paz e segurança, ou seja, fosse definitivamente esquecido aquele recorte incômodo da história.

Portanto, as descobertas decorrentes dos processos de investigação da Polícia Federal (PF), gerados a partir de sucessivos episódios de ações antidemocráticas, traçam uma linha temporal que mostra a evolução da consolidação dessa intenção golpista. Inclusive, destacando-se momentos de extrema beligerância, meticulosamente, planejados.

Aliás, nenhum dos envolvidos se preocupou em não deixar rastros das suas intenções. No entanto, boa parte da população preferiu desacreditar os discursos, as atitudes e os comportamentos, lançando-os ao rol da fanfarronice. Fizeram pouco de uma questão gravíssima!

Agora, muitos desses estão perplexos, estupefatos, diante do tênue limite que o país esteve de um novo golpe de Estado. O grau de engenhosidade da trama golpista é surpreendente. Nada aconteceu ao acaso. Tudo foi devidamente pensado.

No entanto, como em outros momentos da história, a ausência de unanimidade, de profunda coesão, entre os militares, impediu a execução. O país ficou, então, submetido às ameaças, às depredações do patrimônio público, à selvageria de uma massa de manobra popular, enfim ... a todo tipo de comportamentos antidemocráticos e anticidadãos, sem, no entanto, efetivar o plano golpista em si.

O que seria do Brasil se esse plano tivesse obtido o sucesso almejado? Melhor nem pensar. Certamente, estaríamos mergulhados na escuridão da privação dos direitos humanos, retrocedidos no tempo e no espaço, tendo como base o que já se sabe das investigações da PF.

Que o cidadão brasileiro preste mais atenção e não se deixe levar pelo seu imediatismo de conveniência, sua credulidade oportunista, sua superficialidade analítica, sua displicência alienante. Como escreveu Pablo Neruda, “Você é livre para fazer suas escolhas, mas é prisioneiro das consequências”.     

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

O tsunâmi da desfaçatez

O tsunâmi da desfaçatez

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Em plena crise ética e moral, pela qual transita o país, a desfaçatez de alguns dos nobres legisladores da República deveria segurar a sua onda. Aproveitando o frenesi do momento, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, aprovou sem maiores alardes a proposta que restringe o aborto legal no país.

O que significa uma ausência de total respeito pela vida e a dignidade humana, considerando que essa aprovação afronta o Código Penal brasileiro, o qual permite a interrupção da gestação em três casos: quando há risco para a vida da gestante; quando a gestação é fruto de estupro; e, nos casos de anencefalia do feto.

Isso significa que elementos do parlamento brasileiro estão voluntariamente exercendo o desserviço de não proteger a dignidade humana e, nem tampouco, a vida. A previsão do Código Penal para o assunto, e sustentada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), busca evitar que vidas humanas de milhares de meninas, adolescentes e mulheres, país afora, sejam submetidas à situação de risco extremo ou de reverberação da violência social.

Enquanto esses parlamentares estão absortos pelas limitações de seu conservadorismo hipócrita e descabido, se esquecem de atentar para outras situações, as quais não só contrariam o estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei n.º 8.069, de 13/07/1990), como apontam para a deterioração dos valores e princípios educacionais e éticos, no país. Haja vista a seguinte matéria publicada: “Menores desdenham da educação e dizem ganhar mais do que médico vendendo curso para ser influencer” 1 .

É preciso entender que não há proteção à vida sem que haja a superação das desigualdades sociais, no país. Expor qualquer ser humano à privação cotidiana dos seus direitos sociais básicos – educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados (art. 6º, CF de 1988), deveria ser o objeto principal de luta e defesa do parlamento brasileiro.

Porque são as desigualdades que estabelecem as distorções sociais, como as retratadas na referida matéria jornalística. Lamentavelmente, o país que aceita, em pleno século XXI, a existência de recorrentes episódios de trabalho análogo à escravidão, está, também, permitindo a existência da monetização e da mercantilização infantil, através do trabalho no ambiente virtual. 

Tentando dissociar o ordenamento jurídico nacional do mundo real do virtual, no sentido de estabelecer uma nova interpretação, idealizada e oportuna aos seus interesses, pais, responsáveis e as mídias sociais infringem às leis sem quaisquer constrangimentos e responsabilizações. Sequer fazem questão de ocultar as suas atitudes e comportamentos. É simplesmente estarrecedor!

O que se pode, então, esperar das futuras gerações diante desse espetáculo dantesco? Relembrando a Declaração dos Direitos da Criança (1959), em seu 9º princípio, “A criança gozará de proteção contra quaisquer formas de negligência, crueldade e exploração. [...] Não será permitido à criança empregar-se antes da idade mínima conveniente; de nenhuma forma será levada a ou ser-lhe-á permitido empenhar-se em qualquer ocupação ou emprego que lhe prejudique a saúde ou a educação ou que interfira em seu desenvolvimento físico, mental ou moral”. Contudo, crianças e adolescentes brasileiros estão assumindo, precocemente, responsabilidades que deveriam estar a cargo de seus pais ou responsáveis, sem que haja qualquer preocupação ou interesse das autoridades nacionais.

É por essas e por outras que Jesus Cristo falou: “Ai de vocês, escribas e fariseus, hipócritas! Vocês são como sepulcros caiados: bonitos por fora, mas por dentro estão cheios de ossos e de todo tipo de imundície. Assim são vocês: por fora parecem justos ao povo, mas por dentro estão cheios de hipocrisia e maldade” (Mateus 23: 27-28). Façamos, portanto, uma reflexão urgente a respeito!


sábado, 23 de novembro de 2024

Até tu, filho meu?

Até tu, filho meu?

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Lamento, mas o Brasil nunca foi essa imagem de país ordeiro e feliz, como uns e outros quiseram acreditar. Olhando, com bastante atenção para a sua historicidade colonial, ele só tem avesso. Expresso por uma atroz desigualdade, um conservadorismo hipócrita, um flagrante conjunto de preconceitos e de intolerâncias diversas, enfim... tudo muito bem nutrido pelas gerações que sucederam suas ancestralidades metropolitanas monárquicas e burguesas. Em suma, as elites, oligarquias, aristocracias ou qualquer outra denominação que desejem empregar.

De modo que, nesses pouco mais de 500 anos, os registros dão conta das mais abjetas e horrendas formas que esses indivíduos utilizaram para garantir não só a manutenção de todas as suas regalias e privilégios; mas, particularmente, dos seus poderes. Independentemente, se isso dependesse (ou não) de passar por cima, com toda a fúria, da sua dignidade, da sua ética e da sua moral. O que significa que tramas golpistas são parte desse repertório ultrajante. Por isso, não cabe qualquer perplexidade verde e amarela.

Há um provérbio que diz, “Há males que vem para o bem”. Infelizmente, temos sido condescendentes e permissivos, em demasia, diante dos nossos comportamentos historicamente rançosos, ainda que, vivendo em pleno século XXI. O que cada cidadão deveria estar fazendo, nesse exato momento, é uma análise crítica e reflexiva sobre um único ponto, ou seja, pelo poder vale tudo? Afinal, dependendo da resposta, a sua identidade nacional e a sua consciência cidadã tendem a ser reveladas.

Veja, esse é um questionamento o qual não cabe ficar em cima do muro. Acontece que se a resposta for positiva, ela não vale somente na perspectiva dos grandes poderes. Esse tudo engloba o micro e o macro nas relações sociais, de modo que ele representa a abdicação de todas as crenças, valores e princípios fundamentados pela dignidade, pela ética e pela moral. Vale atentar contra as leis. Vale exercer a corrupção. Vale ameaçar à vida alheia. Vale depredar o patrimônio público. Vale lutar contra à Democracia. ...

De modo que esse tipo de apoio representa uma legitimação que não trata somente da liberação para o caos social. Nas suas entrelinhas há, também, uma legitimação para a perpetuação histórica daqueles que sempre detiveram os poderes nas mãos. O que significa dar permissão para que essas pessoas permaneçam definindo os rumos do país, o cotidiano dos cidadãos, segundo as suas pretensões e interesses particulares. O projeto de governança que essas pessoas têm em mente não passa pela observância e o atendimento às demandas da grande massa da população. Por isso, qualquer um que venha a se mostrar um obstáculo aos seus planos é, automaticamente, rotulado e tratado como inimigo.  

E não há dificuldade de se entender esse cenário, quando se pode, além de revisitar as páginas da história, observar como agem certos países, por aí, em plena contemporaneidade. O mundo está repleto de autocracias e, contrariando às expectativas, de uns e outros, nem todas são de natureza ultradireitista. As dificuldades em lidar com as incertezas, cada vez mais recorrentes, têm levado os modelos de governança a um alinhamento autocrático, que se traduz por certas características: centralização do poder, manipulação do sistema político e eleitoral, nacionalismo, elitismo, conservadorismo, entre outras.

Para o topo das pirâmides sociais, a preservação dos seus poderes parece estar na total dependência dessa manifestação tirânica, autoritária, opressora. Por isso, apesar de clichê, o mundo vive sob constante ameaça, legitimada pelos fins justificando os meios. Como se todos os recursos fossem válidos nessa luta. Enquanto isso, o planeta Terra se esfacela, sob diferentes formas, diante dos nossos olhos. Eventos extremos do clima. Deslocamentos forçados. Escassez hídrica e de alimentos. Insuficiência habitacional. Empobrecimento. Adoecimento físico e mental. ... Acontecimentos que as disputas do poder, em si mesmas, jamais conseguirão equacionar e/ou resolver.

Aos trancos e barrancos, o Brasil chegou ao século XXI, se negando a ver, a falar, a ouvir, a desconstruir e a ressignificar a sua história. Como vemos, o exercício da negação é inglório, é inútil. O mundo gira, gira, até que, em um dado momento, seja preciso enfrentar de peito aberto aquilo que nos incomoda, nos desinquieta, nos amedronta. Aí, a gente descobre que “As pessoas sabem aquilo que elas fazem; frequentemente sabem por que fazem o que fazem; mas, o que ignoram é o efeito produzido por aquilo que fazem” (Michel Foucault). Portanto, “O novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta” (Michel Foucault). 


sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Reflexões sobre o trabalho

Reflexões sobre o trabalho

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Segundo a Oxford Languages, dentre os verbetes que definem o trabalho, aquele que se apresenta de maneira mais verdadeira é “conjunto de atividades, produtivas ou criativas, que o homem exerce para atingir determinado fim”. Digo isso, considerando o fato de se tratar de algo atemporal na historicidade humana. O trabalho, nesse contexto, sempre esteve presente na realidade dos indivíduos, independentemente, de qualquer situação.

No entanto, foi a partir do cenário pré-capitalista, que ele transitou do sistema de trocas para o sistema remunerado por moeda, efetivamente. Daí para a Revolução Industrial, a qual também revolucionou as relações de trabalho, muita coisa mudou! O ser humano viu-se obrigado a compatibilizar o seu dia entre diferentes atividades, ou seja, vida pessoal, vida em família, trabalho, descanso, alimentação, lazer, ... Então, de repente, a conta das horas deixou de fechar!

O modo como a humanidade estabeleceu a distribuição do tempo diário, em 24 horas, passou a ser insuficiente para atender a todos os papeis sociais da humanidade. Afinal de contas, o tempo do trabalho não se restringe ao tempo no ambiente de trabalho. Há todo um conjunto de atividades a serem cumpridas. Higiene pessoal. Organização dos materiais de trabalho. Refeição. Deslocamento ida e volta.  Enfim... Enquanto isso, os segundos do relógio estão em ritmo frenético!

E essa jornada repetida diariamente ao longo de semanas, meses e anos, por mais que ela represente algo importante e significativo para o indivíduo, isso não o exime da exaustão. O trabalho nos moldes da realidade contemporânea é extremamente pesado, para uma imensa maioria da população. A flagrante desigualdade salarial impõe, aos milhares de cidadãos, da grande base da pirâmide social, o cumprimento de jornadas múltiplas para conseguir uma renda minimamente satisfatória.

Acontece que, para atender ao ritual que precede a ida para cada trabalho, o tempo necessário para as demandas existenciais se torna cada vez mais exíguo. Sobretudo, quando se considera a geografia das cidades. As distâncias para deslocamento são um dos maiores inimigos dos trabalhadores. Dentro dos diversos meios de transporte, eles perdem um tempo precioso, em razão de acidentes, congestionamentos, interrupção de vias, violência, alagamentos, ... até conseguirem, finalmente, chegar ao local de trabalho. Isso antes de pensar como pode ser o trajeto de volta para casa.

Não é à toa que a classe trabalhadora venha se mostrando cada vez mais doente. A rotina extenuante da sobrevivência expôs o corpo, a mente e a alma, a um nível de tensionamento e sobrecarga inimaginável. A expectativa de vida para os habitantes de grandes cidades e regiões metropolitanas tem sido cada vez menor, se comparada a lugares onde os impactos da urbanização e do desenvolvimento são menos expressivos. E essa é uma das consequência da constante busca por mais e melhores oportunidades de trabalho, nos grandes centros.

O que significa que o cidadão sacrifica diretamente a sua qualidade de vida, ou seja, o conjunto de fatores relacionados com a sua condição física, social e psicológica, comprometendo, então, a sua expectativa de vida. Algo facilmente percebido através da aferição do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), concebido pela Organização das Nações Unidas (ONU), visto que ele ao buscar avaliar a qualidade de vida e o desenvolvimento econômico, através dos parâmetros longevidade, educação e renda, espera encontrar um contexto de equilíbrio.

Por isso, o mundo vem realizando uma verdadeira cruzada no sentido de desconstruir certas práxis e paradigmas do mundo trabalho. Um dos temas mais discutidos tem sido a redução da carga horária semanal. A própria Organização Internacional do Trabalho (OIT) em conjunto com a Organização Mundial da Saúde (OMS) já dispõem de estudos que mostram o crescimento de mortes por doenças cardíacas e por acidente vascular cerebral, devido a longas jornadas de trabalho. Cada vez mais, o mercado de trabalho tem lidado com situações de acidentes e afastamentos causados por doenças profissionais, aquelas que ocorrem por exposição contínua do trabalhador aos agentes de risco, ou por doenças do trabalho, aquelas que resultam das condições do ambiente ocupacional.

Isso possibilita entender que trabalhadores extenuados são uma realidade contraproducente. Daqui e dali proliferam casos de Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho (DORT), Lesão por Esforço Repetitivo (LER), Síndrome de burnout, Transtornos Mentais (depressão, síndrome do pânico, ansiedade, estresse pós-traumático). Desse modo, adoecidos, desmotivados, cansados, eles não conseguem, por mais que se dediquem e se esforcem, cumprir as metas e os objetivos que lhes são impostos. Nem tampouco, se dedicarem a um processo de formação continuada para melhorar a sua qualificação.

O poeta gaúcho Mario Quintana escreveu, “Existe um momento na vida de cada pessoa que é possível sonhar e realizar nossos sonhos ... e esse momento tão fugaz chama-se presente e tem a duração do tempo que passa”. Pois é, um lembrete poético a todos os seres humanos de que o trabalho faz parte da vida e precisa, necessariamente, se equilibrar à dinâmica que estabelece com ela. Segundo o escritor inglês Aldous Huxley, “Todo excesso traz, em si, o germe da autodestruição”. Portanto, não nos esqueçamos de que o trabalho seja para viver e não, um viver somente para trabalhar. 

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Promessas ...

Promessas ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Promessas não representam garantias. O mundo contemporâneo não se cansa de fazê-las, esquecendo-se voluntariamente da responsabilidade que isso implica. Vendendo a máxima de que qualquer sonho pode ser satisfeito através do consumo de um bem, produto ou serviço, bastando apenas o dinheiro para adquiri-lo, a contemporaneidade é o poço das ilusões.

Afinal, a teoria é uma. A prática é bem outra. Não, não se pode esquecer de que a historicidade humana é marcada pelas desigualdades sociais, o que torna essa dinâmica distante de qualquer igualdade, de qualquer equidade.

E enquanto o frenesi contemporâneo não para, a raça humana vai deteriorando, de maneira intensa e ininterrupta, a sua saúde mental, através de uma luta inglória imposta por tantas promessas sem garantias.

Bem, se engana quem pensa que a saúde mental diz respeito somente ao estresse, à fadiga, à ansiedade, à depressão, aos distúrbios do sono, aos pensamentos suicidas, ...

Todos esses sintomas e manifestações constroem uma dinâmica psico-comportamental demasiadamente fragilizada e vulnerabilizada. O que faz o indivíduo perder o seu balizamento em relação à satisfação pessoal, ao seu bem-estar, às suas capacidades, às suas realizações.

E quanto mais ele se distancia das suas esperanças, das suas expectativas, das suas perspectivas, mais ele se torna um alvo dos discursos e manipulações ideológicas, cujo viés objetiva enredá-lo a um contexto de mais promessas.

Na medida em que elas são construídas exatamente para satisfazer às suas frustrações, decepções, angústias, perdas, o ser humano vai se permitindo alienar, a tal ponto em que desenvolve um fanatismo, uma obsessão, em torno de certas ideias.

Ora, as promessas funcionam como verdadeiras boias de salvação, um porto seguro em meio a um mar de incertezas. De modo que, inadvertidamente, o ser humano acaba sendo induzido a se render a elas. Como um analgésico de efeito imediato e polivalente, capaz de aliviar os sofrimentos que lhe habitam o consciente e o inconsciente.

Mas, como toda medicação, seu efeito colateral mais importante é a destruição identitária. O indivíduo perde a manifestação do seu protagonismo identitário e passa a ser mais um, no chamado efeito manada.

O fanático é um ser despojado da sua personalidade, da sua identidade. Ele é um ser submisso, dependente, dominado, serviçal, ao que uma realidade paralela seja capaz de lhe oferecer em termos de satisfação pessoal. Porque essa promessa idealizada é o que parece lhe trazer sentido existencial.

O fanatismo, no fundo, é uma experienciação daquilo que não se é; mas, gostaria de ser. Quem não se lembra dos Kamikaze, os pilotos dos aviões japoneses, durante a Segunda Guerra Mundial, que realizaram ataques suicidas contra os navios dos Aliados? Eles se voluntariavam sob a justificativa patriótica de se sacrificar pelo imperador japonês. Uma demonstração de nacionalismo heroico.

Como escreveu Umberto Eco, em O Nome da Rosa (1980), “Teme, Adso, os profetas e os que estão dispostos a morrer pela verdade, pois de hábito levam à morte muitíssimos consigo, frequentemente antes de si, às vezes em seu lugar”.

Portanto, a análise a se fazer é de natureza ética e moral. Não é sobre o fanático; mas, aquele, cuja promessa, o induz ao fanatismo, à obsessão.  Afinal, aproveitando-se da fragilidade e da vulnerabilidade existencial humana, impõe-se uma pseudoverdade até as últimas consequências.

O que significa que as promessas contemporâneas estão banhadas pela perversidade, pela crueldade, pelo desrespeito ao ser humano. Elas têm objetificado cada vez mais os indivíduos, para que sirvam de instrumento para a realização dos interesses de outros.

As promessas tornaram-se expressões máximas da violência. Por trás de suas diferentes formas e conteúdos estão massas de manobra dispostas em diversos cantos do planeta. Promessas políticas. Promessas religiosas. Promessas de prosperidade. Promessas de poder. Promessas de liberdade. ...

Desse modo, não vejo outro caminho a não ser concordar com Eduardo Galeano, quando escreveu que “No manicômio global, entre um senhor que julga ser Maomé e outro que acredita ser Buffalo Bill, entre o terrorismo dos atentados e o terrorismo da guerra, a violência está nos arruinando”.  

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

O essencial e o supérfluo

O essencial e o supérfluo

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Dois pesos e um milhão de medidas. Essa é a receita rançosa que os descendentes diretos da herança colonial brasileira empregam, quando almejam defender seu conjunto histórico de regalias e privilégios. Haja vista a proposta do corte de gastos, pelo governo federal, sob imensa pressão de representantes e simpatizantes da direita nacional e de seus matizes; sobretudo, os mais radicais e extremistas.

Para essa gente, o que importa é o topo da pirâmide social. O resto é, literalmente, resto. E esse é um pensamento velho e roto! Na história do mundo, as camadas mais frágeis e vulneráveis das sociedades sempre foram alvo preferencial da sanha econômica das elites dominantes. Figurando à beira da indignidade, como os verdadeiros pagadores de impostos.

Não é à toa que, um belo dia, viu-se acontecer a primeira revolução popular da história, a Revolução Francesa! O limite da espoliação social culminou na insurreição popular. A desigualdade social afrontou a tirania dos poderosos. De repente, a liberdade, a igualdade e a fraternidade invadiram as ruas de Paris, no século XVIII, para jamais serem esquecidas.

E mesmo, com todos os esforços da Revolução Industrial, na segunda metade do século XVIII, na Inglaterra, para silenciar os arroubos populares pela Europa, o precedente havia sido aberto. A discussão, a reflexão, a crítica, sobre as relações sociais estavam postas para sempre. Um lampejo de visibilidade havia sido ofertado às camadas populares. Desde esse momento, então, a luta contra as desigualdades sociais vem sendo travada, mundo afora.

No Brasil, com sua historicidade colonial muito bem marcada, não poderia ser diferente. O modelo social não foi alterado a partir da ruptura da condição de ex-colônia de exploração portuguesa. Os herdeiros diretos da monarquia e da burguesia permaneceram repetindo os mesmos valores, crenças, princípios e protocolos, presentes entre os séculos XVI e XIX. O que significa que as camadas populares permaneceram alijadas dos seus direitos humanos e cidadãos.

De modo que é dessa conjuntura que emerge o ódio da direita nacional e de seus matizes; sobretudo, os mais radicais e extremistas, contra a esquerda. Que ultrapassa as fronteiras e limites das divergências ideológicas para alcançar um desejo incontrolável de banimento social de determinados indivíduos. Algo que se materializa pelas atitudes contínuas de reafirmação da necropolítica 1, no país. Relembrando a sabedoria poética de Chico Buarque, “Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir / A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir / Por me deixar respirar, por me deixar existir / Deus lhe pague ...” 2.

Então, quando se tenta inviabilizar um governo de esquerda, tomando como alvo o enrijecimento dos seus recursos econômicos, segundo os parâmetros e perspectivas impostos pelas forças direitistas, se estabelece uma inviabilização dos projetos de políticas públicas. De maneira simplista, o tensionamento impositivo para cortes de gastos profundos, sob pretexto de equilíbrio fiscal do país, não passa, na verdade, de uma camada da necropolítica.

Afinal de contas, quando observados os detalhes e as entrelinhas desses cortes, ficam evidentes todos os tipos de desigualdade. As camadas mais frágeis e vulneráveis irão pagar pelo ônus dos seus prejuízos sociais, na medida em que suas históricas demandas e mazelas permanecerão à margem de qualquer solução concreta e efetiva. Demonstrando como os cortes de gastos governamentais têm sim, um caráter de impedir qualquer melhoria que possa desencadear esperança de uma futura mobilidade social.  

Além disso, atingir as políticas públicas através de cortes orçamentários profundos representa uma maneira sutil de esgarçá-las até o ponto de se chegar a um discurso justificante para privatizar questões de suma importância social.  Saúde. Educação. Segurança. ... Levando à uma precarização total da dignidade humana e, por consequência, inevitável, do país.  

Infelizmente, não é de se espantar que as políticas públicas sejam entendidas como gastos. Porque a história política e social brasileira foi constituída invisibilizando parcelas inteiras da população. Os direitos, os poderes, as regalias e os privilégios eram de propriedade exclusiva das elites nacionais, dos donos dos meios de produção, das oligarquias. Como uma herança que se transmitiu de geração em geração até os dias atuais.

Mas, observando com total atenção a realidade contemporânea, fico me questionando quanto ao estrabismo intelectual dessas pessoas, ao não perceberem que o engessamento econômico que estão impondo, tão severamente, pode ruir, não pelas demandas populares; mas, pela força impetuosa dos agentes imponderáveis que rondam o planeta. Suas certezas podem virar fumaça, de uma hora para outra, à revelia de suas vontades e quereres.