sábado, 30 de março de 2024
Traição. Traidores. Traídos. A história do mundo.
Traição.
Traidores. Traídos. A história do mundo.
Por Alessandra
Leles Rocha
Hoje é Sábado de Aleluia! Segundo
os mais antigos, dia de malhar o Judas, o traidor de Cristo. Mais uma daquelas
crenças punitivistas que envolvem a humanidade. Como se a violência contra o
traidor fosse a única forma de aplacar a indignação popular ou de expressar um efeito
prático sobre o ato e as consequências de deplorável desvio ético e moral.
Assim, decidi tecer minhas
reflexões sobre a traição. Não creio que ela repercuta pior sobre quem sofre,
do que sobre quem a pratica. Aliás, Judas é um bom exemplo disso. A consciência
em relação à sua traição foi algo tão pesado, tão insuportável, que ele acabou
tirando a própria vida. Nem as trinta moedas de prata foram suficientes para
aplacar a sua angústia.
E não importa se a traição
envolve ou não uma paga. Sejam quais forem os nossos atos, eles antes de
consumados passam pelo crivo decisório da nossa consciência. Não importa se há uma
busca por argumentos e justificativas para se tentar aplacar o drama da culpa.
Trair é uma escolha, tanto quanto qualquer outra. Talvez, com a diferença de
que ela inspire uma sensação de poder, de flerte com o perigo, que apela para o
irresistível.
O que significa que trair é um
gesto altamente narcísico, individualista. O traidor está sempre centrado em si
mesmo, nos seus interesses, nas suas vontades, nos seus quereres. A traição é,
portanto, uma ruptura total com a alteridade. Ela se abstém completamente de fazer com que o
traidor, por um segundo sequer, se coloque no lugar do outro, apto a entender
suas angústias e dimensionar os sofrimentos que se desencadearão a partir daquela
traição.
Portanto, o traidor sabe
exatamente o que está fazendo. Por mais que ele tente agir como se nada tivesse
acontecido, não há como negar, como esquecer. O que significa que a traição o assombrará
para o resto da vida. Afinal, mais do que a opinião do mundo, a própria opinião
é bem mais implacável e severa; pois, a voz da consciência jamais silencia a
uma falta deliberadamente cometida.
Não é à toa que muitos tentam se
redimir, se desculpar. Mas é inútil. A traição é uma escolha que abre precedentes
perigosos. Quem trai uma vez acaba traindo outras, por motivos diversos;
sobretudo, quando enxerga a possibilidade de ser perdoado. Desse modo, ela se
repete porque encontra espaço para libertar o seu traço de covardia, de medo,
de fraqueza, diante da inexistência de valores altruístas, respeitosos, generosos,
desapegados, humanitários, na relação com o outro.
Ora, essa é uma maneira do
traidor mentir ou omitir sobre suas intenções, a fim de não revelar exatamente qual
é a sua verdadeira essência humana. É por essas e por outras que o mundo se vê
repleto de relações superficiais, protocolares, formais. Cheios de beijos e
abraços traidores.
Vamos e convenhamos, é cada vez mais raro encontrar a dignidade, a franqueza, a honestidade ou a lealdade, circulando por aí. A contemporaneidade com toda a sua pressa, imediatismo, consumismo, liberdade sem limites, ressalta a ideia de que “Vivemos em tempos líquidos. Nada foi feito para durar” (Zygmunt Bauman) e esse é um campo aberto para a traição. Pois, nesse sentido, “A preocupação com a administração da vida parece distanciar o ser humano da reflexão moral” (Zygmunt Bauman). Assim, façamos uma análise profunda a respeito.
sexta-feira, 29 de março de 2024
Nem só de dor e sofrimento existe o luto
Nem só de
dor e sofrimento existe o luto
Por Alessandra
Leles Rocha
Vejo na Paixão de Cristo a
síntese do luto em todas as suas dimensões, as quais ultrapassam os limites ou fronteiras
religiosas, para adquirir o afago e a compreensão emanados pela fé.
Sei que é difícil falar e lidar
com certas temáticas, tais como a perda, a morte, a ausência; sobretudo, para
nós ocidentais. Daí eu considerar a morte do nazareno, algo tão importante e
significativo, do ponto vista em que ela nos permite enxergar e compreender essa
situação inevitável.
Jesus crucificado nos permite
olhar para si e para o outro na perspectiva da finitude, da efemeridade, da
incerteza, que nos acompanha desde sempre. Sob a forma de gente de carne e
osso, não há absolutamente nada que subtraia a nossa vulnerabilidade
existencial. Nascemos e vamos morrer.
Não, não somos infalíveis, indestrutíveis,
imbatíveis ou superpoderosos. Somos apenas seres em elaboração, em construção, em
evolução, que precisam provar do sal e do mel, para caberem na sua identidade,
na sua missão de vida.
Por isso, vida e morte não se
dissociam. Ninguém nasce sabendo exatamente o local, o dia e a hora da partida.
O que demonstra a necessidade de se buscar fazer mais e melhor, antes que as
luzes se apaguem, que as cortinas se fechem, que o silêncio se manifeste.
Um aviso sutil de que a morte deveria
ser sempre o desfecho de uma vida produtiva, proveitosa, útil, profícua. Para desse
modo reduzir o pesar, a tristeza e o desconforto de não ter mais tempo para ser
e realizar. Como foi a vida do Cristo.
Ele viveu pouco, mas
intensamente. Seguiu à risca os seus propósitos. Não deixou nada por fazer. Partiu
leve, sem bagagens, sem amarras.
Ciente de que a vida e a morte
tinham cumprido perfeitamente o seu papel. O que possibilita olhar para o luto
de Cristo de uma perspectiva muito especial.
Todo o repugnante ciclo de
calvário, ao qual Ele foi arbitrariamente submetido, é óbvio que reacende a
dor, a indignação, o inconformismo, ... como em qualquer situação de luto.
Entretanto, na brevidade com que
se estabelece a Páscoa, o momento da ressurreição, do renascimento, é possível assimilar
o luto pelo legado de Cristo.
A vida retorna através da obra e de
seus desdobramentos sobre os que ficaram, sobre o mundo. O luto começa a se
apaziguar, quando as lembranças, as memórias, deslocam a tristeza, a saudade, o
inconformismo, para espaços mais distantes no sentir.
A reverência cristã à Semana
Santa é um ato simbólico de respeito, de reflexão; mas, não, de luto. Afinal de
contas, Cristo vive e convive com a humanidade através da atemporalidade do seu
legado, de modo que Ele participa cotidianamente dos movimentos da vida.
É assim que todos os nossos lutos
deveriam ser experenciados, ou seja, a partir dos legados que nos foram
deixados. Aliás, há uma citação, de autoria desconhecida, que diz “Cada
pessoa que passa em nossa vida, passa sozinha. É porque cada pessoa é única e nenhuma
substitui a outra! Cada pessoa que passa em nossa vida passa sozinha e não nos
deixa só porque deixa um pouco de si e leva um pouquinho de nós. Essa é a mais
bela responsabilidade da vida e a prova de que as pessoas não se encontram por
acaso”.
De modo que, olhando para o luto do
Cristo e todas formas e expressões de luto existentes no mundo, acabo por entender
a necessidade de admitir que há, por trás de todas as lágrimas, dores, angústias
e consternação, um aura de gratidão sublime.
Não esquecer o que de mais belo,
puro e sagrado nos foi deixado, por alguém muito especial, é motivo de profunda
gratidão. É o que dá significado e significância para a existência humana.
Como dizia o jornalista e escritor Caio Fernando Abreu, “Uma pessoa não precisa estar a vida inteira ao seu lado para se tornar única e inesquecível”, simplesmente, porque “Nós não nos lembramos dos dias, nós nos lembramos dos momentos” (Cesare Pavese). Nos lembramos do legado.
quinta-feira, 28 de março de 2024
Democratas ou não democratas? Eis a questão!
Democratas
ou não democratas? Eis a questão!
Por Alessandra
Leles Rocha
Olhando para certas atitudes do
atual governo, não pude deixar de lembrar a célebre citação de Pablo Neruda: “Você
é livre para fazer suas escolhas, mas é prisioneiro das consequências”. Afinal,
uma tomada de decisão pressupõe uma análise criteriosa do todo e não, de uma
única parte da história.
Nem é preciso dizer que a
sociedade brasileira, ao menos uma significativa parcela, passou os últimos
seis anos, preocupada com a deterioração fragilizante da Democracia nacional.
Acontece que essa vulnerabilidade
é, na verdade, parte integrante e integrada de uma marca histórica. Ora, a
transição entre Monarquia e República, no Brasil, não teve espaço para uma
discussão democrática, para uma incorporação desses valores e princípios. Então,
como dizem, por aí, aquilo que começa equivocado vai equivocado até o fim!
De fato, colocando reparo na
história colonial brasileira, realmente é difícil entender como a Democracia, um
regime político em que os cidadãos podem exercer a sua cidadania, diretamente
ou através da representação político-partidária, no que diz respeito ao
desenvolvimento do país, à criação de leis ou exercendo o poder de governança através
do voto, seria incompatível ao diverso espectro de desigualdades sociais,
bastante consolidado por aqui.
Já dizia o ex-Deputado federal
Ulysses Guimarães, “Todos os nossos problemas procedem da injustiça. O privilégio
foi o estigma deixado pelas circunstâncias do povoamento e da colonização, e de
sua perversidade não nos livraremos, sem a mobilização da consciência nacional”.
Portanto, esse é o ponto de
partida para entender a dimensão do impacto do conservadorismo político, quando
esse não se inibe ou constrange em afrontar a Democracia nacional.
Esses pouco mais de 500 anos de
história deixam tudo às claras. Todas as ameaças contra a Democracia já
enfrentadas, até aqui, foram anistiadas por uma condescendência, uma tolerância,
uma transigência, sem precedentes, em razão de que os responsáveis eram figuras
pertencentes ao topo da pirâmide social brasileira.
O que significa gente com todos os
poderes e as influências, nas mãos. Gente que manda e desmanda, que faz e
acontece, que definitivamente determina os rumos da nação.
Algo didaticamente explicado por Darcy
Ribeiro, quando ele afirma que “O ruim no Brasil e efetivo fator do atraso,
é o modo de ordenação da sociedade, estruturada contra os interesses da população,
desde sempre sangrada para servir a desígnios alheios e opostos aos seus... O
que houve e há é uma minoria dominante, espantosamente eficaz na formulação e
manutenção de seu próprio projeto de prosperidade, sempre pronta a esmagar
qualquer ameaça de reforma da ordem social vigente”.
Então, olhando para a última
dessas ameaças contra a Democracia, materializada pelos episódios que
antecederam e culminaram no 8 de janeiro de 2023, é fundamental ter à
consciência de que tudo isso só aconteceu, porque todas as outras ameaças já haviam
sido negadas, invisibilizadas, esquecidas, na poeira do tempo.
Bem, alerta Confúcio, filósofo
chinês, que “Não corrigir nossas falhas é o mesmo que cometer novos erros”, ou
seja, um modo sutil de abster-se da credibilidade, da dignidade, da honradez,
abrindo precedentes, cada vez mais, perigosos e devastadores às pretensões
democráticas.
Assim, a questão é muito simples:
ou o governo está ou não está com a Democracia? Pretende defendê-la ou não? Pretende
mantê-la ou não? Perguntas diretas e objetivas. Não há espaço para meio termo.
Segundo Aldous Huxley, autor de O
ADMIRÁVEL MUNDO NOVO, “Se considerais ter agido mal, arrependei-vos, corrigi
os vossos erros na medida do possível e tentai conduzir-vos melhor na próxima
vez. E não vos entregueis, sob nenhum pretexto, à meditação melancólica das
vossas faltas. Rebolar no lodo não é, com certeza, a melhor maneira de alguém
se lavar”.
Como já afirmei, várias vezes, não
creio em coincidências ou acasos. Creio nas conjunturas que movem as engrenagens
da história do mundo.
Portanto, tenho comigo que todos
os acontecimentos, os quais antecederam e culminaram no 8 de janeiro de 2023, fizeram
com que este emergisse como uma oportunidade única para se passar a história
brasileira a limpo; sobretudo, do ponto de vista da sua percepção democrática.
Um fato que inclui
necessariamente, lançar a devida atenção para essas seis décadas de silêncio
que marcam os acontecimentos, desdobramentos e reverberações, dos terríveis Anos
de Chumbo, no país 1.
Assim, dentro desse contexto, as
palavras de Darcy Ribeiro são precisas para contextualizar a atemporalidade
dessa toxicidade silenciosa.
Pois, segundo ele, “A mais
terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de
torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e
classista. Ela é que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta
a torturar, seviciar e machucar os pobres que lhes caem às mãos. Ela, porém,
provocando crescente indignação nos dará forças, amanhã, para conter os
possessos e criar aqui uma sociedade solidária” 2;
uma nação democrática, de fato e de direito. Essa é a reflexão a se fazer!
1 60
ANOS DO GOLPE DE 1964 - https://www.youtube.com/watch?v=_q3600OC_Iw
60 anos do Golpe Militar de 1964 - Ditadura e
Minorias - https://www.youtube.com/watch?v=NBcoVZUqpIE
O ASSASSINATO DE RUBENS PAIVA E O PERDÃO AOS CRIMES
DE MILITARES NO REGIME - https://www.youtube.com/watch?v=yY9CBakO9vI
2 RIBEIRO, D. O Povo Brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
terça-feira, 26 de março de 2024
A precificação da desobediência jurídica
A
precificação da desobediência jurídica
Por Alessandra
Leles Rocha
Diante de recentes
acontecimentos, dois exemplos chamaram a atenção de como o poder capital tem
precificado a desobediência jurídica, no sentido de uma flexibilização
tendenciosa do cumprimento das decisões dos tribunais.
Após condenação por estupro,
jogador de futebol brasileiro pagou fiança de 1 milhão de euros para aguardar
em liberdade os trâmites dos recursos impetrados junto à justiça espanhola.
Mesmo com decisão do Tribunal de Justiça
de São Paulo, barrando o evento no Teatro Municipal, em homenagem a ex-primeira
dama do país, com imposição de multa a um eventual descumprimento, a Prefeitura
da capital paulistana não desistiu de realizá-lo.
Há quem não veja gravidade nessas
situações; mas, há. Quando o dinheiro é colocado a serviço de uma manipulação
enviesada do ordenamento jurídico, no contexto de uma flagrante afronta à
Justiça, isso representa sim, um acirramento da desigualdade, uma ruptura com o
princípio da igualdade e da equidade social.
Trata-se de uma maneira de precificar
o delito, o crime, a infração. Aquele que pode pagar, que dispõe de poder
capital suficiente para arcar com determinado custo, é beneficiado de certas
regalias e privilégios. Como se lhe fosse dado um aval para infringir a lei.
Isso não só transmite uma ideia
de impunidade aos que detém o poder capital, como banaliza o delito, o crime, a
infração, construindo um movimento de insegurança jurídica, na medida em que possibilita
divergências e tendenciosidades na interpretação do ordenamento legal. Diante de
diversos pesos e medidas, a lei se perde no resguardo do direito, mediante o
peso do poder capital.
Acontece que isso, de certa
forma, desnuda uma verdade histórica. A velha máxima de uma justiça cega, que advém
necessariamente desse modelo. É preciso olhar com atenção, e isenção, para
entender que a justiça é constituída e estruturada por um padrão social elitista,
por um grupo restrito e privilegiado de pessoas.
De modo que sua aplicação, ao
longo de séculos e séculos, nunca foi homogênea. Houve sempre um protecionismo,
uma parcialidade, um partidarismo, nos cursos processuais e decisórios. O que
significa um trato assimétrico à população.
Não é uma questão de instância,
ou de foro. Desde o início dos trâmites legais já se percebe a desigualdade e,
por consequência, o conjunto de impossibilidades que tendem a marcar o
desenrolar do processo. Afinal de contas, as marcas do poder capital não deixam
dúvidas como os seres humanos são, ainda, em pleno século XXI, tratados na base
do “vale quanto pesa”.
O que explica essa epidemia contemporânea
de superioridade que se alastra, cada vez mais desumana, por todo o planeta. Parece
existir um temor tão grande, tão exacerbado, por parte dos grupos sociais
dominantes, quanto a perder suas regalias e privilégios históricos ou
conquistados em razão da sua imersão em classes emergentes, que eles não se
constrangem em usar o artifício do poder capital para moldar a justiça, segundo
seus interesses.
Precificar o delito, o crime, a
infração, é, então, uma manifestação de caráter narcísico. Um modo de reafirmar uma liberdade que não
encontra limites ou obstáculos, de nenhuma natureza. Que amplifica a sensação de
poder absoluto sobre o mundo. Que não se importa em se despir da dignidade cidadã
e humana. Em suma, uma ruptura completa com os valores éticos e morais, mais
fundamentais. Como quem manda às favas, todos os escrúpulos!
Como disse Mario Sergio Cortella, “É necessário cuidar da ética para não anestesiarmos a nossa consciência e começarmos a achar que tudo é normal”. Sobretudo, nesse país, em que o ranço colonial ainda permite que o poder capital estabeleça, em torno de uns e outros, uma aura de respeitabilidade e de reverência, a qual os absolve, de antemão, de quaisquer delitos, crimes ou infrações que tenham cometido. Infelizmente, construindo uma legião de indivíduos impunes e acima de qualquer suspeita.
segunda-feira, 25 de março de 2024
A morte não é mesmo o fim...
A morte
não é mesmo o fim...
Por Alessandra
Leles Rocha
É, a morte não é mesmo o fim. Especialmente,
quando ela chega através do crime. A morte criminosa é uma história que não tem
ponto final, ela tem reticências que reverberam os acontecimentos, à revelia de
quem quer que seja. Como se a verdade precisasse ser digerida, processada, diversas
vezes, até esgotar o seu limite. Não é à toa que dentro do universo jurídico há
quem não se canse de afirmar que não exista crime perfeito.
Não mesmo! Crimes não são solução
de nada. Quase sempre, eles amplificam as situações de maneira terrível e
irreversível. Haja vista os crimes de natureza política. Não se manda “recado”
através de uma figura pública. Figuras públicas nunca estão sós. Há sempre um
rol de seguidores, de apoiadores, de simpatizantes, dispostos a prosseguir defendendo
suas ideias, seus projetos, seu legado.
Acontece que não para por aí. Mortes
criminosas levantam suspeitas, especulações, teorias da conspiração, ... que
visam, única e exclusivamente, obter respostas claras e objetivas em relação
aos fatos ocorridos. Portanto, elas causam de imediato um desassossego, uma
aflição, uma angústia, fazendo emergir uma corrente investigativa de amplo
espectro. Quase como um trabalho de formiguinhas.
Assim, a morte não é só a morte;
sobretudo, quando é criminosa. É como diz a expressão popular, “Atira no que
viu e acerta no que não viu”; pois, verdade seja dita, todo crime se deita
sobre uma cama de promiscuidade social. Uma teia de ligações perigosas, de
interesses, de poderes, de ambições, de regalias e de privilégios, que não
podem ser desestabilizadas por nada nem por ninguém.
Essa é a razão que explica o
frisson em torno da prisão dos suspeitos de terem assassinado a ex-vereadora
carioca, Marielle Franco, e seu motorista, Anderson Gomes 1.
Considerando o histórico brasileiro, que desenhou uma estrutura social muito
bem definida, na qual o poder econômico de uma ínfima minoria é o que determina
os rumos do país, o Brasil não é um país de todos; mas, de muito poucos.
E são esses, dotados de todas as
prerrogativas sociais elitistas, que mandam e desmandam, que fazem e acontecem,
nutridos de uma consciência de profunda importância social. Sentem-se acima do
bem e do mal. Superiores. Inatingíveis. Extraordinários. Distintos. ...
Eis que, de repente, neste caso, a
consciência de que houve um crime político se expande para entender que o
criminoso é o próprio Estado brasileiro. Todas as figuras envolvidas, apontadas
direta ou indiretamente, estão relacionadas ao poder estatal. Como num passe de
mágica, Marielle se tornou apenas a ponta de um iceberg que desnuda o gigantesco
bloco a representar as mais abjetas e nefastas relações sociais, políticas e
institucionais, brasileiras.
Estado, polícias, milícias, crime
organizado, contravenção, ... tudo junto e misturado, ao melhor estilo novelístico
nacional. Aliás, a última cena do filme Tropa de elite 2: O inimigo agora é
outro 2, de 2010, já mostrava isso com muita
propriedade!
Não é à toa que o modelo de
organização de poder, no país, transcorra dessa forma. Essa é uma estrutura
histórica, de pouco mais de 500 anos. O que lhe garante é o capital,
independentemente da sua origem. Portanto, o poder capital foi e é o fiador
absoluto de todos os demais poderes e influências, no país.
Isso explica, por exemplo, o imenso
desafio em se combater a corrupção nacional, na qual uma das suas manifestações
mais contundentes é o fisiologismo político. Que nada mais é do que permitir
estabelecer um tipo de relação de poder, em que as ações e decisões são
pautadas pela troca de favores, favorecimentos e inúmeros outros tipos de benefícios
a interesses privados, em prejuízo do bem comum. Afinal de contas, o poder
capital também é o fiador da impunidade nacional.
Nesse sentido, a prisão dos
suspeitos do Caso Marielle Franco encerra um capítulo; mas, não encerra a
história. Porque as vísceras do poder capital estão à mostra. A dinâmica da teia
de ligações perigosas, de interesses, de poderes, de ambições, de regalias e de
privilégios, foi revelada; mas, não foi interrompida.
O que significa que permanece,
pairando no ar, especialmente, em anos eleitorais, o risco de que as velhas práxis
criminosas possam operar. Basta que se sintam ameaçados de alguma forma, dando início
a uma nova saga de apurações e responsabilizações, mantendo a ideia desse ciclo
vicioso nacional.
Assim, sinto que a síntese dessas
horas cabe, perfeitamente, nas palavras do Padre Antônio Vieira, no século
XVII, “Há seres humanos que são como velas; sacrificam-se queimando-se para
dar luz aos outros”. Marielle cumpriu esse papel. Trouxe luz. Trouxe verdade.
Trouxe reflexão. Trouxe indignação. Nesse contexto, então, “A questão não é
se existe vida depois da morte. A questão é se você viveu antes da morte”
(Osho). E ela não só viveu, como permanece vivendo. Porque a morte não é mesmo
o fim.
domingo, 24 de março de 2024
A Semana Santa além de si mesma
A Semana
Santa além de si mesma
Por Alessandra
Leles Rocha
Esse não é um texto qualquer. Não
me dirijo apenas aos cristãos, no sentido daqueles que professam a fé em Jesus
Cristo; mas, a todos que depositam, de coração aberto, a crença no amor, na
fraternidade, na igualdade, e demais valores humanos.
Afinal, em pleno rito da Semana
Santa, me dei conta de que a data, neste ano, trazia algo a mais para a reflexão
dos (as) brasileiros (as). Coincidência? Acaso? Não. Particularmente, penso que
está na própria força do Sagrado a movimentação simbólica desse ocorrido.
Diante de uma contemporaneidade
que teima em dissociar as ideias e os fatos, tornando as informações rasas e,
tantas vezes, tendenciosas e equivocadas, é bastante significativo que a Semana
Santa mostre como suas reflexões são verdadeiramente atemporais. A saga de morte e renascimento do jovem
nazareno, o filho de Deus, transcende a si mesma e demonstra como a humanidade,
sob muitos aspectos, permanece a mesma.
Por isso, Cristo, na figura do
Deus humanizado, merece um olhar mais profundo e atento. Apesar de entregue para
expiar os pecados do mundo, Ele não desfrutou de quaisquer regalias ou privilégios,
durante sua breve estada neste mundo. Foi homem de carne e osso, vulnerável,
falível, comum, apesar da sua singularidade.
No entanto, foi o fato desse
cenário não lhe perturbar, o que provocou uma incompreensão generalizada das
pessoas, a seu respeito. Desapegado dos poderes, das paixões mundanas, das
riquezas e bens materiais, falando sobre amor, paz, igualdade, misericórdia,
perdão, comunhão, ... Cristo é simplesmente o oposto do mundo. Fosse naqueles
tempos. Fosse, agora, na contemporaneidade.
Aliás, essa constatação me faz
lembrar das palavras de Dom Hélder Câmara, “O verdadeiro cristianismo
rejeita a ideia de que uns nascem pobres e outros ricos, e que os pobres devem
atribuir a sua pobreza à vontade de Deus”; por isso, “Quando dou comida
aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto porque eles são pobres,
chamam-me de comunista”.
De modo que soa, de fato, muito
estranho, quando uns e outros se dizem professar a fé ao Cristo; mas, não se
permitem quaisquer gestos de benevolência, de compaixão, de tolerância, de
generosidade ou de piedade, com seus semelhantes. Afinal de contas, a escolha
de Cristo foi ser pastor dos pobres, dos desafortunados, dos indesejáveis, dos
marginalizados.
Gente, que assim como Ele, padece
das mesmas incompreensões, insultos, escárnios, desqualificações, ultrajes,
torturas, acusações e condenações sumárias. Aliás, é justamente sobre isso,
sobre todas essas reflexões, que a Semana Santa, verdadeiramente, se debruça e
clama por nossa atenção.
Ora, este é o momento para se
enxergar esse Cristo que fora despido da sua dignidade humana, por conta da
arbitrariedade, da crueldade, da arrogância, da mesquinhez, da mediocridade,
humana. Que fora pregado numa cruz de madeira à revelia de qualquer pecado, de
qualquer erro, de qualquer crime.
De modo que esse é o cerne da
reflexão. Não há espaço para discutir um renascimento existencial e filosófico,
como propõe esse período, sem que se enxergue e se compreenda a necessidade de uma
consciência moldada pela ética e moral fraternas.
Engana-se quem pensa que o Cristo
tenha sido crucificado somente uma vez. Na verdade, essa crucificação se repete
todas as vezes em que a humanidade se permite reverberar as suas incompreensões,
insultos, escárnios, desqualificações, ultrajes, torturas, acusações e
condenações sumárias, contra seus semelhantes.
Portanto, em sã consciência,
independentemente da fé que se professe, não há como caber sentimentos de renovação,
esperança e liberdade, dentro de uma alma que não se constrange diante da dor,
do sofrimento, da angústia e do desespero alheio. É contraditório demais, considerando
que a cada ataque à nossa dignidade humana, Ele padece conosco.
É tempo, então, de reavaliar a
nossa fé, a nossa conexão com o sagrado. De que forma o divino, o celestial, o
transcendental, participa da nossa vida? Que espaço Ele ocupa na manifestação
da nossa essência, diariamente? Essas não são perguntas para serem respondidas
com palavras; mas, com a consciência dos atos, das ações, da devoção, do fervor,
particular de cada um.
Como dizia Madre Teresa de
Calcutá, “Dê ao mundo o melhor de você. Mas isso pode não ser o bastante. Dê
o melhor de você assim mesmo. Veja você que, no final das contas, é tudo entre
VOCÊ e DEUS. Nunca foi entre você e os outros”.
Nesse sentido, desejo que essa Semana
Santa represente um ponto de mutação na sua vida. Rubem Alves afirmava que “Não
haverá borboletas se a vida não passar por longas e silenciosas metamorfoses”.
Verdade! Você não pode mudar, o
mundo não pode mudar, se não existir essa consciência, essa coragem, esse
despojamento, para desconstruir velhos paradigmas.
Assim, lembre-se de que “Cada vez que você faz uma opção está transformando sua essência em alguma coisa um pouco diferente do que era antes” (C. S. Lewis). Que tais transformações sejam, portanto, o símbolo de um renascimento de novas e melhores crenças, valores e princípios, em você e no mundo!
sábado, 23 de março de 2024
A lição de Pitágoras ...
A lição
de Pitágoras...
Por
Alessandra Leles Rocha
É triste dizer, mas não
surpreende a informação de que o “Abandono escolar atinge recorde histórico
entre crianças e adolescentes do Ensino Fundamental, como mostra IBGE” 1. Já dizia Darcy Ribeiro que “A crise
da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto” e ele tinha total
razão a respeito, bastando observar uma de suas considerações mais célebres, ou
seja, que “O Brasil, último país a acabar com a escravidão tem uma
perversidade intrínseca na sua herança, que torna a nossa classe dominante
enferma de desigualdade, de descaso” 2
.
Sim, tudo nesse país passa pela
desigualdade. Quando os dados mais recentes da Pnad (Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios Contínua) Educação revelaram a não recuperação da
educação nacional após a pandemia, a significativa distorção idade-série dos
alunos de 6 a 14 anos matriculados no Ensino Fundamental, a construção de uma
geração que se encaminha para uma realidade de não estudar e nem trabalhar, a
persistência de indicadores de analfabetismo, a insuficiência de creches
para atendimento da demanda de alunos de
0 a 3 anos e a evasão escolar, não temos como negar esse fato.
Mas, olhando especificamente para
a evasão, ainda que seja um viés de muitas camadas e complexidades, há um ponto
crítico que se destaca, a violência. Considerando que a violência é um
desdobramento da desigualdade, no contexto da realidade contemporânea, ela
passou a figurar cada vez mais presente dentro e fora dos muros da escola,
reproduzindo padrões de outros espaços sociais. Haja vista duas notícias que
tiveram ampla repercussão recente, no país: “Menina é pisoteada e xingada de
‘macaca’ e ‘cabelo de bombril’ por alunos em escola municipal, diz mãe” 3 e “Homem empurra
criança negra de 4 anos após ela abraçar seu filho; assista” 4.
Para alunos, pais, educadores e
funcionários, as escolas não são mais um espaço de ensino-aprendizagem, de
sociabilização, de acolhimento, de respeito, de civilidade, de humanidade. A
violência está presente nelas. Sob diferentes formas e conteúdos. O cenário da
educação nacional; sobretudo, nas escolas públicas, sejam elas municipais,
estaduais ou federais, é de uma tensão pairando no ar. E como ensinar e
aprender sob a espreita de uma ameaça de violência?
Sem uma discussão profunda e bem
fundamentada sobre essa realidade, nenhum investimento conseguirá a façanha de prosperar
em bons frutos. É preciso voltar os olhos para o ser humano, o verdadeiro
protagonista da escola. Cuidar mais e melhor da sua saúde mental, das suas
demandas psicoemocionais, das suas relações afetivo-sociais, porque esses
aspectos se refletem, também, no desempenho cognitivo e intelectual de qualquer
ser humano. Como dito pelo poeta romano Juvenal, em sua Sátira X, “Mens sana
in corpore sano” (Uma mente sã num corpo são).
Essa ausência de cuidados, de
atenção, está transformando o espaço educacional em praça de guerra, em arena.
Um processo que começa, na maioria das vezes, nos espaços virtuais das mídias
sociais. Vejam, essas crianças e jovens apesar de serem considerados nativos
digitais não podem ser entregues a tal condição social, pura e simplesmente.
Eles não podem ser isentos de um processo de letramento específico, ou seja, de
preparação para as diversas práticas sociais de leitura e produção de textos em
ambientes digitais. No entanto, isso não acontece.
A verdade é que se percebe uma
preocupação ainda significativa com a questão do analfabetismo, no país. Mas,
saber ler e escrever não é tudo! Se há carências na alfabetização, o que dizer
do letramento! Uma imensa maioria dos alunos é sim, desprovida de uma educação
voltada ao desenvolvimento de habilidades e competências para a construção de
uma leitura e escrita dotadas de criticidade, análise e reflexão.
Então, imagina só em relação ao
letramento digital?! Será que nossos nativos digitais sabem mesmo fazer bom uso
das ferramentas de comunicação contemporâneas? Sabem, de fato, interpretar as
informações, as notícias, os conteúdos? Sabem dominar múltiplas habilidades, a
partir de campos do conhecimento distintos? ... Pois é, a maioria das escolas
não passa nem perto desse ensino-aprendizagem! De modo que os alunos nasceram
sob o signo de uma avançada tecnologia; mas, foram lançados à própria sorte
sobre como lidar com ela.
Por essas e por outras, é que a
violência galopa na sociedade contemporânea! Ela encontra terreno fértil e
total ausência de limites, de diretrizes, de orientações, para fazer e
acontecer. São tempos em que a educação transita totalmente desconectada,
dissociada, dos valores humanos. Não há uma preocupação social em garantir que
a convivência entre as pessoas seja pacífica, moderada, franca, justa. Os
princípios éticos e morais foram corrompidos, distorcidos, adulterados, segundo
as crenças e os valores de uns e outros, por aí.
Então, se não mudarmos a forma de
analisar a realidade, continuaremos enxugando gelo e assistindo ao derretimento
da educação nacional. Algo que certamente culminará no agravamento da
desigualdade no país. Lembrando as palavras de Immanuel Kant de que “O homem
não é nada além daquilo que a educação faz dele”, se o sistema educacional
falha, a sociedade fracassa no seu processo civilizatório e cidadão. Portanto,
pensemos a respeito!
1 https://www.cartacapital.com.br/educacao/abandono-escolar-atinge-recorde-historico-entre-criancas-e-adolescentes-do-ensino-fundamental-mostra-ibge/
2
RIBEIRO, D. O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São
Paulo: Companhia das Letras, 1995.
3 https://g1.globo.com/sp/sao-jose-do-rio-preto-aracatuba/noticia/2024/03/21/menina-e-pisoteada-e-xingada-de-macaca-e-cabelo-de-bombril-por-alunos-em-escola-municipal-diz-mae.ghtml
Ah, o progresso!
Ah, o
progresso!
Por
Alessandra Leles Rocha
Ah, o progresso! A expressão dita
por gente que revira os olhinhos de emoção, que traz a nítida sensação do
dinheiro caindo na caixa registradora, que nutre os sonhos e delírios de uma
sociedade de consumo, agora, representa cada vez mais um sopro de tensão no ar,
diante da perspectiva catastrófica dos eventos extremos do clima.
Segundo os veículos de informação
e comunicação, o “Nível do mar subiu devido ao El Niño e às mudanças
climáticas, diz Nasa. A análise da agência espacial dos Estados Unidos se
baseia em mais de 30 anos de observações por satélite, iniciadas com o primeiro
lançamento de um satélite, em 1992” 1.
Assim, países como o Brasil, cuja área costeira é bastante significativa,
que coloquem, então, suas barbas de molho!
Pois é, todo o progresso e
desenvolvimento desencadeado pela sociedade urbanoindustrial está manifestando
suas devastadoras consequências, na medida em que foram rompidos os limites de
equilíbrio com o meio ambiente. Nem era preciso ser cientista ou pesquisador da
área, para saber que o planeta, cuja porção de terra representa 1/3 e os 2/3
restantes são água, já estava em franca desvantagem, nesse contexto.
Ora, estou me referindo ao que
resultou de todas as práxis antrópicas, colocadas em curso ao longo de séculos,
e que, agora, é sentido de maneira assustadora 2.
Tempestades sem precedentes históricos. Enchentes e deslizamentos de encostas,
em questão de poucas horas. Aumento da intensidade e recorrência das descargas
elétricas, com episódios de vítimas fatais. Cidades inteiras sendo invadidas
pela fúria dos oceanos, apesar das tentativas de contenção das águas. ...
Aí, eis que, de repente, chega a
notícia de que muitas cidades “estão tirando concreto das ruas para que
plantas cresçam de novo. [...] Os idealizadores do programa argumentam que a
despavimentação permite algo muito simples: a água da chuva passa a ser
absorvida pela terra e, desta forma, evitam-se inundações” 3.
Além disso, “O processo também
permite que plantas silvestres cresçam no espaço urbano e, ao plantar mais
árvores, é possível produzir mais sombra, o que, por sua vez, protege os
moradores das cidades da radiação solar e das ondas de calor”4.
Quem diria! Anos e anos fazendo
apologia do asfalto e, por consequência, endeusando os benefícios do petróleo, eis
o choque da realidade contemporânea, obrigando a humanidade às mudanças de rota
no curso da sua história, em nome da sobrevivência. Afinal, diante de uma densa cobertura
asfáltica promovida pela urbanização, os sistemas de drenagem pluviométrica vêm
se mostrando insuficientes e ineficientes para conseguir oferecer os resultados
necessários.
Mas, não pense que a ideia da
despavimentação seja um retorno radical aos tempos do chão de terra batida! Trata-se
de uma busca por pavimentos ambientalmente sustentáveis, tais como os
bloquetes, por exemplo. Eles são, na maioria das vezes, resultado da reciclagem
de resíduos da construção civil e de demolição (entulho) 5,
cujo processo de seleção prévia dos materiais, garante qualidade e resistência
para os diversos tipos de tráfegos.
O que significa que esse tipo de
pavimentação traz em si a consciência em torno dos princípios fundamentais da
sustentabilidade, ou seja, repensar, recusar, reduzir, reparar, reutilizar,
reciclar e reintegrar. Algo que, no campo da sustentabilidade urbana constrói
uma análise de métodos e ações que visam preservar, cuidar e equilibrar as
relações socioambientais.
De modo que estes são tempos de
descontruir a ideia de progresso, retirando-a desse pedestal rígido e
inquestionável. Progresso fala de processo. Nada taxativo, imóvel, eterno.
Porque sua necessidade primaz é satisfazer as conjunturas em que está inserido.
Portanto, ele está submetido às revisões constantes, mudanças, idas e vindas.
Se, agora, em pleno século XXI,
as demandas socioambientais impõem que se olhe para a despavimentação
asfáltica, entendamos que isso também é progresso. Como dizia Mahatma Gandhi, “Se queremos
progredir, não devemos repetir a história, mas fazer uma história nova”. Enfim,
precisamos ressignificar a ideia de progresso, porque “O significado das
coisas não está nas coisas em si, mas sim em nossa atitude com relação a elas”
(Antoine de Saint-Exupéry).
sexta-feira, 22 de março de 2024
Dia Mundial da Síndrome de Down - 21/03
ONU apela pelo fim de estereótipos no Dia
Mundial da Síndrome de Down
Organização ressalta que cuidados e apoio podem
melhorar a qualidade de vida das pessoas vivendo com a condição; até 5 mil
crianças nascem com a doença cromossômica a cada ano. [...]
Continue a leitura em https://news.un.org/pt/story/2024/03/1829386
Dia Mundial da Água - 22/03
"Quando o poço está seco, aí nós sabemos o valor da água". Benjamin Franklin
Data marcada neste 22 de março reforça apelo por gestão sustentável;
novas realidades econômicas e sociais, incluindo alterações climáticas e
geopolíticas, tem implicações hídricas; mais de 60% da água doce mundial flui
através de fronteiras nacionais, mas progresso em acordos transfronteiriços é
considerado lento. [...]
Continue a leitura em https://news.un.org/pt/story/2024/03/1829481
quarta-feira, 20 de março de 2024
A mercantilização e a monetização da dignidade humana
A
mercantilização e a monetização da dignidade humana
Por Alessandra
Leles Rocha
De repente, me pareceu clara a
razão que leva a humanidade a ser tão displicente, diante da avassaladora tecnologização
contemporânea. Não se teme por uma substituição humana pelas máquinas, simplesmente,
porque a desumanidade já domina os indivíduos. E a questão é bem mais complexa
do que se possa imaginar!
O ser desumano é aquele que perde
a noção coletiva de espécie, que perde a capacidade de se colocar no lugar do
outro, entendendo suas angústias e pensando nas dimensões do seu sofrimento. De
modo que a desumanidade retira quaisquer possibilidades de garantir e de preservar
a dignidade do outro, transformando-o, arbitrariamente, em objeto.
Isso significa que sem alteridade,
o passo seguinte é, então, a objetificação, a coisificação humana. Um conceito
que se estabelece diretamente com a dinâmica dos poderes sociais. Basta que o indivíduo
se sinta ou entenda dotado da capacidade, ainda que mínima, de exercer alguma autoridade,
ou soberania, para deliberar, agir e mandar, sobre os demais, que a
objetificação se manifesta.
Daí a existência de uma
mercantilização da dor. Não entendeu?! Bem, as manifestações de poder, não
raras as vezes, excedem, exorbitam. O que no campo da desumanidade, da
indignidade e da objetificação promove dores e sofrimentos incomensuráveis, indefiníveis,
os quais acabam se tornando alvo de reparação, de desagravo, de retratação,
inclusive, na esfera jurídica. São as chamadas
indenizações.
No turbilhão do cotidiano, estou
certa de que pouca gente já se deu ao trabalho de pensar ou tecer reflexões a
respeito. Mas, deveriam! Esse mecanismo encontrado para, em tese, apaziguar as
relações sociais, na verdade, não atinge seus propósitos. Mercantilizar,
monetizar, aquilo que é da natureza da subjetividade humana, não só tende a
desqualificar e a menosprezar a dignidade do indivíduo, como não produz efeito educativo
ou punitivo sobre o ofensor.
Afinal, a sua percepção social é
balizada pelo poder capital. Aquele que exercita a desumanidade, a indignidade
e a objetificação acredita ser dotado de um poder absoluto, que o coloca acima
do bem e do mal, numa casta inatingível, repleta de regalias e de privilégios. Portanto,
sejam quais forem os seus desvios éticos e morais, as suas infrações, os seus
delitos, ele está sempre disposto a pagar, o que for, para não ser incomodado.
Traduzindo em miúdos, ele compra
a dor, o sofrimento, a perda, o silêncio, o constrangimento, a indignação, a
ira, como se o vil metal fosse o “pó de Pirlimpimpim” para apagar os
fatos, desconstruir a realidade. E esse pensamento só é possível, porque para essas
pessoas o outro é só um objeto, uma coisa, totalmente destituído da sua
condição humana. De modo que uma indenização parece mais do que suficiente,
considerando o caráter objetificante do eventual beneficiário.
Acontece que o capital não apaga
as memórias! Em geral, as indenizações acabam tendo um caráter propagador dos
sofrimentos, das angústias, do desgosto, da desolação. Como se elas dessem vida,
novamente, à materialidade dos acontecimentos nefastos. Afinal de contas, tudo aquilo
que atinge a subjetividade humana não pode ser reparado, compensado,
indenizado. Há marcas, vestígios, feridas, visíveis e/ou invisíveis, que são
irremediavelmente insuperáveis.
É por essas e por outras, que em tempos
contemporâneos tão socialmente insalubres, a urgência de tratar essas pautas é total.
Porque esse tipo de discussão não deixa
de se refletir, por exemplo, sobre o grau de “felicidade global”. Segundo o relatório
da Organização das Nações Unidas (ONU), divulgado por ocasião do Dia
Internacional da Felicidade, é interessante observar que as grandes economias
do planeta não figuram no top 10 da lista 1.
Pois é, parece que o dinheiro não é necessariamente a chave para a felicidade!
Tendo em vista de que essa
análise se baseia em seis fatores principais, ou seja, apoio social, renda,
saúde, liberdade, generosidade e ausência de corrupção, a síntese que se extrai
a respeito é de que precisamos cuidar mais e melhor das relações humanas. Nesse
sentido, entender o significado da humanidade, enquanto sentimento de bondade,
ou de compaixão, em relação aos semelhantes; sobretudo, os mais desfavorecidos,
é essencial.
É hora de um choque poético de
realidade, pelas mãos de Carlos Drummond de Andrade 2,
para tentar reencontrar o fio da nossa meada existencial. Há uma carência explícita
de humanidade no mundo! Diante da contínua sobreposição do TER sobre o SER, os indivíduos
esqueceram-se das prioridades. Nem tudo pode ser comprado. Nem tudo tem preço. Pensemos
a respeito!
segunda-feira, 18 de março de 2024
Diante de uma absoluta relativização numérica ...
Diante de
uma absoluta relativização numérica ...
Por Alessandra
Leles Rocha
Números apontam grandes cifras
produzidas e lucros astronômicos, no universo do agronegócio mundial. No entanto,
os números também apontam valores expressivos para o desmatamento, as
queimadas, a exaustão dos recursos naturais – tais como, água e solo, a insegurança
alimentar e o desperdício. Diante disso, a quais números devemos, de fato,
render reverências?
Cientes de que há no planeta, mais
de 8 bilhões de seres humanos e que a alimentação é necessidade básica de todos
eles, essa é uma pergunta fundamental. Há
séculos tem se visto ampliar as fronteiras agrícolas, o desenvolvimento de
novas técnicas de produção e o surgimento de insumos com alta base científica. A
primeira impressão é de total sucesso. Só que não.
Vejam, essas iniciativas
impactaram o equilíbrio natural dos biomas. Seja pela ruptura com a periodicidade
e volume de chuvas. Ou da umidade do ar. Ou com o balanço nutricional do solo. Ou
com o regime de ventos. Ou com as estações climáticas bem definidas. Enfim,
tudo o que é essencial para o agronegócio e não pode ser substituído por
avanços técnico-científicos.
Sem perceberem, o ciclo de
investimentos milionários para aumentar a produção e os lucros tornou-se uma
espiral que exige cada vez mais e devolve cada vez menos, dadas as imposições
conjunturais da própria natureza. E ao contrário de analisar crítica e
reflexivamente essas práxis, diversos produtores ainda insistem nelas.
O que significa que ao ampliar o nível
de desequilíbrio natural dos biomas, o agronegócio abre uma guerra contra si
mesmo, expondo suas produções às novas pragas, à intensificação das demandas químicas,
à contaminação da água e do solo e à própria dinâmica climática. Algo que já não
é bem-visto, pelos mercados consumidores estrangeiros, muitos deles franco
defensores das políticas sustentáveis da economia verde.
Porque gastar mais não significa
produzir mais e melhor. Aliás, esse alto custo de produção não tem impedido a ausência
de muitos produtos nas prateleiras dos mercados e supermercados, mundo afora;
bem como, o decréscimo da qualidade deles, quando disponíveis. Além disso, é
preciso pensar sobre o impacto que a lei da oferta e da procura traz ao
contexto da insegurança alimentar.
Se por um lado se vê, em pleno
século XXI, o amiúde desperdício de alimentos, a inacessibilidade a eles é uma
realidade triste e cruel. A indisponibilidade de produtos ou o seu alto custo
de aquisição impede que milhões de seres humanos supram a sua necessidade
fundamental de alimentação. Ao que se vê, ter ampliado as fronteiras agrícolas,
desequilibrado os biomas, tecnologizado a produção, investido em super insumos,
nada disso cumpriu o papel primaz do agronegócio, ou seja, nutrir os seres
humanos.
Sem contar que certos impactos
negativos, tais como o deflorestamento, têm sim, sua parcela de
responsabilidade na disseminação de importantes doenças, especialmente, as
arboviroses. Segundo estudo da Fiocruz, por exemplo, “a dengue vem se
espalhando para as regiões Sul e Centro-Oeste, onde a doença não era tão comum.
Isso está ocorrendo por conta do aumento na ocorrência de eventos climáticos
extremos, como secas e inundações. Além disso, outro fator decisivo seria a degradação
ambiental, especialmente no Cerrado, que vem sofrendo com o desmatamento, queimadas
e conversão de florestas em pasto” 1.
Lembre-se, “A primeira lei da
ecologia é que tudo está ligado a todo o resto” (Barry Commoner)! Daí a
necessidade de reflexão, quando se percebe a insuficiência ou a ineficiência da
economia para proteger a sobrevivência humana na Terra. Não se pode encarar o
desenvolvimento econômico e o desenvolvimento social como questões excludentes,
porque tem sido essa a visão que está levando à humanidade a sua extinção 2. Portanto, é urgente romper com esse
cenário caótico, o qual não aponta uma relação custo/benefício equilibrada para
nenhuma das partes envolvidas.
1 https://portal.fiocruz.br/noticia/2024/03/aumento-da-dengue-esta-associado-mudancas-climaticas-e-ao-desmatamento-no-brasil