Quando Stanley Kubrick resolveu filmar seu primeiro
longa-metragem, em 1953, optou por uma história de guerra ambientada na selva. Classificado pelo próprio diretor como um trabalho amador, Medo e Desejo foi renegado por Kubrick. Dois
anos depois, de volta aos longas, o diretor nova-iorquino seguiu o conselho de
um amigo e dirigiu A morte passou por
perto, história de um lutador de box que se envolve com o mundo dos gângsters
de Nova York. Por trás do conselho estava uma senha: aborde um mundo que você
conhece e parte de seus problemas estará resolvida. A familiaridade de Kubrick
com o cenário do segundo longa ajudou a alavancar sua carreira, mas nem por
isso ele se tornou um diretor capaz apenas de fazer filmes de gângster em Nova
York. Kubrick transitou por gêneros tão diversos quanto filme de guerra,
romance, ficção científica e drama psicológico que até hoje, vinte anos depois
de sua morte, vez por outra ainda se aponta um ou outro diretor como possível
herdeiro do norte-americano – e isso quer dizer: fulano sabe dirigir qualquer
gênero.
Gabriel Martins e Maurílio Martins apresentaram seu primeiro
longa-metragem em 2019, No Coração do
Mundo. Como Kubrick, que antes de lançar o primeiro longa também dirigiu
alguns curtas, Gabriel e Maurílio iniciaram carreira nesse formato, com a
diferença de já terem mais de dez anos de experiência. Assistir a No Coração do Mundo, conhecendo a obra
dos dois diretores, é se reencontrar com o mesmo ambiente e com alguns
personagens que já transitaram por outros filmes, especialmente os curtas Contagem (2010) e Dona Sônia Pediu uma Arma para Seu Vizinho Alcides (2011). Contagem
não é só nome de filme: é a cidade da região metropolitana de Belo Horizonte onde
os dois diretores cresceram. Como Kubrick, à vontade filmando Nova York,
Gabriel e Maurílio movem-se com desenvoltura em Contagem e essa familiaridade transparece
no filme. O que não quer dizer que serão para sempre cineastas circunscritos à
cidade natal, crivada de carências, nem que sua obra tenha de espelhar essa
precariedade. Aliás, No Coração do Mundo, mesmo sendo o primeiro longa, parece anunciar que ambos já não cabem em
qualquer rótulo que junte as palavras “cineasta” e “periferia”.
Selma (Grace Passô), em cena que homenageia Carlos Reichenbach |
No Coração do Mundo
é um western urbano e a presença do rap Texas, do MC Papo, logo no início, parece não deixar
dúvidas quanto à intenção do filme em ser reconhecido como um faroeste da
periferia. Não tão rápido. No Coração do
Mundo também é romance e várias situações, estrategicamente engendradas
como poderosos alívios cômicos, permitiriam, sem exagero, identificar ali
traços de comédia romântica. Não só. No
Coração do Mundo também é drama, suspense, ação, em camadas sobrepostas que
denotam não apenas a evidente cinefilia de seus autores, como a evolução de seu
fazer cinematográfico. Pois, se Contagem
e Dona Sônia estão ali, de alguma
forma (ou de várias), a forma final do longa é uma evolução evidente dos
cineastas que maravilharam o diretor Carlos Reichenbach quando surgiram no
Festival de Brasília de 2009.
Carlão está no filme, homenageado como nome de escola. Lá
atrás, na gênese da dupla, o diretor veterano assistiu a Contagem em Brasília e, impactado com o trabalho dos dois jovens,
escreveu um artigo em seu blog intitulado “Fez-se a luz em Contagem”. À época, Carlão
exalou encantamento em ver, pela primeira vez, um filme rodado em câmera
digital que a ele parecia feito em película. De lá para cá, os dois jovens
mineiros aperfeiçoaram sua linguagem cinematográfica e sua técnica. A
ambientação da periferia está lá, o hábil processo de criação de empatia com
aqueles personagens está lá. Mas estão também o rigor no corte preciso – apenas
quando essencial – e a obstinação pelo plano, a ponto de construir várias cenas
em planos longos e passagens desafiadoras em planos sequência que vão
sinalizando, ao longo do filme, que Gabriel e Maurílio cresceram. E, cineastas
adultos que são, sabem-se aptos a aumentar o volume, a velocidade e a tensão da
trama a ponto de produzirem sequências de ação irrepreensíveis, coroando o
filme com um desfecho calcado em movimento e violência, elementos abundantes
naquela Contagem que tanto conhecem, ali usados como matéria-prima de uma
narrativa coesa.
Maurílio Martins (à esquerda) e Gabriel Martins |
Ainda que No Coração
do Mundo não se apresente como um filme essencialmente feminista, ele se torna
o retrato de uma comunidade que vive à margem de uma capital de estado, formada
por famílias marcadas pela carência e pela falta de horizonte (belo ou não). E
essas famílias, quase sempre, são guiadas por mulheres. No Coração do Mundo é um agudo retrato de um lugar e de um tempo em
que as mulheres continuam sendo “o crioulo do mundo”, como cantou John Lennon. Esse
mundo Gabriel e Maurílio conhecem bem, e o primeiro longa deles deixa isso
muito claro.
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