Thursday, September 19, 2019

Bacurau: uma carta para Dra. Domingas

Dra. Domingas: "por que vocês estão fazendo isso?"

No último ato de Bacurau, o alemão Michael (Udo Kier) encontra-se com Dra. Domingas (Sônia Braga). A médica do vilarejo atacado violentamente por forasteiros parece tentar um armistício, no que é ignorada pelo comandante do grupo. “Por que vocês estão fazendo isso?”, pergunta Dra. Domingas.

Em um exercício de empatia – abominável, porém necessário – decidi me colocar no lugar dos gringos (norte-americanos chefiados por um alemão residente nos Estados Unidos) e tentar responder tal pergunta. Faço isso no formato de uma carta, que envio para a médica, por meio deste blog.

Prezada Dra. Domingas,

Espero que esta carta a encontre bem de saúde e com o ânimo recuperado depois dos acontecimentos tão intensos vividos em Bacurau. Certa de que o forasteiro Michael não teve – nem terá – oportunidade de lhe responder o que havia por trás dos ataques aos habitantes do vilarejo, espero responder por que, afinal, aquela gente estava fazendo aquilo.

Veja, Dra. Domingas, os Estados Unidos são uma nação beligerante. Desde que assumiu o lugar da Inglaterra no imperialismo ocidental, o país já se meteu em pelo menos 33 guerras, e estamos falando só do século passado e deste século 21. A senhora, a quem respeitosamente chamo de experiente, é também pessoa letrada. Deve ter lido ou ouvido que a Segunda Guerra Mundial foi vencida pelo soldado soviético, com a colaboração do operário norte-americano. Claro que os patriotas envoltos em Stars and Stripes reagiriam rapidamente para lembrar o seu número de mortos no conflito. Foram muitos, de fato. Cerca de 400 mil. Soviéticos? Quase 11 milhões.

Mas os operários americanos realmente executaram sua tarefa com louvor. A partir de 1941, com a entrada dos Estados Unidos na guerra, surgiram três mil novas fábricas e estaleiros no país. Um assombro: até 1945, foram 16 milhões de toneladas de armamentos, entre navios, artilharia, tanques e munição. Não se abandona um negócio pujante assim, do nada, concorda? As guerras que vieram depois, sempre bem distantes da terra da democracia e da liberdade, continuaram absorvendo essa fantástica produção. E seria incoerente brindar tantos países com tão farto material bélico e não aproveitar aquele imenso mercado nacional, não é mesmo?

Pois aproveitam. Estima-se que existam quase 270 milhões de armas nos Estados Unidos. São mais de 50 mil lojas de armas oficialmente registradas por lá (McDonald’s, veja a senhora, Dra. Domingas, cerca de 14 mil). O ser humano pode ser muito inteligente, mas também tem seus deslizes e nem todo mundo usa essas armas para caçar veados na Primavera ou para espantar coiotes que ameacem a criação nos ranchos. Uns doidos varridos começaram a atirar nas pessoas, a senhora deve se lembrar disso. Só em 2019, foram mais de 250 tiroteios em massa, e esse número que eu estou contando para a senhora agora foi contabilizado bem antes de o ano terminar.

O alemão Michael e a devoção às armas

Não dava mais, Dra. Domingas. Era preciso fazer alguma coisa. Mas como evitar que esses incidentes desagradáveis continuassem acontecendo sem empanar o brilho dessa indústria de armas tão importante para a economia do país? Puxa, elas geram empregos, contribuem para grandes causas, financiam projetos importantes e, se eu não me estendo nesse pormenor, a senhora certamente vai me entender. De mais a mais, Dra. Domingas, se a arma ficar lá quietinha, não mata ninguém. O museu de Bacurau é prova disso. O que não dava mais era para passar carão perante o mundo com esses tiroteios. Aquele pessoal da ONU, da Anistia Internacional, o Papa, todos reclamam. Ou, coisa pior, criar caso com seguradoras, porque essa gente é osso duro de roer.

Foi aí que tiveram essa ideia brilhante de criar uma atividade lúdica, uma espécie de competição que reunisse os melhores jogadores. Em vez de desperdiçar esses talentos da mira em universidades ou shopping centers, a esmo, o negócio era levar a turma para lugares distantes, onde pudessem dar seus tirinhos sem atrapalhar a ordem daquela nação tão civilizada. Coisa fina, né, Dra. Domingas? Eles têm armas, mas não quaisquer armas. São artistas do tiro, são adoradores de peças míticas. Idealizaram durante anos a aventura de portar uma submetralhadora, um fuzil ou uma pistola. Eles são clássicos, portam drones, mas não qualquer drone, não, senhora. Tudo é vintage nesse jogo e até esse recurso deles veio com ares de ficção científica dos anos 1960, parecendo um disco voador.

Domingas e Michael, antes do furdunço

 Encontrar lugar para a competição também não é tarefa das mais difíceis. Lembra que eu falei da Segunda Guerra Mundial? Pois naquela época, embora o governo brasileiro se enrabichasse bem mais para o lado dos perdedores, acabou entrando na briga junto com os americanos. Dizem que o nome forró nasceu por essa época, não sei bem, mas que eles fincaram base em Natal, isso é certeza. Sempre tem um político matreiro para trançar os pauzinhos com eles. Tony Junior, o ex-prefeito de vocês, é de linhagem tradicional, mas evidentemente não teve o talento do pai para fazer a coisa de um jeito mais discreto. Tenho para mim que ele queria esse pedaço de chão de vocês para algum empreendimento turístico, imobiliário, não sei bem. Aquela serra em torno de Bacurau é bonita, né? Turismo ecológico, trilha, vai saber.

Além disso, sempre tem uns fornecedores locais prontinhos para pegar um dinheiro rápido da mão dos gringos, não é mesmo? Eu acho, Dra. Domingas, que na verdade tem dois tipos bem diferentes de colaboração. Uma vem dos pobres coitados que vivem nesse interiorzão do Brasil. Vida precária, muita necessidade. Vem um bacana qualquer, oferece uns caraminguás e pronto: eles fazem o que for – até entregar caixão sem nem saber para o que vai ser usado.

Mas tem um tipo bem mais matreiro, que são os que se acham bacana também. Que se iludem, pensando que os gringos são amigos deles só porque falam a língua deles. Falar é modo de dizer, né, doutora? Acho bem engraçado quando vejo um engomadinho branquelo achando que fala língua estrangeira. Porque, desculpe a distração, mas agora a senhora pense junto comigo: se um estrangeiro chega no Brasil e nunca, nunquinha, consegue falar “caipirinha de maracujá” sem se enrolar todo, como é que um sujeito nascido e criado aqui, só porque frequentou escola de inglês duas vezes por semana, acha que vai falar daquele jeito que coloca a língua no meio dos dentes e pronunciar as palavras deles sem sotaque? Capaz...

Mas os gringos só estavam lá para matar


Voltando à explicação que prometi à senhora: virou um negócio bom para os dois lados, percebe? Os estrangeiros vieram para cá, cheios das suas armas e parafernálias, jogar seu jogo. O prefeito facilitou as coisas, vendo a vantagem de limpar a região, para explorar aquelas terras de outro jeito. Se a senhora lembrar bem, vai rever na sua mente aquele carrão com que o prefeito chegou depois do furdunço todo. Banco de couro, ar-condicionado, cheio de umas garrafinhas de água, que deviam até estar geladinhas. É uma chacota, eu sei. O povo de Bacurau sem água e os gringos, depois que acabassem o jogo deles, terminando o serviço para o prefeito, iam voltar sei lá eu para onde, naquele carrão de bacana. E com água gelada ainda!

É, Dra. Domingas... Deu tudo errado para eles, porque eles não contavam com a união de vocês. União até dentro das divergências. Porque mesmo nesse sítio tão precário, diante de tanta dificuldade, o ser humano também faz suas diferenças. Estava lá o Lunga, com os meninos, segregado do resto do povoado, magoado. A serra de Bacurau não é Sierra Maestra, mas serviu de esconderijo para esse novo Lampião de vocês. E a senhora, só a senhora, levantou a voz contra o prefeito, quando ele quis levar Sandra. Bicha, puta... pouca gente se importa, não é mesmo? Mas na hora que precisou, foi todo mundo junto para a luta.

A cova de Bacurau: Varsóvia?

 Eles não contavam que a escola, atacada por eles (naquele dia e pelos outros, sempre) ia revidar. Não contavam que o museu ia virar um paiol. Do museu e da escola, Dra. Domingas! Aquele mesmo museu que os forasteiros metidos a bacanas não quiseram nem entrar. De onde eles nunca esperavam, nasceu a resistência. Aquele alemão doido deve ter ficado espantado quando viu o buraco no meio da vila. “Varsóvia?!” Dá até para imaginar que ele se lembrou de alguma história velha, daquela guerra lá, contada por seu pai ou por um tio. Eles não contavam que Damiano, esse Panoramix do sertão, tinha uma fórmula mágica para emprestar força e coragem para aquela gente.

Fazia sentido na cabeça deles, Dra. Domingas. Mas as cabeças deles a gente sabe o destino que tiveram. Que Deus os tenha. E o Diabo que os carregue.

Friday, September 13, 2019

No Coração do Mundo



Quando Stanley Kubrick resolveu filmar seu primeiro longa-metragem, em 1953, optou por uma história de guerra ambientada na selva. Classificado pelo próprio diretor como um trabalho amador, Medo e Desejo foi renegado por Kubrick. Dois anos depois, de volta aos longas, o diretor nova-iorquino seguiu o conselho de um amigo e dirigiu A morte passou por perto, história de um lutador de box que se envolve com o mundo dos gângsters de Nova York. Por trás do conselho estava uma senha: aborde um mundo que você conhece e parte de seus problemas estará resolvida. A familiaridade de Kubrick com o cenário do segundo longa ajudou a alavancar sua carreira, mas nem por isso ele se tornou um diretor capaz apenas de fazer filmes de gângster em Nova York. Kubrick transitou por gêneros tão diversos quanto filme de guerra, romance, ficção científica e drama psicológico que até hoje, vinte anos depois de sua morte, vez por outra ainda se aponta um ou outro diretor como possível herdeiro do norte-americano – e isso quer dizer: fulano sabe dirigir qualquer gênero.

Gabriel Martins e Maurílio Martins apresentaram seu primeiro longa-metragem em 2019, No Coração do Mundo. Como Kubrick, que antes de lançar o primeiro longa também dirigiu alguns curtas, Gabriel e Maurílio iniciaram carreira nesse formato, com a diferença de já terem mais de dez anos de experiência. Assistir a No Coração do Mundo, conhecendo a obra dos dois diretores, é se reencontrar com o mesmo ambiente e com alguns personagens que já transitaram por outros filmes, especialmente os curtas Contagem (2010) e Dona Sônia Pediu uma Arma para Seu Vizinho Alcides (2011). Contagem não é só nome de filme: é a cidade da região metropolitana de Belo Horizonte onde os dois diretores cresceram. Como Kubrick, à vontade filmando Nova York, Gabriel e Maurílio movem-se com desenvoltura em Contagem e essa familiaridade transparece no filme. O que não quer dizer que serão para sempre cineastas circunscritos à cidade natal, crivada de carências, nem que sua obra tenha de espelhar essa precariedade. Aliás, No Coração do Mundo, mesmo sendo o primeiro longa, parece anunciar que ambos já não cabem em qualquer rótulo que junte as palavras “cineasta” e “periferia”.

Selma (Grace Passô), em cena que homenageia Carlos Reichenbach


No Coração do Mundo é um western urbano e a presença do rap Texas, do MC Papo, logo no início, parece não deixar dúvidas quanto à intenção do filme em ser reconhecido como um faroeste da periferia. Não tão rápido. No Coração do Mundo também é romance e várias situações, estrategicamente engendradas como poderosos alívios cômicos, permitiriam, sem exagero, identificar ali traços de comédia romântica. Não só. No Coração do Mundo também é drama, suspense, ação, em camadas sobrepostas que denotam não apenas a evidente cinefilia de seus autores, como a evolução de seu fazer cinematográfico. Pois, se Contagem e Dona Sônia estão ali, de alguma forma (ou de várias), a forma final do longa é uma evolução evidente dos cineastas que maravilharam o diretor Carlos Reichenbach quando surgiram no Festival de Brasília de 2009.

Carlão está no filme, homenageado como nome de escola. Lá atrás, na gênese da dupla, o diretor veterano assistiu a Contagem em Brasília e, impactado com o trabalho dos dois jovens, escreveu um artigo em seu blog intitulado “Fez-se a luz em Contagem”. À época, Carlão exalou encantamento em ver, pela primeira vez, um filme rodado em câmera digital que a ele parecia feito em película. De lá para cá, os dois jovens mineiros aperfeiçoaram sua linguagem cinematográfica e sua técnica. A ambientação da periferia está lá, o hábil processo de criação de empatia com aqueles personagens está lá. Mas estão também o rigor no corte preciso – apenas quando essencial – e a obstinação pelo plano, a ponto de construir várias cenas em planos longos e passagens desafiadoras em planos sequência que vão sinalizando, ao longo do filme, que Gabriel e Maurílio cresceram. E, cineastas adultos que são, sabem-se aptos a aumentar o volume, a velocidade e a tensão da trama a ponto de produzirem sequências de ação irrepreensíveis, coroando o filme com um desfecho calcado em movimento e violência, elementos abundantes naquela Contagem que tanto conhecem, ali usados como matéria-prima de uma narrativa coesa.

Maurílio Martins (à esquerda) e Gabriel Martins

 Sim, Gabriel e Maurílio cresceram – em um universo pontuado por mulheres fortes. Na periferia, cineastas filmam em locação menos por influência de John Ford e mais por falta de recursos. Mulheres tornam-se fortes menos por serem arianas com ascendente em Leão e mais pela premência de criar filhos, sustentar a casa, cuidar de pais idosos, muitas vezes sozinhas. As mulheres de No Coração do Mundo são diligentes e estão sempre em movimento: Selma (Grace Passô) dirige (e como dirige!) seu ou qualquer outro automóvel. Rose (Bárbara Colen) planeja uma mudança de vida tornando-se motorista de Uber. Ana (Kelly Crifer) circula o dia inteiro como cobradora de ônibus, e ainda que a vida pareça prendê-la em um feroz carrossel que nada tem de música infantil, ela se move. Os homens, sem exceção, surgem letárgicos.

Ainda que No Coração do Mundo não se apresente como um filme essencialmente feminista, ele se torna o retrato de uma comunidade que vive à margem de uma capital de estado, formada por famílias marcadas pela carência e pela falta de horizonte (belo ou não). E essas famílias, quase sempre, são guiadas por mulheres. No Coração do Mundo é um agudo retrato de um lugar e de um tempo em que as mulheres continuam sendo “o crioulo do mundo”, como cantou John Lennon. Esse mundo Gabriel e Maurílio conhecem bem, e o primeiro longa deles deixa isso muito claro.