Dra. Domingas: "por que vocês estão fazendo isso?" |
No último ato de Bacurau, o alemão Michael (Udo Kier)
encontra-se com Dra. Domingas (Sônia Braga). A médica do vilarejo atacado
violentamente por forasteiros parece tentar um armistício, no que é ignorada
pelo comandante do grupo. “Por que vocês estão fazendo isso?”, pergunta Dra.
Domingas.
Em um exercício de empatia – abominável, porém necessário – decidi
me colocar no lugar dos gringos (norte-americanos chefiados por um alemão
residente nos Estados Unidos) e tentar responder tal pergunta. Faço isso no
formato de uma carta, que envio para a médica, por meio deste blog.
Prezada Dra. Domingas,
Espero que esta carta a encontre bem de saúde e com o ânimo
recuperado depois dos acontecimentos tão intensos vividos em Bacurau. Certa de
que o forasteiro Michael não teve – nem terá – oportunidade de lhe responder o
que havia por trás dos ataques aos habitantes do vilarejo, espero responder por
que, afinal, aquela gente estava fazendo aquilo.
Veja, Dra. Domingas, os Estados Unidos são uma nação
beligerante. Desde que assumiu o lugar da Inglaterra no imperialismo ocidental,
o país já se meteu em pelo menos 33 guerras, e estamos falando só do século
passado e deste século 21. A senhora, a quem respeitosamente chamo de
experiente, é também pessoa letrada. Deve ter lido ou ouvido que a Segunda
Guerra Mundial foi vencida pelo soldado soviético, com a colaboração do
operário norte-americano. Claro que os patriotas envoltos em Stars and Stripes
reagiriam rapidamente para lembrar o seu número de mortos no conflito. Foram
muitos, de fato. Cerca de 400 mil. Soviéticos? Quase 11 milhões.
Mas os operários americanos realmente executaram sua tarefa
com louvor. A partir de 1941, com a entrada dos Estados Unidos na guerra,
surgiram três mil novas fábricas e estaleiros no país. Um assombro: até 1945,
foram 16 milhões de toneladas de armamentos, entre navios, artilharia, tanques
e munição. Não se abandona um negócio pujante assim, do nada, concorda? As
guerras que vieram depois, sempre bem distantes da terra da democracia e da
liberdade, continuaram absorvendo essa fantástica produção. E seria incoerente
brindar tantos países com tão farto material bélico e não aproveitar aquele
imenso mercado nacional, não é mesmo?
Pois aproveitam. Estima-se que existam quase 270 milhões de
armas nos Estados Unidos. São mais de 50 mil lojas de armas oficialmente
registradas por lá (McDonald’s, veja a senhora, Dra. Domingas, cerca de 14
mil). O ser humano pode ser muito inteligente, mas também tem seus deslizes e
nem todo mundo usa essas armas para caçar veados na Primavera ou para espantar
coiotes que ameacem a criação nos ranchos. Uns doidos varridos começaram a
atirar nas pessoas, a senhora deve se lembrar disso. Só em 2019, foram mais de
250 tiroteios em massa, e esse número que eu estou contando para a senhora
agora foi contabilizado bem antes de o ano terminar.
O alemão Michael e a devoção às armas |
Não dava mais, Dra. Domingas. Era preciso fazer alguma
coisa. Mas como evitar que esses incidentes desagradáveis continuassem
acontecendo sem empanar o brilho dessa indústria de armas tão importante para a
economia do país? Puxa, elas geram empregos, contribuem para grandes causas,
financiam projetos importantes e, se eu não me estendo nesse pormenor, a
senhora certamente vai me entender. De mais a mais, Dra. Domingas, se a arma
ficar lá quietinha, não mata ninguém. O museu de Bacurau é prova disso. O que
não dava mais era para passar carão perante o mundo com esses tiroteios. Aquele
pessoal da ONU, da Anistia Internacional, o Papa, todos reclamam. Ou, coisa
pior, criar caso com seguradoras, porque essa gente é osso duro de roer.
Foi aí que tiveram essa ideia brilhante de criar uma
atividade lúdica, uma espécie de competição que reunisse os melhores jogadores.
Em vez de desperdiçar esses talentos da mira em universidades ou shopping
centers, a esmo, o negócio era levar a turma para lugares distantes, onde
pudessem dar seus tirinhos sem atrapalhar a ordem daquela nação tão civilizada.
Coisa fina, né, Dra. Domingas? Eles têm armas, mas não quaisquer armas. São
artistas do tiro, são adoradores de peças míticas. Idealizaram durante anos a
aventura de portar uma submetralhadora, um fuzil ou uma pistola. Eles são
clássicos, portam drones, mas não qualquer drone, não, senhora. Tudo é vintage
nesse jogo e até esse recurso deles veio com ares de ficção científica dos anos
1960, parecendo um disco voador.
Domingas e Michael, antes do furdunço |
Além disso, sempre tem uns fornecedores locais
prontinhos para pegar um dinheiro rápido da mão dos gringos, não é mesmo? Eu
acho, Dra. Domingas, que na verdade tem dois tipos bem diferentes de colaboração.
Uma vem dos pobres coitados que vivem nesse interiorzão do Brasil. Vida
precária, muita necessidade. Vem um bacana qualquer, oferece uns caraminguás e
pronto: eles fazem o que for – até entregar caixão sem nem saber para o que vai
ser usado.
Mas tem um tipo bem mais matreiro, que são os que se acham
bacana também. Que se iludem, pensando que os gringos são amigos deles só
porque falam a língua deles. Falar é modo de dizer, né, doutora? Acho bem
engraçado quando vejo um engomadinho branquelo achando que fala língua
estrangeira. Porque, desculpe a distração, mas agora a senhora pense junto
comigo: se um estrangeiro chega no Brasil e nunca, nunquinha, consegue falar “caipirinha
de maracujá” sem se enrolar todo, como é que um sujeito nascido e criado aqui,
só porque frequentou escola de inglês duas vezes por semana, acha que vai falar
daquele jeito que coloca a língua no meio dos dentes e pronunciar as palavras
deles sem sotaque? Capaz...
Mas os gringos só estavam lá para matar |
Voltando à explicação que prometi à senhora: virou um
negócio bom para os dois lados, percebe? Os estrangeiros vieram para cá, cheios
das suas armas e parafernálias, jogar seu jogo. O prefeito facilitou as coisas,
vendo a vantagem de limpar a região, para explorar aquelas terras de outro
jeito. Se a senhora lembrar bem, vai rever na sua mente aquele carrão com que o
prefeito chegou depois do furdunço todo. Banco de couro, ar-condicionado, cheio
de umas garrafinhas de água, que deviam até estar geladinhas. É uma chacota, eu
sei. O povo de Bacurau sem água e os gringos, depois que acabassem o jogo
deles, terminando o serviço para o prefeito, iam voltar sei lá eu para onde,
naquele carrão de bacana. E com água gelada ainda!
É, Dra. Domingas... Deu tudo errado para eles, porque eles
não contavam com a união de vocês. União até dentro das divergências. Porque
mesmo nesse sítio tão precário, diante de tanta dificuldade, o ser humano
também faz suas diferenças. Estava lá o Lunga, com os meninos, segregado do
resto do povoado, magoado. A serra de Bacurau não é Sierra Maestra, mas serviu
de esconderijo para esse novo Lampião de vocês. E a senhora, só a senhora,
levantou a voz contra o prefeito, quando ele quis levar Sandra. Bicha, puta...
pouca gente se importa, não é mesmo? Mas na hora que precisou, foi todo mundo
junto para a luta.
A cova de Bacurau: Varsóvia? |
Fazia sentido na cabeça deles, Dra. Domingas. Mas as cabeças
deles a gente sabe o destino que tiveram. Que Deus os tenha. E o Diabo que os
carregue.