Nem os rouxinóis
quiseram sair da cama
— manhã de geada.
30.7.07
27.7.07
Pergunta
— Posso te fazer uma pergunta?
— Não.
— Credo. Por que?
— Porque não. Você perguntou se pode, não posso responder "não"?
— Mas...
— Porque quando você vem com esse papo, é que vai perguntar coisa chata. E eu não quero responder.
— Quê que custa?
— Não sei o quê que custa. Mas eu vou ficar sem graça, no mínimo.
— Então da próxima vez eu já pergunto direto.
— É até melhor mesmo. Pergunta e pronto. Mas "posso te fazer uma pergunta?" é fogo.
— Ah, não é tão mau...
— É mau sim, senhor. Ninguém fala "posso te perguntar uma coisa?" para saber que horas são, ou se o Brasil ganhou o jogo de ontem. É para perguntar coisa cabeluda.
— Ué, de repente eu só ia perguntar sobre sua família.
— Aí você perguntaria direto: "oi, tudo bem?, e a família, como vai?". Mas quando o perguntador vem com esses papos, é porque vai colocar o perguntado em má situação.
— É. Acho que você até que tem razão. Meio que assusta a pessoa mesmo.
— Eu acho que quando você vai fazer uma pergunta que exija permissão antes, é melhor nem fazer. Vai ser chato.
— É verdade. E se tiver que perguntar mesmo, que seja de uma vez, sem "posso te fazer uma pergunta?"
— E não é?
— Então está combinado. Agora, sobre aquela minha pergunta...
— Não!
— Não.
— Credo. Por que?
— Porque não. Você perguntou se pode, não posso responder "não"?
— Mas...
— Porque quando você vem com esse papo, é que vai perguntar coisa chata. E eu não quero responder.
— Quê que custa?
— Não sei o quê que custa. Mas eu vou ficar sem graça, no mínimo.
— Então da próxima vez eu já pergunto direto.
— É até melhor mesmo. Pergunta e pronto. Mas "posso te fazer uma pergunta?" é fogo.
— Ah, não é tão mau...
— É mau sim, senhor. Ninguém fala "posso te perguntar uma coisa?" para saber que horas são, ou se o Brasil ganhou o jogo de ontem. É para perguntar coisa cabeluda.
— Ué, de repente eu só ia perguntar sobre sua família.
— Aí você perguntaria direto: "oi, tudo bem?, e a família, como vai?". Mas quando o perguntador vem com esses papos, é porque vai colocar o perguntado em má situação.
— É. Acho que você até que tem razão. Meio que assusta a pessoa mesmo.
— Eu acho que quando você vai fazer uma pergunta que exija permissão antes, é melhor nem fazer. Vai ser chato.
— É verdade. E se tiver que perguntar mesmo, que seja de uma vez, sem "posso te fazer uma pergunta?"
— E não é?
— Então está combinado. Agora, sobre aquela minha pergunta...
— Não!
Filmes #1
Por insistência de amigos, já é a terceira vez que tento assistir Quero ser John Malkovich. E a terceira vez que durmo na metade; aliás, verdade seja dita: antes da metade. Estou chegando à conclusão de que o filme é chato mesmo. Agora perguntem só se alguma vez dormi assistindo um do Charles Bronson.
24.7.07
Vinte mil léguas numa concha
Depois de ter empurrado a cama para o canto, que as baleias precisariam de bastante espaço, o menino pegou o martelo com as duas mãos e ergueu o mais alto que pôde. Desceu os braços finos com força e bateu, com os olhos fechados, na concha que tinha colocado no chão.
Um dia o avô lhe ensinara que, colocando a concha no ouvido, ele podia ouvir o mar sempre que quisesse. E ontem, depois de ter visto um filme do capitão Nemo, foi que ele viu o tamanho da responsabilidade que tinha nas mãos. Não era justo que tantos peixes baleias tubarões caranguejos polvos focas pingüins e até submarinos ficassem ali espremidos. Ele tinha que tomar uma providência urgente.
A irmãzinha quis porque quis ir junto quando soube dos planos. Mas nada feito, nada de levar companhia. Quanto menos meninas, que neste tipo de aventura perigosa só criam problemas. Elas só querem saber de ser princesas, não sabem nada sobre monstros submarinos.
Só um menino sabe, por exemplo, que, em caso de ser engolido por uma baleia, tudo o que se tem a fazer é acender uma fogueira na goela do bicho, como fez o Pinóquio. Os pedaços da concha se espalharam no tapete e, por um instante, ele teve medo da bronca que ia tomar da mãe. Bom, pelo menos a água ia limpar toda a sujeira.
Tubarões ele tiraria de letra, o medo mesmo era das lulas gigantes —afinal uma delas quase puxou o Náutilus para o fundo do mar, e isso era coisa para se preocupar. Talvez fosse melhor chamar o avô. Ou não, não chamaria ninguém. Ele enfrentaria os monstros sozinho, já tinha idade para isso.
A cordinha do calção de banho estava bem amarrada e ele tinha uma bóia para qualquer emergência. Se bem que o bom seria, na verdade, ter um escafandro, como os do filme das Vinte mil léguas submarinas. Aliás, o bom mesmo seria um submarino igual ao do capitão Nemo, um Náutilus II. O menino prendeu a respiração e esperou a água correr.
Mas oceano nenhum jorrou da concha. Nem um marzinho, uma lagoa, um riacho, uma poça que seja. O que ficou naquela tarde foram só os estilhaços de uma concha e os pedaços de um sonho de menino espalhados no tapete.
Só muitos anos mais tarde ele entenderia que não era preciso que os peixes pulassem daquela concha. Ali mesmo, sem sair do quarto, ele tinha viajado, no mínimo, umas cem mil léguas submarinas.
Um dia o avô lhe ensinara que, colocando a concha no ouvido, ele podia ouvir o mar sempre que quisesse. E ontem, depois de ter visto um filme do capitão Nemo, foi que ele viu o tamanho da responsabilidade que tinha nas mãos. Não era justo que tantos peixes baleias tubarões caranguejos polvos focas pingüins e até submarinos ficassem ali espremidos. Ele tinha que tomar uma providência urgente.
A irmãzinha quis porque quis ir junto quando soube dos planos. Mas nada feito, nada de levar companhia. Quanto menos meninas, que neste tipo de aventura perigosa só criam problemas. Elas só querem saber de ser princesas, não sabem nada sobre monstros submarinos.
Só um menino sabe, por exemplo, que, em caso de ser engolido por uma baleia, tudo o que se tem a fazer é acender uma fogueira na goela do bicho, como fez o Pinóquio. Os pedaços da concha se espalharam no tapete e, por um instante, ele teve medo da bronca que ia tomar da mãe. Bom, pelo menos a água ia limpar toda a sujeira.
Tubarões ele tiraria de letra, o medo mesmo era das lulas gigantes —afinal uma delas quase puxou o Náutilus para o fundo do mar, e isso era coisa para se preocupar. Talvez fosse melhor chamar o avô. Ou não, não chamaria ninguém. Ele enfrentaria os monstros sozinho, já tinha idade para isso.
A cordinha do calção de banho estava bem amarrada e ele tinha uma bóia para qualquer emergência. Se bem que o bom seria, na verdade, ter um escafandro, como os do filme das Vinte mil léguas submarinas. Aliás, o bom mesmo seria um submarino igual ao do capitão Nemo, um Náutilus II. O menino prendeu a respiração e esperou a água correr.
Mas oceano nenhum jorrou da concha. Nem um marzinho, uma lagoa, um riacho, uma poça que seja. O que ficou naquela tarde foram só os estilhaços de uma concha e os pedaços de um sonho de menino espalhados no tapete.
Só muitos anos mais tarde ele entenderia que não era preciso que os peixes pulassem daquela concha. Ali mesmo, sem sair do quarto, ele tinha viajado, no mínimo, umas cem mil léguas submarinas.
23.7.07
Barulhos #1
O celular do meu irmão quando toca —e como toca!— parece uma rave do DJ Tiësto. Só que mais barulhento, porque além da música tem aquele ruído —brrrrrr, brrrrrr— medonho do vibracall em cima de algum móvel.
Barulhos #2
Ainda no campo dos ruídos, acho que descobri porquê me irritam as pessoas que fazem barulho para respirar —especialmente quando ficam ali, bem atrás de mim no ônibus ou, pior, no elevador—: elas me lembram o Darth Vader.
15.7.07
A metamorfose
Ah!, ser campeão. Ah!, ser campeão ganhando da Argentina. Ah!, ser campeão ganhando da Argentina de três a zero. Ah!, ser campeão ganhando da Argentina de três a zero com um time de guris que mal saíram das fraldas. Com esses pensamentos, e ainda ouvindo as cornetas do vizinho de baixo, seu Clicério se deitou. Dormiu. Amanhã é outro dia.
* * *
Hoje é outro dia. Já o estamos observando quando seu Glicério acorda, mas não é mais seu Glicério: é señor Glicerio –e com aquele som de “ce” no meio dos dentes que só um legítimo argentino sabe fazer. Señora Eulália já levantou e podemos ouvi-la, ao fundo, cantando Mercedes Sosa enquanto prepara o café da manhã, digo, el desayuno.
Señor Glicerio levanta-se e coça a axila esquerda, bem em cima do escudo amarelo da sua camisa de la seleccion nacional. Vai até a janela. Uma mulata passa na rua, toda meneios e melindres. Ele assobia em elogio, muy hermosa, riquisima.
É triste ver um amigo querido assim transformado, mas esta é a minha história e eu estou sádico hoje. E digo mais: enquanto toma banho, señor Glicerio canta Mi Buenos Aires querido, seu tango favorito. "Mi Buenos Querido, cuando yo te vuelva a ver, no habra mas penas ni olvido" etc.
Nosotros viramos de costas quando se abre a cortininha azul e branca e ele tateia o suporte atrás de algo para se secar. Sai de baixo do chuveiro e se enxuga com sua toalha de banho preferida: a vermelha, com o brasão do River Plate. Chegamos até a tapar os ouvidos quando ele, todo disposição matinal, brada:
— Aguante, Riverplate, el campeon inalcanzable!
Ah, bons tempos em que ele era brasileiríssimo e comia pão com mortadela no café da manhã, enquanto lia o caderno de esportes no jornal. Nada disso. Muito menos do hábito de comer, na ponta da faca –o que era o horror de dona Eulália há trinta anos–, um naco da goiabada que a irmã trazia de Minas. Porque hoje nosso herói degusta facturas e alfajores. Nada do Henfil, hoje é Quino -en español, por supuesto.
Antes de empezar suas atividades de todo dia, señor Glicerio (não esqueçam do “ce” entre os dentes, por gentileza) dá algum dinheiro para que señora Eulalia vá à peluqueria. Suspira ao lembrar de que, nos velhos tempos, ella costumava ser bela como Evita Perón, la presidenta.
Enfim, passou o dia fazendo coisas de argentino, revivendo as façanhas do maestro Fangio, relendo Jorge Luis Borges. Não ouviu o Adoniran nem o Ataulfo no radinho de pilha, só uns tangos do Gardel. Suspirou ao lembrar-se do sol poente sobre o Rio da Plata (já era tão argentino que tinha saudades da terra natal). Foi à padaria lá pelas três da tarde, não para tomar uma média e contar piadas lusitanas, mas para lembrar aos brasileños -e ao português, de quebra– que Maradona é o maior jogador de fútbol que jamais pisou na face da Terra.
Ao volver para casa, fez questão de contar ao porteiro –não pela primeira vez hoje– que foi o valoroso povo de sua pátria que inventou a caneta esferográfica e o autobus. Ensinou ao vizinho que el español es una lengua dulce e musical. E, não esquecendo a devoção, rezou, antes de dormir, a Nuestra Señora de Luján, patrona del pueblo argentino.
* * *
Hoje é outro dia. Já o estamos observando quando seu Glicério acorda, mas não é mais seu Glicério: é señor Glicerio –e com aquele som de “ce” no meio dos dentes que só um legítimo argentino sabe fazer. Señora Eulália já levantou e podemos ouvi-la, ao fundo, cantando Mercedes Sosa enquanto prepara o café da manhã, digo, el desayuno.
Señor Glicerio levanta-se e coça a axila esquerda, bem em cima do escudo amarelo da sua camisa de la seleccion nacional. Vai até a janela. Uma mulata passa na rua, toda meneios e melindres. Ele assobia em elogio, muy hermosa, riquisima.
É triste ver um amigo querido assim transformado, mas esta é a minha história e eu estou sádico hoje. E digo mais: enquanto toma banho, señor Glicerio canta Mi Buenos Aires querido, seu tango favorito. "Mi Buenos Querido, cuando yo te vuelva a ver, no habra mas penas ni olvido" etc.
Nosotros viramos de costas quando se abre a cortininha azul e branca e ele tateia o suporte atrás de algo para se secar. Sai de baixo do chuveiro e se enxuga com sua toalha de banho preferida: a vermelha, com o brasão do River Plate. Chegamos até a tapar os ouvidos quando ele, todo disposição matinal, brada:
— Aguante, Riverplate, el campeon inalcanzable!
Ah, bons tempos em que ele era brasileiríssimo e comia pão com mortadela no café da manhã, enquanto lia o caderno de esportes no jornal. Nada disso. Muito menos do hábito de comer, na ponta da faca –o que era o horror de dona Eulália há trinta anos–, um naco da goiabada que a irmã trazia de Minas. Porque hoje nosso herói degusta facturas e alfajores. Nada do Henfil, hoje é Quino -en español, por supuesto.
Antes de empezar suas atividades de todo dia, señor Glicerio (não esqueçam do “ce” entre os dentes, por gentileza) dá algum dinheiro para que señora Eulalia vá à peluqueria. Suspira ao lembrar de que, nos velhos tempos, ella costumava ser bela como Evita Perón, la presidenta.
Enfim, passou o dia fazendo coisas de argentino, revivendo as façanhas do maestro Fangio, relendo Jorge Luis Borges. Não ouviu o Adoniran nem o Ataulfo no radinho de pilha, só uns tangos do Gardel. Suspirou ao lembrar-se do sol poente sobre o Rio da Plata (já era tão argentino que tinha saudades da terra natal). Foi à padaria lá pelas três da tarde, não para tomar uma média e contar piadas lusitanas, mas para lembrar aos brasileños -e ao português, de quebra– que Maradona é o maior jogador de fútbol que jamais pisou na face da Terra.
Ao volver para casa, fez questão de contar ao porteiro –não pela primeira vez hoje– que foi o valoroso povo de sua pátria que inventou a caneta esferográfica e o autobus. Ensinou ao vizinho que el español es una lengua dulce e musical. E, não esquecendo a devoção, rezou, antes de dormir, a Nuestra Señora de Luján, patrona del pueblo argentino.
11.7.07
Diários de um sapo
Não é mais como nos tempos de glória. A verdade é que ser sapo nos dias de hoje, e em especial numa república, é viver sem grandes perspectivas de ascensão social.
Nasci na época em que ser sapo encerrava uma dignidade, uma nobreza que Marechal Deodoro nenhum poderia derrubar. Éramos príncipes sobre a terra —e também na água, cidadãos do mundo que éramos—, a espera dos lábios doces de uma princesa. Coaxávamos com a firmeza e a elegância dos que sabem seu lugar: os grandes tronos da Humanidade.
Chamem-me de amargo, blasé, o que quiserem. Hoje os jovens têm vergonha de assumir que um dia tiveram guelras. A mídia lhes enfiou na cabeça que a moda é ser mamífero, ter sangue quente e lutar pelo voto livre. República, democracia, bah!
Revolta-me ver os grandes amigos, velhos companheiros dos salões da aristocracia venderem-se ao novo sistema. Caíram na armadilha de serem sapos republicanos e deixaram-se beijar por filhas de senadores, de deputados, primeiras-damas. Hoje usam ternos marrons, gravatas de cores apagadas e foram para Brasília. Trabalham em repartições públicas, ocupam cargos de confiança, assinam despachos, recebem propinas.
E, não bastasse a humilhação, o ar seco de lá não favorece em nada nossa pele de anfíbio.
Nasci na época em que ser sapo encerrava uma dignidade, uma nobreza que Marechal Deodoro nenhum poderia derrubar. Éramos príncipes sobre a terra —e também na água, cidadãos do mundo que éramos—, a espera dos lábios doces de uma princesa. Coaxávamos com a firmeza e a elegância dos que sabem seu lugar: os grandes tronos da Humanidade.
Chamem-me de amargo, blasé, o que quiserem. Hoje os jovens têm vergonha de assumir que um dia tiveram guelras. A mídia lhes enfiou na cabeça que a moda é ser mamífero, ter sangue quente e lutar pelo voto livre. República, democracia, bah!
Revolta-me ver os grandes amigos, velhos companheiros dos salões da aristocracia venderem-se ao novo sistema. Caíram na armadilha de serem sapos republicanos e deixaram-se beijar por filhas de senadores, de deputados, primeiras-damas. Hoje usam ternos marrons, gravatas de cores apagadas e foram para Brasília. Trabalham em repartições públicas, ocupam cargos de confiança, assinam despachos, recebem propinas.
E, não bastasse a humilhação, o ar seco de lá não favorece em nada nossa pele de anfíbio.
Música #1
Em termo de gosto musical, não sou bem que se pode chamar de eclético —ainda não me vendi aos pagodes e axés—, mas posso me dizer bipolar. Hoje, no que acabo de ouvir Sex Pistols, coloquei a trilha sonora d'O tigre e o dragão. Vou entrar para o ramo de auto-ajuda e ficar milionário com meu Do punk ao zen em dois CD's.
9.7.07
O diabo, política, essas coisas
Afobado, Deus pulou rápido em terra firme e jogou duas moedas ao barqueiro. No canil ao lado, um monstruoso cachorro de três cabeças ganiu, com o rabo entre as pernas. Uma comitiva de anjos corria atarantada para acompanhar Seus passos largos.
Decidido, Ele passou pelo portão e foi direto ao prédio mais alto, de janelas espelhadas, bem no centro do lugar. Uma porta de vidro se abriu, automática, e Ele ignorou o balcão da recepção. Os seguranças nem ousaram detê-Lo. Tomou o elevador, desceu no último andar e empurrou as portas duplas do escritório do presidente, sem esperar que a secretária O anunciasse.
Se Deus não fosse perfeito, teria inveja da sala em que entrara. Quando Ele criou a palavra "elegância" não imaginou que a coisa chegasse a esse nível. Tudo de muito bom gosto, de primeiríssima qualidade. A mesa, enorme, ficava em frente a uma janela ainda maior de onde se tinha visão panorâmica de todo o lugar. Uma cadeira de couro estava virada para lá, de costas para a porta, e por um segundo o Criador pensou que não tinha sido notado. Então, a cadeira virou-se lentamente em Sua direção. O anjo sentado de pernas cruzadas vestia um terno preto, italiano, caimento perfeito, debaixo de sete capas de linho finíssimo também pretas. A aparência era impecável: chifres polidos, cascos engraxados e cada fio do cavanhaque aparado com cuidado.
— Lúcifer, precisamos conversar.
As mãos finas do diabo seguravam um charuto e um copo de uísque. Ele soltou uma baforada e levantou o copo, as pedras tilintando:
— Nossa, Senhor, é uma honra tê-Lo aqui. Bebe alguma coisa? Talvez um charuto?
— Não, obrigado. Eu só vim tratar de negócios.
— Mas sente-Se, fique à vontade. Vou aumentar o ar condicionado, que o Senhor parece com calor. Há quanto tempo, não é mesmo?
— Desde que você caiu.
— Uau, tempo mesmo... E como andam as coisas lá em cima?
— Vamos levando, mas não é sobre isso que vim conversar.
— Se for sobre o que fizeram com o Seu filho, eu...
— Sejamos diretos: é o Brasil, Lúcifer.
— Bem, Senhor, eu tenho aqui todas as liberações para a venda de prostitutas, e o tráfico de drogas, se não me engano, já está em vias de...
— Não, não é isso. É sobre os políticos do Brasil.
— Olha, Onipotente, eu pensei que tinha autorização para atuar na tentação pelas secretárias...
— Até aí Eu permiti. Mas é que são os políticos, o mensalão, as ambulâncias, pseudo-martírios morais, essas coisas.
— Não sei de nada, Todo-Poderoso.
— Como não, Lúcifer? Eu te conheço, seu safado. Você vai acabar com o país em que eu tenho mais Ibope. Ainda com o resto, Eu dava um jeito, negócios são negócios, mas você jogou muito sujo nessa. O povo está desacreditando, o povo vai perder a fé!
— Vou mandar e-mail para o Judas, o Nero e o Adolf, mas posso quase garantir que isso não é coisa da minha diretoria.
— Ah, você e suas mentiras... Você vai me arruinar, Lúcifer! Diabos!
— Não, Senhor. Não estou mentindo. Lá em Brasília que inventaram isso tudo, eu não tenho nada a ver.
— Lúcifer...
— Juro pelo Senhor! Foram só eles. Sozinhos!
— Então isso tudo é safadeza deles? Olha, nessas horas que Eu me arrependo...
— Pois é. E, veja bem, não é para puxar saco, não, mas eu também me escandalizei, Altíssimo. Pesado demais. Eu ainda fico só naqueles sete de sempre: um pecado da carne ali, uma invejinha aqui, raiva, orgulho, essas coisas. Mas isso eu acho sacanagem. A gente ainda mantém uma certa decência aqui no inferno, senão vira bagunça. Porque, se eu não me cuidar, logo, logo eles chegam aqui e eu estou lascado!
Decidido, Ele passou pelo portão e foi direto ao prédio mais alto, de janelas espelhadas, bem no centro do lugar. Uma porta de vidro se abriu, automática, e Ele ignorou o balcão da recepção. Os seguranças nem ousaram detê-Lo. Tomou o elevador, desceu no último andar e empurrou as portas duplas do escritório do presidente, sem esperar que a secretária O anunciasse.
Se Deus não fosse perfeito, teria inveja da sala em que entrara. Quando Ele criou a palavra "elegância" não imaginou que a coisa chegasse a esse nível. Tudo de muito bom gosto, de primeiríssima qualidade. A mesa, enorme, ficava em frente a uma janela ainda maior de onde se tinha visão panorâmica de todo o lugar. Uma cadeira de couro estava virada para lá, de costas para a porta, e por um segundo o Criador pensou que não tinha sido notado. Então, a cadeira virou-se lentamente em Sua direção. O anjo sentado de pernas cruzadas vestia um terno preto, italiano, caimento perfeito, debaixo de sete capas de linho finíssimo também pretas. A aparência era impecável: chifres polidos, cascos engraxados e cada fio do cavanhaque aparado com cuidado.
— Lúcifer, precisamos conversar.
As mãos finas do diabo seguravam um charuto e um copo de uísque. Ele soltou uma baforada e levantou o copo, as pedras tilintando:
— Nossa, Senhor, é uma honra tê-Lo aqui. Bebe alguma coisa? Talvez um charuto?
— Não, obrigado. Eu só vim tratar de negócios.
— Mas sente-Se, fique à vontade. Vou aumentar o ar condicionado, que o Senhor parece com calor. Há quanto tempo, não é mesmo?
— Desde que você caiu.
— Uau, tempo mesmo... E como andam as coisas lá em cima?
— Vamos levando, mas não é sobre isso que vim conversar.
— Se for sobre o que fizeram com o Seu filho, eu...
— Sejamos diretos: é o Brasil, Lúcifer.
— Bem, Senhor, eu tenho aqui todas as liberações para a venda de prostitutas, e o tráfico de drogas, se não me engano, já está em vias de...
— Não, não é isso. É sobre os políticos do Brasil.
— Olha, Onipotente, eu pensei que tinha autorização para atuar na tentação pelas secretárias...
— Até aí Eu permiti. Mas é que são os políticos, o mensalão, as ambulâncias, pseudo-martírios morais, essas coisas.
— Não sei de nada, Todo-Poderoso.
— Como não, Lúcifer? Eu te conheço, seu safado. Você vai acabar com o país em que eu tenho mais Ibope. Ainda com o resto, Eu dava um jeito, negócios são negócios, mas você jogou muito sujo nessa. O povo está desacreditando, o povo vai perder a fé!
— Vou mandar e-mail para o Judas, o Nero e o Adolf, mas posso quase garantir que isso não é coisa da minha diretoria.
— Ah, você e suas mentiras... Você vai me arruinar, Lúcifer! Diabos!
— Não, Senhor. Não estou mentindo. Lá em Brasília que inventaram isso tudo, eu não tenho nada a ver.
— Lúcifer...
— Juro pelo Senhor! Foram só eles. Sozinhos!
— Então isso tudo é safadeza deles? Olha, nessas horas que Eu me arrependo...
— Pois é. E, veja bem, não é para puxar saco, não, mas eu também me escandalizei, Altíssimo. Pesado demais. Eu ainda fico só naqueles sete de sempre: um pecado da carne ali, uma invejinha aqui, raiva, orgulho, essas coisas. Mas isso eu acho sacanagem. A gente ainda mantém uma certa decência aqui no inferno, senão vira bagunça. Porque, se eu não me cuidar, logo, logo eles chegam aqui e eu estou lascado!
3.7.07
Não sou bom com poesias
Não sou bom com poesias.
Não nasci com
sensibilidade para romantismo
mas também não tenho a
racionalidade do realismo.
E se não faço questão de
paciência para parnasianismo
quem dirá ficar ter
loucas idéias de modernismo.
Não tenho alma de poeta
acho desconfortável expor a alma
em verso.
Não sou íntimo das palavras
se sei dizer, digo, se não sei,
desconverso.
Mas admito: invejo
(e como invejo!)
os que sabem fazer poemas.
Se eles escolhem
cada palavra exata
eu só me meto em dilemas.
Rimar para eles
é tão natural
e eu tenho sérios problemas.
Escrevo só o primeiro verso
(às vezes o último)
mas nunca termino.
Mas sonho um dia
em escrever um soneto, uma ode,
uma elegia, um hino.
Minha obra prima
me faria, finalmente, poeta
e mudaria meu destino.
Eu faria metáforas,
mas tão sutis metáforas
que só a alma elevada entenderia.
E comparações,
tão inteligentes comparações
que renderiam compêndios de filosofia.
E rimas
tão ricas, tão inusitadas rimas
que revolucionariam o mundo da poesia.
E toda alma sensível
e toda gente culta
um dia me aplaudiria.
Mas, ah!, minha falta de sensos
poéticos, métricos,
estéticos...
E, ah!, esses meus sonhos
grandiosos, infantis,
patéticos...
Definitivamente
não sou bom com poesias.
Não nasci com
sensibilidade para romantismo
mas também não tenho a
racionalidade do realismo.
E se não faço questão de
paciência para parnasianismo
quem dirá ficar ter
loucas idéias de modernismo.
Não tenho alma de poeta
acho desconfortável expor a alma
em verso.
Não sou íntimo das palavras
se sei dizer, digo, se não sei,
desconverso.
Mas admito: invejo
(e como invejo!)
os que sabem fazer poemas.
Se eles escolhem
cada palavra exata
eu só me meto em dilemas.
Rimar para eles
é tão natural
e eu tenho sérios problemas.
Escrevo só o primeiro verso
(às vezes o último)
mas nunca termino.
Mas sonho um dia
em escrever um soneto, uma ode,
uma elegia, um hino.
Minha obra prima
me faria, finalmente, poeta
e mudaria meu destino.
Eu faria metáforas,
mas tão sutis metáforas
que só a alma elevada entenderia.
E comparações,
tão inteligentes comparações
que renderiam compêndios de filosofia.
E rimas
tão ricas, tão inusitadas rimas
que revolucionariam o mundo da poesia.
E toda alma sensível
e toda gente culta
um dia me aplaudiria.
Mas, ah!, minha falta de sensos
poéticos, métricos,
estéticos...
E, ah!, esses meus sonhos
grandiosos, infantis,
patéticos...
Definitivamente
não sou bom com poesias.
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