Mostrando postagens com marcador coisas da vida. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador coisas da vida. Mostrar todas as postagens

20.12.12

Palavras cruzadas

Duas cabeças brancas debruçadas sobre duas xícaras vazias, uma caneta e uma revista: quem entra apressado no shopping certamente não percebe uma cena tão delicada. Tampouco eles, sentados a uma mesa do café, parecem perceber tanta pressa ao redor. De tempos em tempos, rompem o silêncio concentrado com alguma frase curta, tomam a caneta, escrevem. Fazem palavras cruzadas.
     Já há mais de cinquenta anos os dois formam uma boa dupla: ela entende de artes e português e ele, de geografia e ciências. Juntos, já enfrentaram muitas perguntas, preencheram espaços, descobriram respostas, conviveram com dúvidas. Grande afeição por outra pessoa, com quatro letras.
     O atendente, pouco atencioso, traz as coalhadas ainda dentro dos potes descartáveis fechados, o mel em embalagenzinhas individuais, como essas de manteiga ou geleia de hotel. Deixa tudo sobre a mesa, com duas colheres envoltas saquinhos plásticos. Enquanto ela tenta, os olhos quase fechados, puxar da memória a poeta polonesa que ganhou o Nobel, ele abre umas das embalagens, derrama numa espiral o mel sobre a coalhada, desembrulha uma colher e coloca em frente dela. Em seguida, prepara sua própria porção.
     Depois de discutirem brevemente sobre o cantor caribenho precursor da bossa nova, passam um bom tempo calados. É um silêncio é de harmonia. Numa parceria longa como essa é preciso somente um olhar para se pedir a caneta, um sinal leve para dizer que não se sabe a resposta. Pela porta do shopping, mais gente vai entrando apressada, com fome de algo que a pressa não saciará. Ela recusa uma segunda rodada de café, se tomar outra xícara não conseguirá dormir à noite.
     Desenhando com capricho a cauda elegante de um R, ele preenche o último quadradinho do dia. Levantam a cabeça ao mesmo tempo num sorriso satisfeito. Ela paga a conta.
     Quem sai apressado do shopping certamente não percebe uma cena tão delicada: caminham em direção de casa, ele apoiando-se numa bengala e ela carregando uma revista de palavras cruzadas. Com as mãos que sobram, seguram um ao outro.

9.12.11

Compras de Natal

          baseado num dos cartões do sempre
          surpreendente Post Secrets

Acontece bastante, já deve ter se passado com quase todo mundo: num mercado, numa loja, num restaurante, alguém nos chama a atenção, sabe-se lá o porquê. E aí acompanhamos, de canto de olho e só por uns minutos ou até uns segundos, aquele amigo. Uma coisa silenciosa, meio clandestina. Adivinhamos um pouco da história, inventamos outro tanto, desejamos boa noite, bom descanso, que chegue bem em casa. Um tipo de afeto, uma certa curiosidade, alguma simpatia...
     Que foi bem o que aconteceu com uma moça enquanto empurrava o carrinho pelo supermercado. Já comprara um litro de leite, umas frutas e a comida do gato e agora andava pelos corredores, tentando resolver a sensação de que faltava alguma coisa.
     Entre as montanhas de panetones, ela cruzou com uma mulher de meia idade, gestos vivos e olhos cansados, cabelos precisando de um retoque. Uma mulher dessas que, de bater os olhos, sabe-se que é mãe, não só dos filhos que têm -ou talvez nem tenha-, mas de muita gente. Empurrava um carrinho cheio de brinquedos em direção dos caixas.
     Filhos? Netos? Crianças carentes, órfãos, vizinhos pobres...?
     A moça largou da sensação de faltar algo -quase nunca falta- e decidiu também ir ao caixa. Ficou ali, escondendo um sorriso e fingindo que olhava um panfleto, enquanto via passar uns carrinhos, uma boneca, um urso de pelúcia, uma locomotiva, uns jogos de montar, um disquinho de músicas natalinas.
     Depois da senha, o garoto do caixa falou indiferente que o cartão não foi autorizado. A senhora pareceu olhar para cima e pediu que tentasse no crédito. Foram uns segundos angustiantes até o segundo não.
     A senhora agradeceu e saiu da loja de mão vazias.
     Mas então a moça foi rápida; na mesma hora soube o que fazer. Sempre  sabemos, só precisa a coragem. Pediu ao caixa que passasse todos os brinquedos deixados e pagou por tudo. Correu empurrando o carrinho cheio de brinquedos até o carro onde a senhora, de olhos vermelhos, já dava a partida e bateu no vidro.
     O motor engasgou e morreu.
      Uma do lado de dentro, outra do lado de fora, começaram a chorar. A moça se descobriu também uma mãe, não só dos filhos que ainda não tinha mas de muitos outros. A mulher de meia idade abriu a porta e deu um abraço atrapalhado, demorado. Ajudaram-se a colocar tudo com cuidado no banco de trás.
     Quando conseguiu falar, a senhora agradeceu, abençoou, agradeceu, chorou, agradeceu e pediu um telefone, fazia questão de pagar assim que pudesse. E a moça, pela segunda vez, soube o que fazer: puxou um bloquinho e uma canetinha da bolsa e escreveu um número falso.
     Pediu à senhora se podia dar-lhe mais um abraço e foi embora. Só quando chegou em casa notou que esquecera seu leite, suas frutas e a comida do gato.
     E era Natal.

27.7.11

A parábola dos porcos

Assim que ele, segurando a respiração, não pôde ouvir mais nada além da coruja no pomar, o menino segurou firme a lanterna e saltou, já de tênis e tudo, de baixo das cobertas. Esqueceu da tábua solta do assoalho e, quando a madeira rangeu alto, ficou ali paralisado, pensando que tinha botado tudo a perder. Mas não: o avô já roncou logo em seguida. Ufa, à missão.
     A missão era nobre, valia o perigo de uma aventura na madrugada –para quem dorme à oito, qualquer dez horas já é madrugada. O menino respirou fundo, girou a maçaneta e saiu correndo de uma vez só, sem olhar para cima –não precisava; nessa noite não havia morcegos nas tábuas do telhado da varanda.
     Eram agora as férias de inverno. Uns dias antes, o pai e a mãe o haviam deixado –junto com a mochila, a lanterna, o telescópio e uma pilha de revistas– no sítio do avô. A irmã teve que ficar na cidade, de recuperação em português.
     A coruja girou a cabeça, curiosa, quando viu a sombra passar pelo galpão, contornar a jaqueira –não é bom passar por baixo dos galhos; vai que uma bomba dessas cai na cabeça?–, e seguir na ponta dos pés em direção do chiqueiro. A lanterna ficou desligada mesmo: era noite de lua cheia. E que lua!
     A porca esparramava-se de lado, os porquinhos aconchegavam-se uns em cima dos outros. O avô dizia que porco é bicho esperto, sabe quando a gente chega com comida na mão e quando chega com a faca escondida debaixo da camisa. Mas o menino chegava com coisa melhor e, por isso, nenhum reclamou quando ele, chegando de mansinho, agachou rente ao cercado.
     Foi ganhando confiança, acariciou primeiro a mãe e depois os filhotes. Esticou os braços no meio das ripas e pegou um dos sete. Subiu o porquinho até em cima da cerquinha e notou, com alívio, que ele não se agitava. E então carregou-o no colo até o meio do terreiro.
     Na roça, onde não há postes que apaguem as estrelas, o céu cintilava cheio de luzinhas:
     — Olha só como é bonito. Tá vendo aquelas bem ali? É o Cruzeiro do Sul, eu aprendi na escola que é só saber achar ele no céu que a gente nunca vai se perder.
     Ficaram os dois ali, um momento meio solene, meio engraçado: um menino com os braços esticados, um porquinho suspenso lá em cima.
     — Aquela grande ali é a lua. Meu vô assistiu uma vez na televisão uns homens que viajaram até lá.
     O garoto repetiu com cada um dos filhotes –a mãe era pesada demais, mas quem sabe quando ele crescesse e ficasse mais forte?– o mesmo ritual. Mostrou a todos o Cruzeiro do Sul –pouco provável que um deles se aventure muito mais longe do que a cerca atrás do chiqueiro, mas enfim–, a lua cheia, as galáxias e até um avião que passava.
     É que, mais cedo, segurando um pedaço de broa de milho numa mão e uma revista dessas de curiosidades na outra, o menino descobrira que os porcos não conseguem olhar para cima. Foi um momento de revelação. Os porcos não podem ver o céu, e lhe pareceu injusto que alguém viva –e justo no campo, onde não há postes que apaguem as estrelas– sem nunca ver o céu. Daí a missão nobre, daí ele estar no meio do terreiro, com os braços cansados de segurar filhotes acima da cabeça.
     Talvez, na ingenuidade, ele nem tenha notado a indiferença dos porquinhos. Arrisco dizer que os bichinhos não deram grande importância, talvez nem se lembrem.
     Mas para o menino fez toda a diferença.

13.7.11

Namore um cara que lê

          baseado no "Namore uma garota que lê",
          texto escrito pela Rosemary Urquico e
          traduzido e adaptado para o português
          pela Gabriela Ventura
          (espero que não se zanguem muito comigo)


Namore um cara que se orgulha da biblioteca que tem, ao invés do carro, das roupas ou do penteado. Ele também tem essas coisas, mas sabe que não é isso que vai torná-lo interessante aos seus olhos. Namore um cara que tenha uma pilha de três ou quatro livros na cabeceira e que lembre do nome da professora que o ensinou as primeiras letras.
     Encontre um cara que lê. Não é difícil descobrir: ele é aquele que tem a fala mansa e os olhos inquietos. Ele é aquele que pede, toda vez que vocês saem para passear, para entrar rapidinho na livraria, só para olhar um pouco. Sabe aquele que às vezes fica calado porque sabe que as palavras são importantes demais para serem desperdiçadas? Esse é o que lê.
     Ele é o cara que não tem medo de se sentar sozinho num café, num bar, num restaurante. Mas, se você olhar bem, ele não está sozinho: tem sempre um livro por perto, nem que seja só no pensamento. O rosto pode ser sério, mas ele não morde, não. Sente-se na mesa ao lado, estique o olho para enxergar a capa, sorria de leve. É bem fácil saber sobre o quê conversar.
     Diga algo sobre o Nobel do Vargas Llosa. Fale sobre sobre as novas traduções que andam saindo por aí. Cuidado: certos best-sellers são assunto proibido. Peça uma dica. Pergunte o que ele está lendo –e tenha paciência para escutar, a resposta nunca é assim tão fácil.
     Namore um cara que lê, ele vai entender um pouco melhor seu universo, porque já leu Simone, Clarice e –talvez não admita– sabe de memória uns trechos de Jane Austen. Seja você mesma, você mesmíssima, porque ele sabe que são as complicações, os poréns que fazem uma grande heroína. Um cara que lê enxerga em você todas as personagens de todos os romances.
     Um cara que lê não tem pressa, sabe que as pessoas aprendem com os anos, que qualquer um dos grandes tem parágrafos ruins, que o Saramago começou já velho, que o Calvino melhorou a cada romance, que o Borges pode soar sem sentido e que os russos precisam de paciência.
     Um namorado que lê gosta de muita coisa, mas, na dúvida, é fácil presenteá-lo: livro no aniversário, livro no Natal, livro na Páscoa. E livro no Dia das Crianças, por que não? Um cara que lê nunca abandonará uma pontinha de vontade de ser Mogli, o menino lobo.
     E você também ganhará um ou outro livro de presente. No seu aniversário ou no Dia dos Namorados ou numa terça-feira qualquer. E já fique sabendo que o mais importante não é bem o livro, mas o que ele quis dizer quando escolheu justo esse. Um cara que lê não dá um livro por acaso. E escreve dedicatórias, sempre.
     Entenda que ele precisa de um tempo sozinho, mas não é porque quer fugir de você. Invariavelmente, ele vai voltar –com o coração aquecido– para o seu lado.
     Demonstre seu amor em palavras, palavras escritas, falas pausadas, discursos inflamados. Ou em silêncios cheios de significados; nem todo silêncio é vazio.
     Ele vai se dedicar a transformar sua vida numa história. Deixará post-its com trechos de Tagore no espelho, mandará parágrafos de Saint-Exupéry por SMS. Você poderá, se chegar de mansinho, ouví-lo lendo Neruda baixinho no quarto ao lado. Quem sabe ele recite alguma coisa, meio envergonhado, nos dias especiais. Um cara que lê vai contar aos seus filhos a História Sem Fim e esconder a mão na manga do pijama para imitar o Capitão Gancho.
     Namore um cara que lê porque você merece. Merece um cara que coloque na sua vida aquela beleza singela dos grandes poemas. Se quiser uma companhia superficial, uma coisinha só para quebrar o galho por enquanto, então talvez ele não seja o melhor. Mas se quiser aquela parte do "e eles viveram felizes para sempre", namore um cara que lê.
     Ou, melhor ainda, namore um cara que escreve.

24.5.11

Mensagem pra quem?

Chovia.
     Chovia, e enquanto chovia lá fora, ali dentro, numa mesa no canto da cafeteria, a mocinha de lenço azul se aquecia com um capuccino caprichado no creme. Em volta, casais, amigos, pessoal que acabou de sair da aula de francês. Só ela sozinha.
     Com cuidado, colocou a xícara de volta no pires e puxou para mais perto o celular que já estava ali. Começou a digitar com um sorrisinho no rosto.
     É uma mocinha de lenço azul daquelas que abrem um sorrisinho secreto enquanto seguram a xícara quente com as duas mãos, que suspiram satisfeitas quando dão uma colherada no doce. Que se aconchegam na poltrona confortável do cinema. Que fecham os olhos para respirar o perfume da dama da noite quando, voltando para casa à noite, passam em frente ao jardim da vizinha. "Adorável", acho que é assim que se chama.
     Sem muita pressa e ainda com o sorrisinho no rosto, terminou a mensagem: "oi, tô aqui no café tomando um capuccino delicinha" –ou seja lá que linguajar mocinhas adoráveis de lenço azul costumam usar–, apertou o botão vermelho do aparelho e mandou para ninguém.
     Para ninguém. Apagou.
     E não foi a primeira vez que fez isso. Nunca chegou a fingir falar com alguém do outro lado; só, volta e meia, dá de escrever essas mensagens. Tem vergonha de estar sozinha, quer que os outros pensem que logo mais ela vai encontrar amigas ou namorado, que aquela mesa solitária é só provisória até a próxima mesa cheia.
     Porque ela sai um bocado sozinha, não é dessas mocinhas de lenço azul que ficam em casa assistindo comédia romântica e esperando príncipe bater na porta, também não é das que esperam os eternos "um dia a gente combina qualquer coisa" das amigas. Vai ao cinema, toma café, vê exposições, até janta de vez em quando. E, no fundo, não vê problema nenhum nisso –se bem que, no fundo de verdade, queria mesmo que o barista esticasse um guardanapo com um número e um "pode mandar as mensagens para mim".
     Enfim, sai sozinha mas tem vergonha de que as pessoas pensem que ela é sozinha, uma coisa difícil de explicar, e daí as mensagens.
     "Tô aqui matando tempo na livraria enquanto a chuva não diminui". "Saí do restaurante e vou aproveitar pra ver uns sapatos no shopping". Digita a mensagem, manda para ninguém e espera um pouco. Então pega o celular, finge que lê uma resposta, dá um sorriso e digita. Para ninguém.
     Então guardou o celular com outro sorriso, terminou o capuccino e saiu. Na mesa ao lado, repleta de gente, uma mocinha sem lenço tentou –e não conseguiu– disfarçar a curiosidade.
     Não chovia mais e a mocinha de lenço azul saiu para um próximo passeio, talvez.
     Quem a vir por aí, já sabe.

25.3.11

Dessas que acontecem o tempo todo

Sardas, sardas delicadas. Pele clarinha. Olhos claros, grandes, e cabelo escuro, pequeno. As alcinhas da blusa nos ombros frágeis. Uns gestos assim de quem quer parecer mulher feita, mas não adianta: tudo nela cheira a coisas frescas –e tem os sapatos, também: os sapatinhos denunciam um resto de meninice.
     Ao lado dela, o garoto não consegue disfarçar a tensão. Ela relaxada, jogada no banco, assoprando a última baforada do cigarro para o alto, mostrando o pescoço branquinho. Ele tenso, intimidado, sentado meio desconfortável na ponta do banco, esqueceu de tirar a mochila das costas, boca seca e mãos molhadas.
     Conversam. Ela conta como foi o dia, e ele saboreia cada palavra, imagina cada momento daqueles. Ela acordando de manhã, ela correndo para pegar o ônibus, ela escondendo-se da chuva, ela mostrando esmeraldas a um cliente na joalheria, ela almoçando um sanduíche natural, ela tomando um chá gelado desses com gosto de adoçante, ela saindo para fumar cinco minutinhos. Ela.
     Ela relaxada, ele tenso.
     Até que enfim ele tira a mochila das costas. Desajeitado. Agora pode se encostar no banco, vê-la sem ter que torcer o pescoço. O que ele não daria para que ela o visse como alguém além do amigo fofo.
     Ela puxa mais um cigarro do maço. Ele quer parecer que não liga, mas pediria a ela que parasse. O isqueiro de bolinhas vermelhas, o pescoço delicado, a boca assoprando para o céu.
     O que ele não daria.
     Chega então um sujeito. Um desses, que parecem mais do que são, que querem mais do que merecem. Dá no rosto da moça um beijo demorado e na mão do garoto um aperto apressado e mais se larga do que se senta no banco. Pede um cigarro a ela, solta a primeira baforada na direção dele.
     Alguém está sobrando no banco.
     A garota só tem olhos para o sujeito. O cigarro vai queimando: ela esqueceu de fumar. O garoto fica ali, quer parecer que não liga, mas pediria que ela não andasse com esses caras. O sujeito conta histórias, vantagens.
     O garoto interrompe, inventa uma qualquer. Alguém está sobrando no banco e ele decidiu quem é –não deveria ser. Levanta apressado, ajeita a mochila nas costas –parece mais pesada agora– e sai, com as mãos nos bolsos. Chuta uma pedra sem querer e mais adiante chuta de novo, por querer.
     O que ele não daria, meu Deus!
     A garota fica lá, procura o espelhinho na bolsa, agora é ela quem está tensa. O sujeito mal a olha, largado no banco, e conta suas histórias tortas: não sabe ouvir, só falar.
     Quem sabe um dia ela veja.

* * *
(Ou pelo menos foi o que eu imaginei, vendo a cena do outro lado da calçada, sentado no café.)

20.9.10

Cupons de desconto

Era uma segunda-feira chuvosa de uma semana que prometia ser nada animadora quando o ding dong da caixa de e-mails dele anunciou algo que não era "reunião urgente às cinco" e nem "últimas alterações do cliente".
     Era uma segunda-feira chuvosa de uma semana que prometia ser nada animadora quando ela leu "e-mail enviado com sucesso" e sorriu ao imaginar que ele também sorria do outro lado da cidade.
     E ele sorriu.
     Os dois sorriam e um cupom de desconto de restaurante piscava na tela. "Economize tantos porcento na apresentação deste", esse tipo de coisa.
     Volta e meia, ele recebia um desses, nunca descobriu de quem. Anônimos. Alguém os encaminhava desses sites de clube de desconto. Alguém que com certeza o conhecia, sabia do que gostava. As sugestões sempre certeiras: restaurante chinês, cerveja especial, camiseta bem humorada.
     E era ela que encaminhava. Lembrava que, ah!, esse restaurante é do tipo que ele gosta, esse bar é para ele sentar com os amigos e desanuviar um pouco, essas camisetas são a cara dele.
     Foram namorados, terminaram há quase um ano e se for ver, na verdade na verdade, nenhum dos dois sabe explicar por quê. Terminaram, cada um para seu lado e nunca mais se viram. Mas ela ainda se preocupava, ainda sorria ao saber que ele sorria do outro lado da cidade.
     À noite, ele, cupom na mão, jantou no tal restaurante.
     Ela ficou em casa, tomando sopa de pacotinho.

11.3.10

Viola

Debruçado na janela do apartamento, ele olhou para a viola, largada num canto, atrás da pilha de antigos livros da faculdade.
     Às vezes tinha essas saudades. Saudades da terra onde nasceu, dos campos onde cresceu, da casa onde ainda –se Deus quiser– voltaria para morrer. Saudade dos pomares, das plantações, dos pastos, dos riachos. Do canto do galo, do grito do quero-quero, do mugido, do relincho, do cacarejo, do pio. Do canto próximo de um sabiá, do som distante de um berrante.
     Saudades dos dias, mas principalmente saudades das noites.
     Meses atrás, um telefonema o avisara da morte do pai. O dono da viola. O pai, que carregava a bandeira todos os anos na Festa do Divino. O pai que, todas as noites, tocava antes de deitar-se e que chorou de orgulho quando ouviu os primeiros acordes nascerem das mãos do filho. O pai, sábio de uma sabedoria que não se ensina na escola, que o incentivara a buscar estudo na cidade grande.
     De tudo, do que mais ele sentia falta era das noites. Na cidade não se pode ver as estrelas porque as luzes dos homens ofuscaram a luz do céu. Vivem todos tão ocupados aqui em baixo, tão preocupados com aqui em baixo que esqueceram que existe um lá em cima.
     Quando era pequeno, ele se deitava de barriga para cima no terreiro e via a Lua e todas aquelas estrelas. Ficava lá, com as mãos entrelaçadas atrás da cabeça, ouvindo a viola trinar na varanda até que a mãe chamasse para dentro. No dia seguinte, o trabalho era duro: nem tudo na vida é olhar estrelas. Os dias eram difíceis, mas as noites eram gentis e ele tinha saudades delas.
     Então ele saiu da janela. Pegou a viola há tempo tempo encostada e tocou, tocou como se morasse ainda na roça, onde não há vizinhos que reclamem do barulho a essas horas da noite. Uma lágrima correu quando ele viu que ainda sabia como se faz.
     E os vizinhos reclamaram, mas só porque não sabem da tristeza que lhe dá a lua cheia.

27.1.10

Verduras e morangos

Parado em frente à porta, ele sentiu de novo aquela coisa gelada virando, revirando dentro do estômago. Esticou a mão direita e em seguida puxou o braço de volta, recuou um passo, como se a maçaneta fosse um bicho pronto para o bote.
     Já tinha hesitado mil vezes antes de chegar até ali, pensado mil vezes, ensaiado mil vezes. Pensado ensaiado pensado ensaiado. Ontem mesmo, depois de ter repetido consigo a fala, parou diante da porta, juntou os fiapos de coragem para bater, aprumou-se, respirou fundo... e não bateu. Antes que alguém perguntasse o que fazia ali, voltou para a mesa sem graça na sala sem graça onde um relatório sem graça –para as cinco, urgente!– o esperava.
     Mas hoje não, hoje decidira-se que iria até o fim. Respirou fundo e, usando como combustível a indignação que sentia consigo mesmo por ser assim tão covarde, bateu.
     Sempre assim: "para as cinco, urgente!", "para daqui cinco minutos, urgente!", "para ontem, urgente!". Tudo era urgente. Mas desde uns dias atrás que ele sentia que viver era ainda mais urgente, viver era urgentíssimo.
     Empurrou a porta, pediu licença, entrou e fechou-a atrás de si. A maçaneta não mordia, afinal. Sentou-se. As mãos suavam, mas ele soube disfarçar bem. A voz saiu firme, muito melhor do que esperava. O sujeito do lado de lá da mesa largou o mouse, deixou um pouco de lado a tela de e-mails. Estava se saindo bem, afinal.
     Então ele pediu demissão.
     Sentado na sua cadeira de diretor, a única confortável da empresa, o chefe não entendeu, perguntou se era insatisfação com salário, ofereceu um pouco mais, vergonhosamente pouco mais. Mas ele não estava aberto a negociações, estava firme no que havia decido, o chefe não pôde fazer nada a não ser concordar. A tela piscava, novos e-mails caíam na caixa de entrada. Era já perto do dia trinta e eles agilizaram tudo para o dia primeiro. Começaria o mês desempregado.
     Voltou para a sala, onde não disse nada. Não tardou muito, alguém voltou da chefia e espalhou a notícia da demissão. Ninguém entendeu o porquê –"é salário?"–, mas ele nem esperava mesmo que entendessem. Era funcionário antigo da casa, era funcionário exemplar. Abriu suas planilhas, terminou um relatório urgente para as cinco e meia. Voltou para casa já levando algumas coisas das gavetas, para adiantar.
     Dia trinta, despediu-se. Lavou a caneca pela última vez, decidiu deixá-la na copa para quem quisesse, o resto das coisas –pastilhas para garganta, uns cartões, o carregador do celular– coube numa sacola de mercado. Sem alarde, sem choradeira, sem fotografias, sem almoço especial. Na cadeira de diretor, o chefe entrevistava um candidato.
     Já no dia seguinte, começou a procurar. Passou as semanas seguintes olhando classificados, fazendo contas. Não tinha pressa e só fechou negócio quando achou exatamente o que sonhava. Daí para mudar-se para o sítio foi só questão de tempo. E foi viver.
     Está difícil segurar a ansiedade, as verduras demoram para crescer e nem sinal ainda dos morangos. Mas logo ele colhe a primeira safra.

12.1.09

Dona Mirtes

Começou com o Tobi a tradição de a dona Mirtes mandar empalhar cada cãozinho que passa dessa para uma melhor. E já são três pequineses empertigados em cima da cristaleira na sala de estar: o Tobi, o Nonô e o Xereta. O Capitão, que ainda está bem vivo, se bem que já meio ruim de fôlego, olha meio ressabiado para o destino inevitável toda vez que passa por ali.
     É uma daquelas velhinhas miúdas, magrinhas, que parecem que vão quebrar se um dia tomam um encontrão na rua. Velhinha de vestido florido de cambraia, casaquinho de tricô por cima, meias de lã puxadas até o meio das canelas, óculos grandão de lente cor de âmbar, sombrinha nos dias de sol. Uma velhinha autêntica.
     Todo santo dia, depois de rezar para santa Edwirges, ela passa a flanelinha num quadro de moldura dourada e vidro já meio embaçado pendurado em lugar de destaque, logo ao lado da cristaleira com as baixelas, os cristais e os pequineses. É o retrato do falecido, que lhe deu trinta e tantos anos de casamento feliz, três filhos e a simpática casa azul no final da ruazinha sem saída.
     Todo santo dia, dona Mirtes leva o Capitão para o passeio matinal. Segue pela rua tranquila nos seus chinelos peluciados, seguida pelo tique-tique-tique-tique das patinhas do inseparável companheiro. O Capitão, sempre vigilante, vai distribuindo rosnados a quem cruzar o caminho. A Cida da casa 8? Rosnado. O Tarcísio de bicicleta? Rosnado. Criança jogando bola? Rosnado. O pessoal da república? Grrrrr!
     Todo santo dia, depois do almoço, dona Mirtes deita no sofá e o Capitão pula para sua poltrona preferida —leva uma vida boa o cachorrinho, disso ele não pode reclamar— para assistirem o reprise da novela. Acaba que caem os dois numa soneca preguiçosa —e todo santo dia o Capitão tem pesadelos com o empalhador— até a hora da sopinha.
     Todo santo dia, dona Mirtes cozinha bem os legumes para a sopa. Bate bem no mixer que ganhou da filha, que a dentadura anda meio ruim para mastigar. Derrama uma concha por cima da comida do Capitão, um pouco por agrado e um pouco para ajudar a amolecer a ração, que os dentes dele já não andam lá essas coisas também.
     Volta e meia algum filho vem visitar e passa um sermão sobre medir o diabetes, cuidar do colesterol e um tal sujeito de nome complicado: Alzimar, Alzemir, Alzheimer... que ela sempre esquece quem é. Se enchem muito a paciência, dona Mirtes desliga o aparelhinho de surdez e deixa o pobre aflito falando com as paredes. Ela explica que não entende de morrer, só sabe viver.
     Todo santo dia, dona Mirtes leva o Capitão para o passeio da manhã. Um percurso de mais ou menos 100 metros, que ela percorre com exatamente cento e vinte passinhos cautelosos nos chinelos peluciados. O Capitão precisa de quatrocentos e quarenta e oito passinhos nervosos, tique-tique-tique-tique das patinhas de pequinês. Todo santo dia, ela reza para santa Edwirges. Todo santo dia, ela suspira pelo falecido.
     Devagarinho, passo a passo. E, mesmo com a calma de quem já não precisa mais chegar, vai longe a dona Mirtes.
     Todo santo dia, ela é feliz.

17.11.08

Olhai as aves do céu

          Em homenagem à simpática família
          que veio morar na garagem de casa.


É primavera.
     Cedo, assim que nasce o sol atrás da serra, sem cerimônia, sabiá sai assobiando sossegado e lança-se à sua missão.
     Nem aí com as pessoas na cozinha, nem aí com quem ganhou as eleições nos Estados Unidos, nem aí com o Brasileirão, o bichinho passa carregando galho depois de galho. Vai juntando tudo numa prateleira da garagem, entre dois vasos de violetas. "Bom lugar para se trazer uma garota", deve pensar; é um sabiá romântico. Entre um galho e outro, já que o petisco está ali dando bobeira, ele se serve de um grão de ração da tigela do cachorro e, se não estivesse frio, talvez se banhasse na água da outra tigela; é um sabiá folgado também.
     Desde que o mundo é mundo, desde que sabiás são sabiás a coisa funciona assim. Nenhum outro o ensinou: ele simplesmente sabe o que tem que fazer. E faz. Nunca lhe passou pela cabecinha emplumada fazer outra coisa que não isso. E assobiar, porque além de carregar galhos ramos talos brotos folhas até flores, o sabiá sabe assobiar.
     Tempo bom, o sabiá está lá, de galho no bico. Tempo ruim, o sabiá está lá, de galho no bico. Bom construtor, o material é todo de qualidade. Bom engenheiro, parece que tão cedo não vai cair. Bom arquiteto, logo o emaranhado toma jeito de casa. No fim das contas, é um ninho. E um baita ninho de sabiá que come ração de cachorro.
     A noitada deve ter sido boa. E merecida, porque o sabiá bem que arrumou tudo direitinho, é rapaz de família. Belo dia, entre os dois vasos de violeta amanhece por lá a nora que mamãe pediu a Deus, sabiazinha vistosa, de peito amarelo e olhos vigilantes. Não por coincidência, não tarda para que surjam três ovinhos.
     Namorado apaixonado, sabiá macho leva café da manhã na cama para a sabiá fêmea. Minhocas selecionadas e frutas da estação -ela não gosta de ração, homem é que come qualquer porcaria na rua-, como convém a uma moça de bons costumes. Que emoção quando o primeiro ovo, mais espertinho, começa a chutar dentro da casca. Logo o segundo e o terceiro também. A casca vai ficando pequena, pequena até que mamãe sente uma pontada, e outra, e outra. Nascem feinhos, os pobres, mas ai de quem disser isso a uma mãe sabiá orgulhosa.
     A situação complica, as despesas aumentam, e mamãe sai de casa atrás de comida também. Agora são dois caçando minhocas para sustentar a casa. Porque estão lá, três biquinhos abertos para o alto, piu piu piu sem parar. Três sacos sem fundo e sem penas que um dia virarão sabiás e terão seus próprios ninhos porque assim é a vida.
     Diz que lá fora o petróleo está acabando, o capitalismo anda em colapso, o buraco da camada de ozônio aumentou de novo e o gelo do Ártico derreteu quase todo. Mas os sabiás não sabem de nada disso, têm mais no que pensar.

* * *
ps. E hoje, dia seguinte ao post, dei com os três filhotinhos no chão de manhã. Algum gato se encarregou de dar um final triste para minha historinha. Mamãe sabiá não sei para onde foi.

17.10.08

Ele, ela e o Chet Baker

Numa sexta, depois de uma cerveja com os amigos, ele chegou em casa molhado da garoa fina. Sozinho, ninguém na garupa da moto. Um gato fugiu, rápido, quando ele abriu o portão.
     Numa sexta, depois de um cinema com as amigas, ela voltou ouvindo música baixinho no carro. Sozinha, ninguém no banco do carona. O cachorro correu para saudá-la na garagem.
     Debaixo do chuveiro, ele pensava que a havia deixado escapar. Escapar como a água que agora corria para o ralo. Delicada, refinada. Uns olhos que faziam a coisa valer a pena. Bela garota, talvez a que ele andava precisando para deixar de vez de viver do passado.
     Sentada no sofá, ela lembrava de como ele, desde a última vez, sumira. Sumira feito a fumaça do chá que ela agora assoprava. Bem-humorado, bom caráter. Uma voz que a fazia sentir-se mais leve. Bom rapaz, quem sabe o que ela estava esperando para viver o futuro.
     Pensando consigo, ele sabia que tinha mexido com ela. Certa vez concluíra –embora não fosse dizer isso jamais– que ele deveria ser diferente dos outros com quem ela havia convivido até então. Notara como ela parecia mais à vontade e deixava-se afundar lentamente nas cadeiras quando estava ao lado dele e como –coisa tão sutil nela– tocava-lhe as mãos, às vezes, enquanto conversavam.
     No fundo, ela sabia que havia, sim, despertado o interesse dele. Um dia tivera a impressão –que jamais dividiria com ninguém, para não soar pretensiosa– de que ela trouxera frescor ao mundo tão rígido dele. Notara como ele se empertigava todo ao entrar em algum lugar ao lado dela e achara bonitinho o gesto –parecia tão natural nele– de empurrar as portas e deixá-la entrar antes.
     Para ele, não havia mais volta. Hesitante, deixara o tempo passar, deixara as coisas chegarem a um ponto onde não havia mais conserto. Na verdade, para ele, tudo havia começado errado.
     Para ela, tudo estava perdido. As coisas tinham esfriado, culpava-se por talvez ter sido muito precipitada, talvez tê-lo assustado de alguma forma. Para ela, terminaram tudo errado.
     Mas, no fundo, pensava que cederia caso ela voltasse. Censurava-se por ter pensado demais.
     Porém, tinha uma esperança de que ele aparecesse. Consolava-se por ter sentido demais.
     No quarto, antes de dormir, ela ouvia Chet Baker. Lembrava de terem comentado uma vez e sorrido ao descobrir esse gosto em comum.
     E no quarto, antes de dormir, ele amaldiçoava Chet Baker porque cantava, com sua voz mansa, no ouvido dela, tudo o que ele fora covarde demais para dizer.

24.7.07

Vinte mil léguas numa concha

Depois de ter empurrado a cama para o canto, que as baleias precisariam de bastante espaço, o menino pegou o martelo com as duas mãos e ergueu o mais alto que pôde. Desceu os braços finos com força e bateu, com os olhos fechados, na concha que tinha colocado no chão.
     Um dia o avô lhe ensinara que, colocando a concha no ouvido, ele podia ouvir o mar sempre que quisesse. E ontem, depois de ter visto um filme do capitão Nemo, foi que ele viu o tamanho da responsabilidade que tinha nas mãos. Não era justo que tantos peixes baleias tubarões caranguejos polvos focas pingüins e até submarinos ficassem ali espremidos. Ele tinha que tomar uma providência urgente.
     A irmãzinha quis porque quis ir junto quando soube dos planos. Mas nada feito, nada de levar companhia. Quanto menos meninas, que neste tipo de aventura perigosa só criam problemas. Elas só querem saber de ser princesas, não sabem nada sobre monstros submarinos.
     Só um menino sabe, por exemplo, que, em caso de ser engolido por uma baleia, tudo o que se tem a fazer é acender uma fogueira na goela do bicho, como fez o Pinóquio. Os pedaços da concha se espalharam no tapete e, por um instante, ele teve medo da bronca que ia tomar da mãe. Bom, pelo menos a água ia limpar toda a sujeira.
     Tubarões ele tiraria de letra, o medo mesmo era das lulas gigantes —afinal uma delas quase puxou o Náutilus para o fundo do mar, e isso era coisa para se preocupar. Talvez fosse melhor chamar o avô. Ou não, não chamaria ninguém. Ele enfrentaria os monstros sozinho, já tinha idade para isso.
     A cordinha do calção de banho estava bem amarrada e ele tinha uma bóia para qualquer emergência. Se bem que o bom seria, na verdade, ter um escafandro, como os do filme das Vinte mil léguas submarinas. Aliás, o bom mesmo seria um submarino igual ao do capitão Nemo, um Náutilus II. O menino prendeu a respiração e esperou a água correr.
     Mas oceano nenhum jorrou da concha. Nem um marzinho, uma lagoa, um riacho, uma poça que seja. O que ficou naquela tarde foram só os estilhaços de uma concha e os pedaços de um sonho de menino espalhados no tapete.
     Só muitos anos mais tarde ele entenderia que não era preciso que os peixes pulassem daquela concha. Ali mesmo, sem sair do quarto, ele tinha viajado, no mínimo, umas cem mil léguas submarinas.

28.4.07

Duque

Naquela manhã, o Duque tentou uma, duas vezes e caiu sobre as patas, vencido. Foi só então que o velho mendigo notou que havia algo errado com o cachorro.
     Debaixo do pêlo preto, os velhos ossos e os músculos cansados já não agüentavam o peso do corpo. Mas, alheios a isso, os olhos ainda brilhavam: o Duque morria, e parecia não se ressentir da morte.
     Idoso, o mendigo não tinha uma das pernas. Fugira do asilo onde fora abandonado pela família que não o podia —ou não queria— sustentar e, numa noite fria, encontrara o cachorro. Na verdade, o velho homem é que fora encontrado por ele: Duque, um anjo negro de quatro patas.
     Fosse aonde fosse, era seguido pelo cão. Podia não ganhar nem uma moeda durante todo o dia, mas o Duque estava ali. Podia não ter comida nenhuma para oferecer, mas o cão continuava ali. Nunca o animal lhe pedira nada, a não ser a felicidade de estar ali, ao lado do dono. E ali sempre estava, orgulhoso.
     Na rua, as pessoas afastavam-se do pobre homem por ser sujo, mas não o Duque. Chamavam-no vagabundo, mas não o Duque. Enxotavam-no das portas das lojas, mas não o Duque. Julgavam, maltratavam, ignoravam, xingavam, mas não o Duque, nunca o Duque. Os outros viam-no mendigo, velho, aleijado, doente, miserável, imprestável, mas aos olhos do cachorro, ele era um rei.
     Depois de algum tempo, sol já alto, o homem tomou suas muletas e saiu para ver se conseguia algo. Ganhou de uma senhora alguns centavos que lhe compraram dois pães. Voltou ao beco e deu um ao Duque.
     Passaram a tarde ali, em silêncio. O Duque não tentou mais levantar-se. Os outros mendigos, que tinham saído pela manhã, não apareceram durante todo o dia, talvez por respeito à dor dos dois. E nenhuma das pessoas que passou pareceu notar o que acontecia. Sozinhos, o velho e seu cachorro.
     Certa vez, quando dois pit bulls, instigados por um cretino mimado e inconseqüente, atacaram o velho, o Duque lançou-se numa batalha feroz. Arreganhou os dentes, rosnou, mordeu, latiu, lutou pelo seu velho dono. Combateu heroicamente as feras até que os outros mendigos viessem ajudar e então tombou, exausto. Recuperou-se rápido das feridas, mas passou a uivar de dor nas noites frias desde então.
     À noite, os outros mendigos vieram tomar seus lugares no beco atrás da igreja. Um deles trouxe ao velho um cachorro quente que ganhara de algum barraqueiro. Não disse nada sobre o Duque, não sabia lidar com isso, somente deu-lhe um tapinha nas costas.
     O ancião tomou o sanduíche e o estendeu ao cachorro. Nada. Tirou a salsicha e a colocou diante do focinho que respirava com dificuldade. Mas o Duque não se interessou, nem cheirou. O mendigo comeu, pois a fome era grande, não tivera mais nada além do pãozinho na hora do almoço.
     Então certificou-se de que nenhum dos outros o estava olhando e deu um beijo no companheiro. Sentiu os olhos aquecerem-se com as lágrimas. Velou o sono do cão até o ponto em que foi vencido pelo cansaço.
     Quando acordou no dia seguinte, o Duque já não estava mais lá.

11.4.07

Quinze anos

Puxava uma carroça cheia de papelão, mas, no mais, era uma menina como qualquer outra. Talvez pensassem que por ser pobre ela poderia ser diferente, mas não era nem um pouco: ela queria as mesmas coisas que todas as outras meninas queriam.
     Tinha vontade de ser estrela de televisão, modelo, bailarina ou professora. Vontade de alisar o cabelo e comprar uma roupa daquelas de vitrine de loja. Queria acabar o segundo grau e ganhar um anel de presente de formatura. Poderia nem ser de ouro, mas tinha de ser dourado.
     Também, como qualquer menina, tinha vergonha dos meninos. Tinha um lá no bairro que sempre a olhava de longe. Num domingo ela o viu jogando bola com os outros garotos e achou que ele era o melhor jogador do mundo. Ficou ali, quietinha, torcendo para ele fazer um gol, um gol só para ela.
     E hoje, bem hoje, a menina fazia quinze anos. Desde o ano passado sonhava com uma festa: via-se dançando com um príncipe, imaginava as amigas segurando arranjos de flores e uma mesa cheia de bolo e refrigerante. Sorria toda vez que imaginava o pai de terno e sapato, achava a idéia engraçada.
     Já de noite, a cidade —e as latas de lixo— começou a ficar vazia: hora de voltar para casa. Ela sabia que as bancas estariam fechadas, mas passou em frente ao mercado de flores, só porque era bonito. E de longe viu alguma coisa numa lata de lixo, uma coisa branca. Surpresa!, era um buquê de margaridas. Um pouco murchas, mas, mesmo assim, eram as mais lindas flores que ela jamais ganhara. Aliás, as únicas flores que ela jamais ganhara.
     Passou pela praça e viu que a catedral já estava enfeitada para o Natal. Ficava tão linda, tão brilhante com aquelas luzes todas. Um pipoqueiro ouvia música no radinho de pilha. Era uma música bonita, como as que o avô dela ouvia quando vivo. A menina ficou ali, escutando, e, já que ia sobrar mesmo, ganhou do pipoqueiro um pacotinho: pipoca doce, com coco.
     Foi quando chegou na praça o menino do futebol, aquele que ficava olhando de longe. Ele baixou os olhos, tímido, sorriu e disse um “oi” envergonhado. Comentou do tanto de papel que tinha conseguido no mês e disse que, olha só, ele ficou sabendo que hoje era aniversário, juntou um dinheirinho e comprou um presente. Tirou do bolso um pacotinho de papel vermelho e entregou à menina. Teve a impressão de que as mãos dela tremiam.
     A menina sorriu ao ver, dentro do pacotinho, um anel dourado. Agradeceu um tanto envergonhada e já logo o colocou no dedo. Deu certinho. O anel não caberia em outra mão que não a dela. Ela sorriu e mais balbuciou que falou um “obrigada”. O menino chutou umas pedrinhas do chão e comentou algo sobre a música, que ele achara tão bonita.
     E, enquanto os sinos da catedral soavam as horas, os dois dançaram ao som do radinho sob as luzes brilhantes. Margaridas, pipoca doce, música, sinos, um anel e um príncipe, o melhor jogador de futebol do mundo. E a menina soube, lá no fundo, que Deus existia e que Ele havia lhe dado uma festa de quinze anos.

3.4.07

Ponto de ônibus

Segunda, 7:32h
     — Bom dia.
     — Bom dia.
     — ...
     — Sabe se tem algum para vir?
     — Olha, acho que vem um agora às 7:34.
     — É que eu costumo pegar o de 7:25. Atrasei hoje.
     — ...
     — Olha ele aí.

* * *

Terça, 7:33h
     — Bom dia.
     — Bom dia. Atrasei de novo. Depender de ônibus é fogo.
     — Pois é. Esquentou hoje, não é?
     — Pois é.
     — ...
     — Aí vem. Até que vazio hoje.

* * *

Quarta, 7:24h
     — Oi, tudo bem?
     — Tudo. Mais cedo hoje?
     — Pois é.
     — ...
     — ...
     — Olha ele aí. Lotado.
     — Ah, não, vou pegar o das 34. Senão eu chego muito antes.

* * *

Quinta, 7:33h
     — Oi.
     — Oi. Se atrasou de novo?
     — Pois é.
     — Escuta, sobre ontem, por quê você veio antes?
     — Ah, olha o ônibus. Deixa eu fazer sinal.

* * *

Sexta, 7:26h
     — Oi.
     — Acabou de perder o 7:25
     — Pois é. Tudo bem, pego o de 34.
     — Escuta...
     — ...
     — Que tal a gente pegar o das 45 hoje e conversar um pouco mais?

29.3.07

Desencontros

Ela vinha descendo a rua. Avoada, pensava na vida, cabeça de mulher. Bonita, feminina, atraente, essas coisas. Inteligente, adorava arte e sabia tudo sobre café. Ia a confeitarias e reproduzia as receitas em casa no fim de semana. Gostava da cumplicidade, da troca de olhares, dos segredinhos em comum, de dançar coladinho. Fazia yoga e viajava quando podia.
     Ele vinha subindo a rua. Olhava, mas não via nada, cabeça de homem. Boa pinta, bem vestido, perfume, essas coisas. Culto, gostava de literatura e entendia de vinhos. Apreciava boa comida, sabia cozinhar alguma coisa. Gostava da provocação, do flerte, do beijo no cantinho da boca, de oferecer rosas, deixar bilhetinhos. Lutava boxe e acampava quando podia.
     Ela chegou na esquina. Perguntava-se onde arranjaria um homem bonito, mas não assim comum. Um cara que se interessasse pela sua vida, que visitasse sua família aos fins de semana sem fazer cara feia. Que a levasse num lugarzinho charmoso e falasse sobre música e poesia, mas também roubasse um beijo, de sopetão. Refinado, sensível, mas másculo como homens devem ser.
     Ele chegou na esquina. Queria saber se um dia conseguiria uma mulher bonita, mas inteligente, de personalidade. Uma assim que gostasse das suas coisas, que lhe acompanhasse num passeio no parque com o cachorro. Que lhe provocasse e deixasse as coisas no ar, mas também sorrisse com doçura quando ele a olhasse nos olhos. Firme, decidida, mas feminina como mulheres devem ser.
     Ela parou para esperar os carros. Gostava do último namorado, mas acabou desiludida. As amigas ajudaram, chorou até esquecer. Ia sozinha ao cinema e sentia a falta de um ombro onde se acomodar durante o filme. Imaginava quando conheceria o homem que a faria pensar em filhos.
     Ele parou para esperar os carros. Era apaixonado pela última namorada, mas ela o acabou deixando. Consolou-se sozinho, esqueceu. Saía com os colegas depois do trabalho e invejava de longe a felicidade dos casais. Pensava se um dia voltaria a fazer planos ao lado de uma mulher.
     Os carros pararam e ela atravessou. Olhou, preocupada, para a esquerda, para certificar-se que os carros não avançariam. Não viu o homem atrapalhado que passou ao seu lado.
     Os carros pararam e ele atravessou. O celular tocou e ele atrapalhou-se procurando o aparelho no bolso. Não reparou na mulher preocupada que passou bem ao seu lado.
     Ela continua duvidando que exista um homem que valha a pena. Ele continua não acreditando em alma gêmea. E vão andando por aí.

17.3.07

Numa noite de agosto

Era uma noite fria de agosto. Já era tarde, e o último ônibus saía da praça. Não eram muitos passageiros, o que deixava tudo ainda mais silencioso. Cada um com sua vida, cada um com seus interesses, cada um com seus olhos embaçados de sono e cansaço. Havia lá dentro um único par de olhos que brilhava. E, não por coincidência, eram da mesma moça os únicos lábios que sorriam no ônibus.
     Assim como os outros passageiros, ela trabalhara o dia inteiro. Sentia-se cansada também. O dia fora de movimento no café, e ela não sabia a conta de quantos clientes servira. Tinha tudo para ser mais um par de olhos sem brilho, mas sentia-se inexplicavelmente feliz. Talvez sorrisse simplesmente por não ver motivos para chorar. Uma lâmpada fluorescente em cima do cobrador piscou uma, duas vezes, relutou e apagou.
     Não era o melhor emprego do mundo, estava longe de ter o melhor salário do mundo e, pensando bem, não tinha lá a melhor clientela do mundo. Mas ela gostava, e não sabia atender alguém senão com um sorriso no rosto e suas melhores maneiras. Uma garoa fina começou a borrifar gotas que brilhavam com as luzes da cidade na janela do ônibus.
     A família vivia longe, ela viera para a cidade depois de perder o pai. Morava de aluguel, sozinha desde que seu gato sumira há algumas semanas. Não quis outro novo para não sofrer mais e, inocente que era, nem cogitara desconfiar da vizinha, que na verdade o houvera envenenado. Passava muito pouco tempo em casa, mas mantinha tudo impecável. No fim de semana passado, comprara um tecido de flores para costurar umas cortininhas para a janela da cozinha.
     Amanhã seria dia de folga. Na hora do almoço, ela fora até o cinema para ver o horário dos filmes e aproveitara para já comprar a entrada. Era um filme novo, francês, e ela adorava filmes franceses desses de amor. Ia sempre sozinha ao cinema, mas não se ressentia disso. A campainha do ônibus soou quando ela levantou e apertou o botão.
     O motorista parou, ela desceu e tomou o caminho, sob a luz fraca e avermelhada dos postes. A passos apressados, deixou para trás um outro passageiro que também descera. Ninguém a esperava em casa, mas ela não se sentia sozinha. Queria colocar uma roupa confortável e quente, tomar uma sopa e assistir um filme na tevê. Debaixo da garoa fina que molhava de leve o casaco, ela sorria.
     Quando chegou na esquina, foi abordada por alguém encapuzado. Já entregava a bolsa quando ouviu um grito. Era algum vizinho que havia visto a cena e chamava por ajuda. O ladrão se assustou, e foi só o tempo de ouvir um estampido e sentir algo quente entre os dedos. Ela não chegou a ver o sangue que escorreu no chão. Era uma noite fria de agosto, e o mundo pareceu mais escuro quando mais um sorriso se apagou.

1.3.07

A casinha branca

O sol, que acabara de se levantar, iluminava a casinha de madeira. Paredes, portas, janelas, grades, tudo branco. O nascer do sol dava à casa um brilho delicado, ao contrário dos prédios de concreto e vidro que a ladeavam. Uma casinha frágil no meio dos prédios brutos.
     E, enquanto a cidade acordava, a velhinha regava seu jardim, com a serenidade que os anos lhe deram. Embora os prédios não lhes concedessem mais que algumas poucas horas de sol, as margaridas do jardim continuavam floridas como há quase cinqüenta anos. Ainda não era época de rosas.
     Como fazia há cinqüenta anos, ela sorriu quando o velhinho empurrou o portão e entrou com o pacote de pão debaixo do braço. Deixou o regador no canteiro e os dois entraram, ela primeiro, ele depois.
     A mesa estava posta como sempre desde que ficaram sozinhos: duas colherinhas e uma faca; duas xícaras e um açucareiro de porcelana branca; manteiga e um bolo coberto por um pano de prato bordado. Dedicada, ela serviu o café, colocou o bule de volta no fogão e sentou-se para comer o pedaço de pão que ele já lhe havia cortado.
     Os dois conversaram sobre os filhos que não apareciam há algum tempo e os netos de quem tinham poucas notícias. Falaram sobre o passado, mas não sabiam do futuro. Comeram o bolo de laranja em silêncio. Terminaram o café e ela tirou a mesa enquanto ele fechava as janelas brancas. Tinham de sair.
     O velhinho abriu a porta para que a velhinha saísse e deu-lhe a mão para que descesse os três degraus da varanda. Embora o pulso não tivesse mais a antiga força, a gentileza era a mesma de cinqüenta anos atrás. Fechou o portão e os dois saíram na direção de todos os dias. Mas hoje não iriam passear.
     Moravam ali desde que se casaram, quando ele anunciou que havia comprado um lote num setor novo da cidade. Não havia ainda todas aquelas casas, muito menos as lojas e os prédios. Construíram juntos a casa, que sempre foi branca, e plantaram juntos o jardim, que sempre foi florido. Os filhos cresceram e hoje moram em prédios cinzentos sem flores e sem varandas. E aos netos nunca interessou brincar no balanço ou procurar ninhos nas pitangueiras.
     Andando de mãos dadas, reconheceram no caminho os locais onde um dia ficavam a sapataria, a mercearia, a quitanda e a farmácia. Lembraram da casa da árvore aonde iam, às vezes procurar as crianças, que sumiam o dia inteiro. Hoje tudo lojas, prédios e escritórios. Da rua tranqüila também nada sobrava, exceto por uns pedaços do calçamento e alguns ipês um tanto descuidados. Nada também dos velhos vizinhos, renderam-se todos. Os dois atravessaram a avenida o mais rápido que puderam, mas o sinal ficou verde antes que chegassem ao outro lado. O tempo já não era suficiente. Os motoristas buzinaram.
     Entraram num escritório. Um homem gordo, apressado, estendeu-lhes duas cadeiras, mas foi o velhinho quem ajudou a esposa a se sentar. Quase não conversaram: já há alguns meses a proposta fora feita e o homem sabia que, hora ou outra, eles viriam. Todos um dia vêm. Disse algumas palavras e tirou uns papéis de uma pasta, uma pasta entre tantas. Uma casinha entre tantas. O velhinho tomou a caneta e, mãos trêmulas um tanto pela idade, um tanto pela emoção, olhou para sua velhinha por uns instantes. Encontrou ali, no silêncio do mesmo olhar doce de cinqüenta anos atrás, a força de que precisava. Sentiu os olhos embaçarem, suspirou e assinou o papel. Todas as vias.
     E os dois saíram de mãos dadas, no ritmo que as pernas permitiam e que a tristeza impunha, em direção à casinha toda branca onde moraram durante toda uma vida. Mas logo não morariam mais, e amanhã o velhinho sairá pela última vez para buscar pão enquanto a velhinha rega pela última vez seu jardim de margaridas floridas. E as rosas não chegarão a florescer.