16 abril, 2006

O meu top ten das cervejas brasileiras

As cervejas, já o disse, são avaliadas em circunstâncias muito diferentes e há muitos factores importantes a alterar o nosso juízo de valor: a temperatura, a companhia, a comida que acompanham, a hora do dia (há cervejas para horas diferentes) ou o tempo de armazenagem. É esta, para já, a minha lista das dez melhores cervejas brasileiras.
1. Eisenbahn Pilsen
2. Eisenbahn Pale Ale
3. Baden Baden Red Ale
4. Eisenbahn Dunkel
5. Devassa Tropical Ale
6. Schmitt Ale
7. Baden Baden Premium Bock
8. Devassa Tropical Lager
9. Schmitt La Brunette
10. Bohemia Weiss

La Brunette || Morena e essas coisas

Os fabricantes da La Brunette, que também são responsáveis por uma ale nada negligenciável (a Schmitt Ale), advertem que o lúpulo utilizado na preparação desta cerveja é importado para o Brasil directamente da Nova Zelândia – esse é um pormenor na sua construção muito cuidadosa. Eu situá-la-ia na zona das dunkel mas a sua espuma volumosa e densa lembra-me quase uma stout. Na verdade, vista à luz, ela aproxima-se das grandes cervejas escuras alemãs ou vienenses (talvez um pouco mais), com reverberações de chocolate quando o brilho do sol incide sobre ela directamente. Chamar a uma cerveja assim La Brunette é um risco substancial que se corre – estamos no Brasil e la brunette deve ser traduzido por morena, e morena deve ser traduzido com o acréscimo colaborante de qualquer outra palavra que designe a sensualidade, a concupiscência, essas coisas. Uma cerveja assim deve ser assinalada: o sabor é acidentalmente adocicado mas, mal se afasta o copo, a boca dá-se conta de ter sido invadida por aquele tom amargo que faz as delícias do bebedor, que gosta de uma espuma prolongada e, quando está para aí virado, de uma boa densidade. Há uma certa harmonia entre a carbonatação moderada e a sensação de suavidade proporcionada pelos açúcares da fermentação e pelo amargor do lúpulo neo-zelandês. Como o Rio Grande do Sul tem Outonos temperados e tépidos, acho uma pena não ser mais fácil encontrá-la nas lojas, uma vez que é a cerveja ideal para sobremesas.

+MARCA: La Brunette
Origem: Brasil
Álcool: 4,5%
Avaliação: ***

Schmitt Ale || Um brilho natural

Já escrevi, a propósito de outras cervejas construídas a sul do equador, que é um engano pensar que nos “países tropicais” não se encontram cervejas de “grande densidade” ou, pelo menos, distintas do paladar e da textura habitual das lager de cor clara. A Schmitt, originária de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, Brasil, é uma delas – o facto de a região ter recebido uma grande percentagem de imigrantes provenientes do norte e do centro da Europa tem a ver com as tradições das cervejarias artesanais locais, que mantêm padrões de qualidade muito aceitáveis. Esta, existe em três variedades: a Ale, a La Brunette e a Barley Wine (que não provei), e nenhuma delas é recusável sob nenhum ponto de vista. A Schmitt Ale tem uma cor ambarina, alaranjada-escura, com fermentação na própria garrafa (sendo natural que haja depósito em algumas), uma explosão de gás muito aceitável e acolhedora. O aroma é equilibrado, sem marcas de levedura, com um leve apontamento de fruta (limão ou lima), e o sabor é prolongado mas consistente. E uma surpresa: a sua espuma não se dilui imediatamente; dada o seu processo de fermentação, não é crime que se volteie o copo enquanto repousa – logo se forma um levíssimo creme que lhe dá vida e bom aspecto. Aconselho vivamente que se experimente, depois de mergulhar algumas garrafas num balde de gelo, numa tarde de calor.

+MARCA: Schmitt Ale
Origem: Brasil

Álcool: 5%

Avaliação: ***

Westvleteren 12 (St. Sixtus) || A tentação de Cister

Não, não está à venda nos nossos supermercados. Mas a Trappiste Westvleteren, da Abadia de St. Sixte, é uma referência a nunca evitar. Eu bebi-a uma só vez – não posso dizer que a tenha provado com o grau de concentração exigido, mas quando julgava que, como no poema de Arquíloco, viria “um raio a deflagrar no meu espírito”, aconteceu-me apenas estar diante do modelo ideal de trappiste. Falo da Trappiste Westvleteren 12 com aquela magnífica percentagem de álcool de 10,2%, e não provei nem a Westvleteren Blonde (5,8 %) nem a Trappiste Westvleteren 8 (de 8 %). Para os que se deslocarem à Abadia de Saint-Sixte, em Westvleteren, não muito longe da fronteira francesa, esclareço que a cerveja só é vendida aí das 10 ao meio-dia e das 3 às 5 da tarde, e nunca às sextas, domingos e feriados. Portanto, o melhor é comprá-la em França ou em outras cidades belgas – comprá-la e procurá-la. Mas vale a pena, evidentemente. Os bons monges cistercienses de St. Sixte, que datam do início do século XIX a fundação da sua comunidade (numa região povoada de eremitérios, mosteiros e abadias desde os anos 800 DC), são uma das garantias da continuidade da cerveja trapista que hoje está confinada a seis marcas essenciais: Achel, Chimay, Orval, Rochefort, Westmalle e, claro, Westvleteren. A Westvleteren 12 (que tem um período de maturação superior) distingue-se pela sua cor fantástica, um avermelhado bem escuro (visto à luz), denso, mostrando na boca tons de chocolate, caramelo ou licor, mas com um final amargo excelente e duradouro. Abençoados cristais de açúcar que garantem esse álcool santificado e permitido pela ordem de Cister.

+MARCA: Trappiste Westvleteren 12 (St. Sixtus)
Origem: Bélgica
Álcool: 10,2%
Avaliação: *****

Pilsener Urquell || A verdadeira

Todos conhecemos a pilsener. É a cerveja mais consumida no mundo e aquela que vai melhor, na verdade, com o espírito contemporâneo da cerveja bebida em todas as ocasiões: da Heineken à Lowënbrau, da nossa Cristal à Budweiser ou à Krombacher ou à Warsteiner (que definem o padrão “tipo pilsener”), a pilsener apresenta algumas características comuns: alto teor de lúpulo, o que lhe confere um amargor substancial, uma cor clara, uma espuma duradoura e superior, um grau de fermentação mais elevado, um sabor seco e uma boa presença de gás. A Urquell foi a primeira pilsener, na verdade – não por ter esse aspecto originalmente, mas por ter sido fabricada (a partir de 1842) na cidade de Pilsen, na actual República Checa (e que então era Áustria). O seu criador, Josef Groll, obteve uma cerveja muito mais clara do que as habituais, e que surpreendeu os consumidores da época (na verdade, as cervejas tornaram-se mais claras por um efeito de moda, quando passaram a ser servidas em copo de vidro). Embora a Pilsener Urquell de hoje tenha pouco a ver com a original e com o seu processo de filtragem, é ela a original, fabricada na República Checa pela Plzensky Prazdroj, parte da multinacional SABMiller, e onde também se produzem a Gambrinus, a Kozel ou a Radegast. A Urquell não é, hoje, o nosso padrão para avaliação da pilsener, mas o defeito pode bem ser nosso, mais habituados que estamos à presença de lagers claras e leves: a Urquell tem um sabor muito intenso, um tom amanteigado e oxidado, um final de boca amargo com memórias florais. Eu acho-a magnífica, sempre deliciosa e bebê-la-ia durante todo o Verão.

+ MARCA: Pilsener Urquell
Origem: República Checa
Álcool: 4,4%
Avaliação: *****

15 abril, 2006

Eisenbahn Dunkel || Distinção

Não tenho grande explicação para isso, uma vez que não visitei a fábrica da Eisenbahn em Blumenau, mas estas cervejas de Santa Catarina podem orgulhar-se da sua boa qualidade e da clareza com que o bebedor as reconhece num lugar logo acima da média. Isto é ainda mais surpreendente para quem acha que todas as cervejas brasileiras são claras, aparentemente leves e admitindo milho e arroz na sua fermentação. No caso da Eisenbahn Dunkel estamos diante de uma cerveja de tons ruivos escuros à luz do dia, castanhos-escuros no copo, homogénea e equilibrada – mas com um sabor intenso de noz e caramelo, um nadinha inesperado de caju no final, um pouco de baunilha na boca à mistura com café. Quanto à espuma, rescende pouco a caramelo (o que é uma surpresa nas cervejas escuras em geral) e a cor não o desmente, embora desapareça frequentemente, à boa maneira das dunkel originais, nas quais o bebedor não procurava espuma mas intensidade, o que não lhe falta. Como nota de prova suplementar, há indícios de maltes bem tostados, e, volteando a cerveja no copo as suas ondas de espuma profunda dão a impressão de uma vida interior agitada, complexa e agradável de beber. Pessoalmente, tenho-a como uma das boas cervejas do Brasil, de construção muito cuidada e com fiéis que acabam por tornar-se fanáticos. A Eisenbahn, que também produz uma Pale Ale e uma Pilsener fantásticas, está de parabéns e merece distinção.

+MARCA: Eisenbahn Dunkel
Origem: Brasil
Álcool: 4,5%
Avaliação: ***

Devassa Tropical Ale || Malandragem

Surpresa absoluta para mim, carioca algumas vezes por ano. Provei a Devassa Lager, imagine, numa feira do livro e achei graça, como toda a gente, ao slogan escolhido: “Um tesão de cerveja.” Com um objectivo destes, qual a cerveja que passaria despercebida? Nenhuma. A Lager era boa, muito boa, mas só uns dias depois provei a sua Ale, antecedida do aviso: Tropical. Seja, pois, a Tropical Ale: ruivinha, dançarina, maneirinha mas com um corpo que providencia fantasias gloriosas e indizíveis. Carioca de gema, a Devassa Tropical Ale é uma prova de que se pode fazer cerveja ruiva sem ter de evocar, invocar ou recuar até às cervejas de abadia – uma mania europeia e, agora, portuguesa. A Devassa Tropical Ale é genuinamente sensual, cremosa, ligeiramente amanteigada, escorregadia, com uma luminosidade bem conseguida nos seus ares translúcidos, derrapantes. Encorpada, sem dúvida, e com ligeiros tons de açúcar que contrastam com elementos florais, à mistura com maçã verde. A espuma? Decentíssima, esperta, fescenina, levantando voo de cada vez que o copo faz aquela viagem saborosa separando-se da boca e sendo devolvida à mesa do bar. O aroma, a princípio tem marcas de caramelo, que depois se esvai e desaparece para valorizar os lúpulos que lhe dão amargor suficiente. Lembro-me das esplanadas da zona sul do Rio nestas ocasiões – a Devassa é uma cerveja chique, digam o que disserem, sensual; tem aquela marquinha de biquini e de areia de Ipanema em entardeceres do Posto 9, quando se caminha pela Rua Farme de Amoedo em direcção às praças do interior, diante dos morros. Para cerveja carioca é excelente.

+MARCA: Devassa Tropical Ale
Origem: Brasil
Álcool: 4,8%
Avaliação: ***

Ringnes || Ai de mim, norueguês

Ai de mim!, com saudades de Bergen. Fogo fátuo, de qualquer modo: não tenho feitio nórdico, embora me desfaça em indicações de cada vez que um amigo vai à Noruega, recomendando-lhe passeios por aqui e por ali, que percorra o caminho dos fiordes, que se perca nas ilhas Lofoten e emudeça diante do mar de Stamsund, que percorra os jardins de Oslo e veja o entardecer de Svolvaer, que, enfim, tenha o seu minuto de dourada contemplação em Honningsväg, lá no Cabo Norte. E, claro, que veja Bergen, que tome um pouco da música de Grieg (o Peer Gynt), naquela montanha de onde o velho porto parece uma baía mediterrânica, e se recorde que o espantoso génio de Ibsen percorreu aqueles trilhos enquanto escrevia, ou pensava em escrever, O Inimigo do Povo. Deixemo-nos de literatura, passemos agora à cerveja. Ela chama-se Ringnes e foi trazida por mão de amigo, depois de passar em Bergen. É uma cerveja clássica norueguesa que nunca atravessou as fronteiras da pátria de Hamsun: uma lager de reflexos dourados, excelente para os pescadores que enfrentavam os rigores do Inverno, com um tom de fruto que lhe cai bem em final de boca. A sua palidez não é total, como se fosse uma cerveja ligeiramente tostada pelo sol, de cereais adocicados e temperados. Não sendo uma revelação, é uma memória; rescende também – ai de mim! – a refeições tépidas e ao entardecer dos mares do norte.

+ MARCA: Ringnes
Origem: Noruega

Álcool: 4,5%

Avaliação: **

Sagres Bohemia 1835 || Melhorada

Para festejar o início da produção na Cervejaria da Trindade, apareceu a Sagres Bohemia 1835, uma variante mínima da Sagres Bohemia anterior. Na verdade, trata-se de uma correcção da nova marca, com um ligeiro toque de fruto no seu carácter – mais aveludada, menos amarga no seu final de boca, e mais intensa no aroma. É uma homenagem ao interessante mito dos bons frades que amavam a cerveja e a fabricavam para prazer dos homens e glória do Divino. Não me parece mal. Se fizerem a experiência, num copo adequado, a Bohemia 1835 produz uma espuma mais densa do que Bohemia normal, o que leva a pensar que é uma pena tratar-se apenas de uma série limitada. Há uns tons (mas isso depende da imaginação do provador) de cereja e frutos maduros, muito mais indicados para uma cerveja deste género – e que a afasta definitivamente do gosto popular (o que é bom), dando-lhe notas de requinte e de exotismo, conferindo-lhe densidade e tornando-a mais apetitosa. Por instantes, num final de Primavera, pode mesmo parecer uma cerveja de bar, bebida ao balcão em copo de pint (a meu ver mais adequado, para esta Bohemia 1835, do que o formato belga) uma vez que não precisa tanto de respirar nem de correr o risco de oxidar. Pelo contrário: é uma cerveja que deve beber-se em goles cheios, fustigando as papilas e mostrando-lhes que é possível produzir uma ruiva aceitável, muito aceitável, com as cores nacionais. O bebedor não sabe como se consegue isso, mas dá-se conta de que há uma melhoria. E isso é bastante. E já é muito.

+ MARCA:
Sagres Bohemia 1835
Origem: Portugal
Álcool: 5%

Avaliação: ***

Sagres Chopp || Não é chopp quem quer

A cerveja brasileira tem os seus admiradores pelo mundo fora – e os portugueses aceitam, de bom grado e com santa ingenuidade, que se trata, em geral, de uma cerveja superlativa. Na verdade, há casos. Mas convém relembrar que uma cerveja é o modo como ela é construída e a circunstância em que é bebida. Portanto, num cenário idílico em que as poeiras dos trópicos transformam o nosso carácter e nos conferem uma certa dose de perturbação dos sentidos, até uma Antárctica pode parecer uma boa cerveja. Mas não é. Ora, ao contrário do que se pensa, é cada vez mais difícil fabricar más cervejas. Depois de passar dois anos a escrever sobre o assunto, semanalmente, raramente encontrei más cervejas – em todo o mundo. A Sagres, que lançou uma razoável cerveja ruiva há um ano (seguida pela Super Bock, que lançou a Abadia), acaba de disparar para o mercado com a Sagres Chopp, tentando vender a imagem de uma «cerveja brasileira», leve e suave. Não conseguiu. Não tem espessura de «chopp» (que só se obtém verdadeiramente, em todo o seu esplendor, em barril), não tem a sua gloriosa espuma, não tem o seu sabor de coração frio. O rótulo é feio e desagradável, de design cavernícola – e a “carica” nem a marca leva impressa. Aroma, quase nenhum; sabor, amargo demais mas sem personalidade. Experimentei seis garrafas em copos diferentes e foi sempre desilusão. Não tem sabor, não é – ao contrário do que a sua publicidade afirma – leve e possui uma densidade que até na cor se manifesta. Um falhanço.

+MARCA: Sagres Chopp
Origem: Portugal
Álcool: 5%
Avaliação: *

Rochefort Trappistes 10 || Trapistas, um regresso

De entre as cervejas trapistas que ainda se encontram disponíveis para bebedores (Achel, Chimay, Orval, Westmalle, Westvleteren…), a tradição beneditina deixou-nos uma pequena glória: a Rochefort. Os seus 11,3% de álcool provêm de uma fermentação em quatro sereníssimas fases e de um conjunto de factores praticamente esotéricos. Por alguma razão tudo se perde no interior da abadia (aliás, da Brasserie Rochefort, diante dos telhados e dos musgos da abadia), que produz mais duas cervejas: uma dubbel e uma strong ale, conhecidas, respectivamente, por Rochefort Trappistes 6 (de 7,5% de álcool), e Rochefort Trappistes 8 (de 9,3%). Gulosos e ambiciosos, coube-nos a 10, soma incomparável de cor (escura, profunda, negra como os túneis onde ela se guardava, fermentando, enquanto os monges oravam, suponho), aroma (tons de ervas boas para licor, um nadinha de chocolate, um tanto de frutos maduros, entre a ameixa e a maçã madura) e sabor sofisticado (além da madeira de carvalho, há uma nota profundíssima de baunilha ou caramelo volteando, como a poeira nos bosques). Assim se perde o olfacto, assim degeneram as papilas. Cuidado ao bebê-la: não tenha em atenção apenas a percentagem de álcool escondida sob o modesto e austero rótulo que distingue a garrafinha; há mais. Sugiro que se beba apenas em companhia de um queijo, salgado e fedorento, cheio de sabor, e de um pão escuro, tradicional. A Rochefort Trappistes 10 é, por outro lado, uma afronta aos radicais da saúde. Não porque ela faça mal; longe disso. Mas porque a sua existência nos assegura que a História continua e que há muitas coisas saborosas debaixo do céu – e não podemos perdê-las. Há outra coisa importante a dizer sobre a Rochefort: só deve beber-se depois de se considerar que a cerveja pode ser uma obra de arte. Uma gota desta cerveja é, à sua medida, um brinco de pérola num quadro raro e difícil de apreciar.

+MARCA: Rochefort Trappistes 10
Origem: Bélgica

Álcool: 11,3%

Avaliação: *****

Samuel Smith Pale Ale || Final de tarde

A Samuel Smith produz uma stout aceitável, uma oatmeal stout muito boa e uma nut brown ale que nunca provei. A minha tentação vai, no entanto, para a pale ale. Não por ser muito melhor do que qualquer uma das outras – os seus padrões de qualidade são altos e exigentes. Mas porque me aconteceu: ao fim da tarde, quando a cerveja apetece mais, uma pale ale, uma lager de aromas vivos vêm a calhar (não é por acaso que me tornei, durante muito tempo, adepto das ruivas – entre a Murphy’s e a Kilkenny, ambas na sua versão de pressão). No caso da Samuel Smith Brewery Pale Ale há outros apelos substanciais, entre os quais a cor, o sabor e o carácter excessivo do seu malte. A cor, para mim, é meio caminho andado – e ela aparece com reflexos brilhantes, uma espuma branca que me abrem o apetite: um sabor ligeiro e afrutado, uma composição complexa e com final amargo, contrastando com a uma «abertura» doce e um aspecto encorpado, bem equilibrado. De entre as cervejas engarrafadas disponíveis nos pubs ingleses (a Samuel Smith é do Yorkshire), esta parece-me superior. Há quem se habitue a cervejas claras e não saia do redondel; sinceramente, vale a pena o esforço de provar este exemplar. Os ingleses produziram as melhores bitters, porters e ales do mundo e custa-me ver que a ditadura das lagers de gosto maioritário se vai apropriando dos balcões dos bares. Tente-se.

MARCA: Samuel Smith Pale Ale
Origem: Inglaterra
Álcool: 5%
Avaliação: ***

Sagres Bohemia || Vinde a mim, boémias

Regresso à pátria depois de uma viagem pelo sul do mundo, e encontro-a cheia de novidades; não me refiro ao futebol, à política ou à meteorologia. Falo da cerveja. Tinham-me já escapado a viseense Tagus Magna, uma dunkel que não me arrependo de gabar, e a madeirense Coral Tónica, uma aproximação ligeira à dunkel. Mas eu não queria que me fugisse a Bohemia, a nova experiência da Sagres. O leitor já sabe que essas cervejas avermelhadas me caem no goto. Aliás, caem bem sobretudo no estômago (já aqui mencionei a Murphy’s Red), são ligeiramente digestivas, afrutadas e, quando servidas de acordo com as regras, a sua espuma flutua como os pássaros num poema de Yeats. A imagem é exagerada, mas é para que o leitor compreenda. É preciso dizer, antes de mais, que não se deve beber uma red do mesmo modo como se bebe uma lager simples. Há horas para tudo. Com certeza, a Bohemia não é a cerveja indicada para refeições substanciais, pois o seu açúcar pode confundir-nos o paladar – o aroma é intenso, solta-se em vagas que nos transportam até outras latitudes. Deve beber-se com concentração e desprendimento. A Bohemia cumpre as indicações (faltando-lhe aquele tom de manteiga que a fecharia mais um pouco) e seria uma pena que passasse despercebida; devemos felicitá-la pela cor e pelo aroma, que tem um final muito apreciável, que evoca maçã e frutos em maturação. Ao servi-la, atenção!, provoque-lhe uma espuma substancial. E já sabeis, leitores, qual é a minha divisa nessas circunstâncias: «Vinde a mim, ruivas!» Já é obsessão.

+MARCA: Sagres Bohemia
Origem: Portugal
Álcool: 5,6%
Avaliação: **

Sapporo || Banzai!

Chiquíssimo, ir «jantar japonês». Eu vou de vez em quando – e acabo de descobrir que a minha filha de seis anos gosta de sashimi; os irmãos, mais velhos, ensinar-lhe-ão a comer com pauzinhos. Seja como for, como não me converti ao sakê, nem frio nem quente, costumo acompanhar as minhas japonesices com cerveja – a Sapporo é uma das duas que costumo pedir. Para os leitores mais ortodoxos, informo que a Sapporo existe, em pequenas quantidades, nos melhores supermercados portugueses (digamos que dois ou três, para não fazermos do nosso país aquilo que não é). Confesso que para acompanhar aqueles desenhos, verdadeiras iluminuras traçadas no prato com o rigor de um poeta das montanhas, é exigida uma bebida delicada e «cheia de circunstância». A Sapporo não é a ideal, contrariamente ao que se possa pensar; o seu primeiro trago é bastante amargo, compensado por um final cheio de aromas e um rasto de citrinos. Líchias, diz alguém. Não: cítrico mesmo, um tom de limão que vem do fundo do copo. As cervejas fazem-se de compensações, aliás. Há algumas que prolongam o seu sabor na boca para fazer esquecer a fragilidade da sua espuma; outras cujo coração frio, gelado, parece querer fazer esquecer o seu défice de sabor. A perfeição é uma meta longínqua em matéria de cervejas. Ao longo das minhas peregrinações cervejófilas encontrei algumas das que posso elogiar sem reticências, nomear sem polémica, distinguir nas minhas recordações. A Sapporo é, nessa tabela, uma cerveja ambivalente. Recomendo que se beba, evidentemente, e que se saboreie. Não é leve como a digestão de um peixe suave ou de uma fruta fresca; mas não é pesada ou densa como uma centro-europeia danada e cheia de tiques e misturas. Um dia destes, depois de um «jantar japonês» (com excesso de tempura, confesso), informei o meu estômago de que ambos (eu e ele) necessitávamos de uma Bush, aquela impressionante belga cheia de aromas. Um dos melhores sítios portugueses que eu conheço para beber a Bush é no bar Bonaparte, na Foz do Porto. Lá fomos, os dois, atraiçoando a Sapporo.

+MARCA: Sapporo
Origem: Japão
Álcool: 5,8%
Avaliação: **

Sierra Nevada Pale Ale || Beach Boys

Na Califórnia, dizem-me os meus amigos, há actualmente bons vinhos. A informação não é reservada. Quanto às cervejas, grande parte delas tem gosto próprio (levíssimas ou a entrar no domínio das lager de sabor mais acentuado mas sem perder a leveza do céu, como parece ser o de San Francisco). A Sierra Nevada é uma cervejeira dos anos oitenta e o seu catálogo é um clássico hoje em dia. Numa prova recente comprovou-se. Além da Pale Ale, que é a jóia da coroa, sem dúvida, a Sierra Nevada produz ainda as chamadas «cervejas de estação» ou «sazonais»: esses exemplos são a Summerfest, declaradamente pilsener, para gostos de Verão; a Bigfoot Ale, no seu estilo de barleywine (rosada, incandescente, com 12,5% de álcool!); ou a Celebration Ale (ligeiramente mais suave, a 6,8% de álcool), boa para Inverno, e que deixa um rasto inesquecível. No caso das «cervejas correntes», a Sierra Nevada Stout deixa muito, muito a desejar, mas a Pale Ale merece encómios. Por um motivo central: é muito boa. Digo: saborosa e fresca, como se pede a uma cerveja californiana, se tivermos alguma ideia do que seja a Califórnia que não fica nos postais ilustrados nem nos filmes sobre bimbos. Ora, esta cerveja não é para bimbos: rainha das pequenas cervejas, pode ser fabricada desta maneira clássica (respeitando uma «lei da pureza» que não admite viagens longas em camiões…) e sem rococós, de rótulo lindíssimo, cor ligeiramente alaranjada (aliás, tem um final com alguma fruta, o que é uma pitadinha de graça), também não exige muita disponibilidade nem afectação. Para quem viaja para o EUA, saiba o essencial: vende-se em caixinhas de seis ou em embalagens de doze. Mas isso não chega para manter o hábito, como se sabe. Infelizmente.

+MARCA: Sierra Nevada Pale Ale
Origem: EUA

Álcool: 5,6%

Avaliação: ****

Skol Beats || Redondo, rodopiando

A Skol tem algumas raízes portuguesas – foi mão portuguesa que a criou no Brasil. Desde a década de setenta que a Skol é, além do mais, uma marca de referência – as suas campanhas publicitárias ajudam. Há uns anos, a Skol lançou a ideia de que é a única cerveja que desce redondo; as imagens do anúncio mostravam as outras cervejas descendo como um cubo pela garganta dos bebedores; só a Skol se apresentava como uma bebida redondinha, baixando com facilidade até ao estômago. Há uns Verões, há uns anos, a Ambev (o fabricante brasileiro) lançou a Skol Beats, uma cerveja «para público jovem». Eu desconfiei: as coisas «para público jovem» são todas hip-hop e de baixa qualidade ou, pelo menos, de qualidade adulterada pelo «gosto jovem» que é, geralmente, fácil e superficial. O lema da campanha era «a cerveja que desce redondo, rodopiando». Daí que a garrafa fosse, também ela, rodopiante, como se vê pela imagem. A desconfiança transformou-se em surpresa porque a Skol Beats, tirando o ar hip-hop (que nem era fundamental…), era saborosa e, ao contrário do que fazia crer a ideia «para público jovem», não se tratava apenas de uma «cerveja leve». Mantinha uma percentagem alcoólica, digamos, sustentável (5,3%) – e era uma lager, evidentemente, e de «coração frio». Ao bebê-la, depois de a boca a saborear, ficava uma sensação de geladinha bem aceitável. A sua garrafa totalmente transparente, ondulada, com mais aderência à mão, também facilitava. Utilizei várias vezes o radical «fácil»; também não me arrependo. A Skol Beats é uma cerveja fácil de beber, elegante, sem necessidade de muita preparação (como a existência de um salgadinho prévio) e pode beber-se pela garrafa, ao contrário das cervejas «sérias» (isto não é uma vantagem mas apenas uma constatação). O Verão brasileiro, mesmo quando ainda mal começou, também é um factor importante para apreciar convenientemente esta cerveja. Ela deixa um rasto de condensação do ar, um ligeiro travo cítrico e uma paleta de cores muito aceitável enquanto rodopia. Como na campanha publicitária, ela desce redondo, rodopiando. É mesmo verdade.

+MARCA: Skol Beats
Origem: Brasil
Álcool: 5,3%
Avaliação: **

Spaten || Toma lá uma bock

Dâmaso de Salcede, o nosso português de Os Maias, pelava-se por «um bock». Eça conhecia-os, aos Salcede: miudinhos, gorduchos, bigode brilhante dos fixadores e das tintas, heróis dos botequins, medricas, cosmopolitas do Chiado. Mas, passados estes anos, não podemos queixar-nos: eles tomaram conta do país. É da nossa condição. Porém, se os Salcede subiram ao pedestal, «um verdadeiro bock», como mencionava Eça, só pode encontrar-se raras vezes. A Spaten, alemã até o fundo, fornece essa alegria. Contrariando a tradição da bock, uma cerveja forte e de razoável teor alcoólico, esta Spaten é um das cervejas mais frescas para o Outono que se aproxima, e recomendo que se comprem algumas nas lojas – sim, porque existe nas lojas, importadíssima, resplandecendo nos seus 6,5% de álcool passageiro. Quando falei da Fruto Proibido (em flamengo, De Verboden Vruch, lembram-se?) tratei de mencionar a sua frescura hip-hop. O género musical não está muito a propósito, mas convém para esta Spaten, cujo copo deve erguer-se à luz para apreciar não a transparência mas a convulsão dos seus líquidos, dançando como as águas do mar. Falo assim porque gosto francamente dela, da minha Spaten. Literariamente, evoca «o bock» exigido por Dâmaso de Salcede a meio das corridas de cavalos, naquele festival de senhoras fazendo apostas ou trocando olhares entre os seus amantes e os seus maridos. Nas papilas, de facto, treme sem a grandeza do romance, mas evoca os momentos de frescura que contrariam os restos do Verão: garrafas mantidas em baldes de gelo, refrescando, copos altos, finos, erguidos com a solenidade do prazer, debaixo de gigantescos olmos cujas sombras vão e vêm, como uma rede pendurada nos seus ramos, melancolicamente, como se planássemos nas alamedas das florestas da Baviera. A verdade é esta, quando se chega ao presente parágrafo: a Spaten só tem 6,5% de álcool, é verdade, mas será que bebendo três exemplares chegamos aos 19,5%? Essa é uma grande questão, se ainda soubermos somar.

+MARCA: Spaten (Bock)
Origem: Alemanha

Álcool: 6,5%

Avaliação: ****

Stan’s Red Sky Ale || Frutas da Califórinia

Já vão longe os tempos em que, mirando do alto do ombro, altaneiro e convencido, um português podia dizer: «O quê? Califórnia? Sabem lá eles o que é um vinho.» Os japoneses também não sabiam fazer máquinas fotográficas há cem anos – e é o que se vê. Há quem garanta que uma máquina fotográfica é substancialmente diferente de um vinho, que um tinto do Douro não pode produzir-se no Alasca e que os californianos votaram em Schwarzenegger para governador. Tudo isso é verdade – mas o essencial é que uma inteligência mediana aprende a fazer vinho, que a Califórnia não é o Alasca (tem bom clima) e que nem todos votaram Schwarzenegger (ainda que o governador beba vinho). Depois dir-me-ão, ainda sobre o ombro, que o vinho implica uma cultura, uma tradição e um conhecimento ancestral – tudo argumentos sérios, mas ultrapassados quando se bebe um vinho australiano, um chileno, um argentino e… um californiano. Bom, se esta crónica trata de cervejas, por que estou eu a falar de vinhos? Porque a Stan’s Red Skin Ale é uma cerveja «ao estilo europeu» que poderia beber-se num pub inglês sem dificuldade ou numa velha cervejaria alemã, se fosse caso disso. «Estás enganado», diz-me um amigo reaccionário. «Americano é americano, como é que vai produzir uma coisa verdadeiramente europeia?» Com inteligência, esforço e sabedoria – e com muito bom gosto: a Stan’s é uma cerveja notável, que lembra perfeitamente uma ale escocesa (e mesmo uma bitter londrina) e muitos sabores belgas e alemães. A diferença é o seu carácter muito mais fresco e ligeiramente afrutado, com um amargo muito saboroso. Bebe-se muito bem à refeição.

+MARCA: Stan’s Red Sky Ale
Origem: EUA/Califórnia
Álcool: 5,9%
Avaliação: ****

Staropramen (Pemium Lager) || Praga, a bela

Infelizmente – ai de mim – eu não conheço Praga, mas li os seus autores; Kafka e Hasek primeiro — Capek, Bohumil Hrabal, Kundera e Havel depois. Ou seja, não conheço os seus aromas, mas bebi as suas cervejas. Com uma diferença essencial: ao contrário da literatura, não usei traduções para as cervejas. É impossível deixar de mencionar a clássica Budweisser checa (não tão boa, advirto, como a americana, a original). Mas avanço agora para a Staropramen, uma relíquia criada já na segunda metade do século XIX, em 1871, numa cervejaria situada nas margens do Vltava. A Premium Lager é a versão mais popular de todas as Staropramen, que conta ainda com duas outras: a Granát e a escura. Não provei a Granát, com bastante pena minha, apropriadamente marcada por tons rubi, mas a sua versão escura é arrebatadora, embora o travo de anis não faça dela uma «cerveja fácil». Já a lager, a mais conhecida, merece aplauso. Tem uma cor única, selvagem e cujo tom loiro carregado ajuda a perceber melhor por que razão o seu «fim de boca» é tão saboroso e exótico; não é, atenção!, uma cerveja para quem gosta de refrescos (a sua percentagem de álcool anda apenas pelos cinco por cento), que para isso tem água mineral e limonadas, mas, antes, um exemplar bem fermentado, com algum corpo no universo das lager e um tom amargo que se solta do último suspiro do bebedor. Ou seja: não sei se foram os sumérios (com outros povos da Mesopotâmia) a fabricar as primeiras cervejas, mas os checos souberam aprender a receita e, certamente, melhorá-la.

+MARCA: Staropramen (Pemium Lager)
Origem: República Checa
Álcool: 5%
Avaliação: ****

Stella Artois || Estrela belga

Ah, blondes, trapistas, ruivas, tripels, lambics, morenas, dunkels, festival de cores, aromas, sabores, corações tépidos ou ligeiramente refrescados! Ah, cervejas do paraíso, das abadias, das esplanadas e dos bares de Bruxelas, Antuérpia ou Wingene! Pronto. Chega de euforias. Desçamos à terra e enfrentemos a pilsener de mais estendal na Bélgica, a Stella Artois. Conservem-se as duas ou três garrafas num balde de gelo depois de retiradas do frigorífico enquanto vamos escutando e repetindo os versos de Jacques Brel, o meu poeta de canções, aquele que dizia: «Je lève ma chope de bière à Gauguin.» Sinto uma comoção imperfeita ao ouvir Brel, como ao ler Hugo Claus, imagem tanto do plat pays como do chagrin des belges. («Ça sent la bière, donne-moi la main…», é assim a canção de Brel) A Stella acrescenta-lhe sabor, um nadinha de voz, de amargo, de perfume, de dolência, de paixões desfeitas. Se é boa? É. Não brilha nos céus de Gambrinus, mas tenho o disco de Brel a tocar: «C'est plein de jours morts/ Et d'amours gelées/ Chez nous y a que l'été/ Que les filles aient un corps…» E logo depois : «Ça sent la bière, donne-moi la main…» Tem um final ligeiramente citrino e a espuma não é volumosa nem espessa como deveria, mas bebe-se quase na perfeição, quase com um sorriso. Enfim, é a Stella – e a primeira vez que a vi foi numa propaganda desbotada da minha adolescência, quando Eddy Merckxx ainda corria de amarelo.

+MARCA: Stella Artois
Origem: Bélgica
Álcool: 5%
Avaliação: **

Tagus || Boa quê?

Eu não vejo grande inconveniente em fazer-se cerveja com ananás, abóbora, rabanete, gasolina de avião, álcool etílico ou com ginja. O importante é haver quem a beba; não me apanharão em campanhas de rua a exigir a pureza absoluta da cerveja ou de qualquer outra coisa. Em África já me ofereceram vinho branco com Coca Cola e eu recusei – mas havia bastante gente à minha volta a segurar na mão o copo com a mistura. De volta à pátria real, descubro uma cerveja com aroma de limão e uma campanha publicitária que fala da sua leveza e dimensão angelical. Estranhei que não a tivessem feito antes – à mistura, porque a publicidade nem era má. Nada disso me incomoda, nem acho criminoso desde que não me obriguem a bebê-la em doses normais. Basta cheirá-la. Há quem invoque o hábito mexicano de tingir a claridade radical das suas cervejas com umas gotas de limão ou, mesmo, de nela mergulhar um quarto de lima para lhe transformar o sabor, tornando-a ligeiramente doce; nem isso me parece uma exclusiva mexicanização: na Europa há cervejas com um leve toque cítrico que não desconhecem de todo o caminho do pódio – pelo contrário, são muito agradáveis. Não são aquela cerveja. Não. Mas não erguerei o cadafalso para penalizar os seus autores. Ora, por falar em campanhas publicitárias de cerveja em Portugal há uma que gostaria de recordar; diz: «É boa.» Voltar à pátria a espaços tem destas vantagens: eu já conhecia a cerveja mas tinha-me passado a campanha. Não é despropositada – a Tagus é uma cerveja muito apreciável, claramente lager, seca e com um tom colorido bastante apetitoso, cerealífero. Herdeira da tradição das pequenas indústrias locais (que produziram em Portugal marcas como a Marina, Clock, Cergal ou Topázio), é necessário saber aprender a beber a Tagus: não é vulgar nem excessivamente gaseificada, como acho que pede o gosto português; tem um aroma quase perfeito e um sabor que ronda o limão, frutos frescos e um final de noz. É boa. Quer dizer: a campanha não mente. É boa e pronto. Malte puro, água pura, lúpulo – com isso se faz uma cerveja.

+MARCA: Tagus
Origem: Portugal
Álcool: 4,5%
Avaliação: ***

Especial Mello Abreu || As lagoas de São Miguel

A cervejaria Mello Abreu é responsável por alguns dos meus delírios em matéria de cervejas; mal chego a São Miguel, nos Açores, sei que alguma coisa se transfigura. Atribuo isso aos Açores, evidentemente. À sua respiração, à minha vida. O caminho entre o aeroporto e o largo da Matriz é sempre acidentado – paro para comprar cigarros de São Miguel (Boa Viagem) e uma caixa de charutos (os robustos da Fábrica Estrela), para cumprimentar um amigo; abrando para me encher de mar junto da marginal, mal ela começa; respiro como se não tivesse respirado até essa altura. E, confesso, penso na primeira Especial, a cerveja pilsener da Mello Abreu, a cervejaria histórica dos Açores. Tenho saudades dos tempos em que ela não se chamava Especial mas apenas Mello Abreu; e pedia-se uma Mello Abreu. Havia nessa designação uma dignidade sem empréstimo possível, nem cedência às coisas e às fórmulas corriqueiras. Ainda hoje, em São Miguel, peço uma Mello Abreu. É a Especial. E é uma das bandeiras dos Açores, se considerarmos que os chicharrinhos fritos com açaflor ou envoltos em farinha de milho, os queijos mais olorosos, as lagoas mais enevoadas, as praias mais escondidas entre as falésias, também são bandeiras açorianas. Ora, estar nos Açores sem beber uma Especial comporta alguns riscos culturais sérios, ou seja, uma série de perdas graves. Ela é uma das melhores cervejas portuguesas – a sua identidade tem a ver com a leveza, a simplicidade, a cor clara, a (repito, pois) respiração. Há épocas em que a sua espuma cai melhor no copo, formando-se à sua tona como a cereja do bolo. Os bebedores de cerveja sabem como é importante a espuma, aqueles dois dedos de brancura mínima indispensável. Eu recomendo-a com entusiasmo desde há anos; sei que é uma escolha afectiva e afectuosa, mas isso é um direito do cronista, cansado de ser um juiz hirsuto e de se portar bem. Venha uma Mello Abreu. Como se estivéssemos nos Açores, justamente. Nas lagoas de São Miguel.

+MARCA: Especial Mello Abreu
Origem: Açores
Álcool: 5,2%
Avaliação: *

Expedition (Imperial Stout) || Uma expedição ao Michigan

Por gentileza de mais um viajante, cheguei há tempos à costa Leste dos Estados Unidos. Eu confesso a dificuldade, em certas alturas, de falar de certas marcas de cerveja – pergunta-se o leitor: «Existe a Expedition Stout?» Garanto-lhe que sim. É uma das cervejas que surpreendeu o meu atrevimento e os meus preconceitos. O Michigan é uma terra tão distante, para mim, como o Casaquistão e, no entanto, suponho que é mais fácil beber uma cerveja de Kalamazoo, Michigan, do que provar um vodka de Astana, coisa que duvido que exista. Portanto, o leitor terá de confiar em mim. A Expedition é uma cerveja de culto: uma imperial stout negra, opaca, profunda, grave como um crepúsculo das pradarias – menciono o crepúsculo porque, tirando a noite alta, depois de um jantar, não encontro outra ocasião tão perfeita para bebê-la, com os seus 11.5% de álcool. Esse é, talvez, o seu senão, mas não basta para lhe retirar três coisas essenciais: o aspecto cremoso (se a agitarmos no copo, então, veremos dunas vagueando pelos ares, o que nem parece estranho), o perfume de cereais tostados e de lúpulo e, finalmente, uma sugestão de frutos do bosque. Dir-me-ão que se trata de poesia. Provavelmente; mas esta abundância de tons de chocolate e de malte teria necessariamente consequências graves. Por exemplo, eu vejo berries saltitando à superfície do copo, sugestões de amoras e chocolate, coisas de visionário. Eu sei que me desculpam; no fundo estamos em Kalamazoo, Michigan.

+MARCA: Bells Expedition (Imperial Stout)
Origem: EUA
Álcool: 11,5 %

Avaliação: *****

Fisherman’s || Mar del Plata

Quis o destino que chegasse a Buenos Aires num dia de sol, quente e luminoso. Eu tinha lido o essencial e, dias antes, em Lisboa (na Casa da América Latina), apresentara um livro de Juan José Saer – um argentino de Paris – que me comovera o suficiente para passear pela pampa. O livro chamava-se As Nuvens e era a história de um médico e dos seus assistentes que percorriam a Argentina recolhendo loucos que deveriam tratar no seu hospício. Essa travessia mostrava um país de chuvas, planícies abandonadas ao silêncio, incêndios, cavaleiros solitários, generais perdidos e desenganados – eu gostei do retrato. Tenho um gosto especial pelas civilizações que sabem que estão perdidas ou, pelo menos, cujo tempo chegou ao fim. Num restaurante de Buenos Aires, não muito distante da Recoleta – um bonito bairro cheio de árvores, relvados, livrarias, restaurantes, cinema ao ar livre, alunos do Conservatório que dançam tango para os turistas – bebi uma Quilmes para festejar o crepúsculo. É uma cerveja simpática, clara. E fresca, com um final a saber a Quilmes, mas não mais. Só isso. Uma Quilmes. A noite continuou pela Recoleta até dar com um livreiro tardio que conhecia de literatura portuguesa o que um polícia das alfândegas não suspeita sobre a bagagem do viajante; de contrário, pagaríamos imposto. Fomos interrompidos por um casal de adolescentes que queria comprar o Kama Sutra. O bom livreiro quis saber de que edição se tratava – e desfiou uma erudição bibliofágica, com uma lista de seis versões que desanimou os jovens clientes, mais interessados em conhecer o «salto de corça» do que os rudimentos de filologia. «É para bem deles», explicou, murmurando que o «salto de corça», como posição, é de um arrebite desnecessário, coisa para exibicionistas. Compreendo-o, à medida que a idade vai passando. E fomos à cerveja. Ele era de Santa Clara del Mar, onde se produz a Fisherman’s, uma cerveja em três versões: negra, rubia e rojita. Infelizmente, não encontrei a rojita, mas o que bebi bastou para gostar da rubia, artesanal e límpida como o céu do Mar del Plata, ligeiramente dörtmunder. Se for bebida gelada, mal se sente escorregar pela garganta, descendo até onde se acomoda para nosso regalo. No copo é ligeiramente cremosa, a espuma volteia devagar até tingir de cristal o seu topo, não é exagerada na gaseificação, nem se perde em minudências: vai direita ao assunto, fria e pouco contemplativa. Não se pode querer muito mais quando o Verão chega ao hemisfério sul.

+MARCA: Fisherman’s (Rubia)
Origem: Argentina

Álcool: 5,2

Avaliação: ***

Golden Gate Amber Ale || Visões da Califórnia

Há sempre surpresas. Algumas delas vêm dos EUA e não é de estranhar: uma certa tendência para recuperar os sabores primitivos tem também como consequência a redescoberta da cozinha tradicional onde ela teve tempo para existir, sobretudo nos estados do Sul (ah, New Orleans!). No capítulo das cervejas, no entanto, esse movimento tem lugar onde a babel de lúpulos e maltes é mais notória até não se perceberem diferenças – nomeadamente, na Califórnia, onde se tem assistido à multiplicação de pequenas cervejarias (e em New Orleans também…) que recriaram as ales de outros tempos, um nadinha escuras, talvez caramelizadas e com uma fermentação mais forte a partir de maltes escuros. De certo modo, justifica-se: essas cervejas acabam por ficar relativamente próximas das cervejas «ao gosto inglês» (ao contrário de New Orleans…), excepto no teor alcoólico. A Golden Gate é um desses casos e só por ironia poderíamos não ligar ao facto de ser produzida em Berkeley, não muito longe do campus universitário: é uma cerveja já com um certo grau académico e necessita de bibliografia apropriada para ser inteiramente compreendida. Não é fácil de beber, mas também não exige ditirambos como prefácio. No capítulo da tese, ela distingue-se mais pelo sabor do que pela explosão de gás. Se puderem, provem-na. É uma surpresa.

+MARCA: Golden Gate Amber Ale
Origem: EUA (Califórnia)
Álcool: 5,7
Avaliação: ***

Grimbergen (Trippel ) || Cânticos de louvor

Já trouxe a este cantinho a Artevelde Grand Cru como um exemplo mais das cervejas belgas. Insisto hoje com a Grimbergen, não por me lembrar da abadia do mesmo nome, fundada em 1128. Foi um grande ano. Não só pela abadia (que seria destruída várias vezes nos séculos seguintes), mas também pela cerveja que os monges de São Norberto prepararam no lugar, não se sabe exactamente a partir de que ano. O santo morreu três anos depois, mas o nome da bebida manteve-se; em 1958, os monges fizeram um acordo com a Alken-Maes, uma cervejeira das redondezas, para a produzirem em seu nome. Fizeram bem, sobretudo para quem aprecia canto gregoriano, pois os frades passaram a dedicar-se com mais tempo às cordas vocais do que à fermentação, distinguindo-se finalmente na música. Dizem-me que são gargantas límpidas e profundas. Anualmente, celebram mesmo uma missa em honra da cerveja. Actualmente, há duas Grimbergen no nosso mercado: a Double e a Trippel, consoante passam por duas ou por três fermentações. A Double é escura, a Trippel é bastante mais clara e suave até certo ponto e ronda os nove por cento de álcool. Ligeiramente adocicada depois de aberta no copo, há um tom de citrino (tangerina?) que se solta de vez em quando, misturando-se com um aroma de canela muito pouco definido. Não admira que se soltem cânticos em seu louvor. À canela não será, mas a mim pareceu-me.

+MARCA: Grimbergen (Trippel)
Origem: Bélgica
Álcool: 9%
Avaliação: ****

Grolsch || A garrafinha bonita

Depois de apreciar a sua beleza (ou a beleza da sua garrafa verde, com uma mola, verdadeira preciosidade dos processos de engarrafamento de antanho) uns amigos queriam beber uma Grolsch. Eu faço-lhes a vontade, uma vez que estamos diante de uma marca que não envergonha ninguém desde 1615. A garrafinha bonita, ou seja, a mola para tapar a garrafa – e que constitui uma das suas singularidades – é que só apareceu em 1897. Como lager, a Grolsch é uma das mais suaves da sua gama, não excessivamente clara (pelo contrário, tem reflexos doirados muito interessantes), ligeiramente perfumada; muito subtil, delicada – e sem modernices. Isto das modernices explica-se facilmente. Nos nossos supermercados, a Grolsch é prejudicada por aparecer, de facto, numa garrafa bonita; o português, sublimemente desconfiado, pensa logo: «Estes querem é enganar-me com a tampinha de mola.» Ah, portugueses, como vos admiro – por isso as nossas embalagens são as piores. A mola ajuda, é bonita, certamente. Mas chamo a sua atenção, antes, para a beleza da própria cerveja. Ao contrário de outras marcas, esta lager holandesa mantém princípios sérios – nada de humores e de amplexos com outros sabores que não sejam o dos seus ingredientes básicos e o de uma maturação delicada. Há quem ache que a maturação não tem nada a ver com o assunto desde que haja efervescência e algum sabor – mau sinal dos tempos. Recomendo que se beba ao fim da tarde na companhia de salgadinhos e enquanto se aproveita o Verão que acaba de visitar-nos. É uma boa companhia. Pode brincar com a tampinha de mola, ninguém leva a mal.

+MARCA: Grolsch
Origem: Holanda
Álcool: 5%
Avaliação: ***

Guinness || A de todos nós

A Guinness, a velha stout (hoje com «formatos» extra-stout, draught e foreign stout – sensivelmente os mesmos, aliás) faz parte da nossa mitologia, mal suspeitava Arthur Guinness, o seu criador, nascido em 1725 no county Kildare, um condado de grandes e nobres tradições alcoólicas (ah, mais acima fica o de Aintrim, onde nasceu o Bushmills), e que em 1759 tomou a seu cargo uma pequena cervejaria em St. James, Dublin. A história é simples desde que, dez anos depois, em 1769, saíram de Dublin os primeiros dez barris de cerveja de exportação, destinados a Inglaterra. Não era a stout como nós a conhecemos hoje, que Arthur fabricava, mas uma ale apaladada e forte. Só na década de oitenta (do século XVIII) deixou de se fabricar essa ale em St. James Street, dedicando-se a partir daí, exclusivamente, a uma porter escura, queimada e densa, a base da actual Guinness, lançada em 1961, de aroma ligeiramente tingido de café, sabor amargo e com uma doçura romântica proporcional à suavidade da sua espuma. A Guinness é uma stout que se pode beber em qualquer circunstâncias, ao contrário de outras do mesmo género mas substancialmente mais caramelizadas. Tem um índice de frescura acentuado no seu final de boca e temperamentalmente, é seca. Podendo, o melhor é beber a irlandesa, de origem: com várias qualidades de malte, sim, cevada, e sem açucares. Em lata, de 0,5 l, há uma série pasteurizada que se pode obter com o dióxido de carbono suficiente para conseguir o aspecto draught. À pressão é muito boa – em meu entender, depois de jantar.

+ MARCA: Guinness
Origem: Irlanda

Álcool: 4,1%

Avaliação: ***

Het Kapittel || Frutos, segredos

Ao longo deste périplo cervejeiro já mencionei, para agrado de amigos alemães e tristeza de uma larga percentagem de pessoas que não pode viajar até à Alemanha por estes dias, algumas kölsch notáveis. A kölsch é uma cerveja da zona de Colónia (Köln, portanto), cuja característica mais agradável é a estranha possibilidade de parecer seca e, simultaneamente, deixar um rasto de frutos – citrinos elementares, maçã; um aroma, enfim. Algumas lembram-me o travo de Apfelkörn, a aguardente de maçã e cereal. Não é o único caso de cerveja com essas características. Um pouco por todo o mundo têm vindo a produzir-se cervejas relativamente «fruity», tentando explorar o desejo de exotismo dos «consumidores». Agora, que estamos em pleno coração do Inverno, apetece mais uma bock, servida em condições ideais (ou, murmura-me a consciência, uma porter londrina, cheia de energia e de calorias), mas nem sempre se consegue. Tive essa sensação de reencontro com as grandes tradições europeias ao beber uma Het Kapittel belga e raios me partam se não está cheia de frutos, de polpas que se transformam em aromas fundamentais, evocando os pomares que ainda sobrevivem na Europa toda. A Het Kapittel tem essa característica de, como cerveja herdeira da tradição trapista (mas não é trapista), ter uma dupla fermentação (a segunda já em garrafa, evidentemente): bebe-se, também, para testar a sua suavidade e, já agora, o temperamento perverso das loiras belgas, que sob a máscara de uma circunspecção controlada, explodem no copo (ah!, escrevi «copo» e não «corpo»), libertando aromas e vapores amigáveis. Um amigo considerou que estávamos diante de um atrevimento. Pode ser, mas é um atrevimento devasso, portanto aceitável, e não se trata apenas de «um efeito de álcool». Está-lhe no coração e pode acontecer que não lhe achemos graça ao primeiro contacto; mas em habituando o paladar a essa ligeira névoa que paira no copo, dançando como ondas de luz, estamos perdidos. Perdidos e, de certo modo, condenados à pena capital. À Het Kapittel, queria eu dizer. Foi do álcool.

+MARCA: Het Kapittel
Origem: Bélgica
Álcool: 6%
Avaliação: ****

Hobgoblin || A bebida do diabo

No mesmo telejornal que me mostrou a intenção do governo em limitar e proibir o fumo nos espaços públicos (o que eu acho bem – se bem que vá elaborando a minha lista negra de restaurantes e bares que não disponham de uma área de fumadores), foi apresentada uma reportagem sobre as implicações dietéticas da cerveja. Basicamente, descobriram agora que beber uma cerveja equivale a várias tropelias, coisa que os jornais e as televisões fazem cíclica e periodicamente, não só com a intenção de zelar pela nossa saúde, mas também para dizer que a cerveja é, bem vistas as coisas, «a bebida do diabo» e um mal para as várias economias nacionais. Felizmente, daqui a uns meses aparecerá uma notícia nos jornais, citada das agências, dizendo que o malte orgânico apresentado em certas cervejas é de excepcional valia para a saúde. Há coisa de um ano, durante uma peregrinação literária, integrado num grupo que recitava sonetos por várias cidades da Europa e ouvia comentários em línguas que desconhecia, parei num bar que se dedicava unicamente à «bebida do diabo». Já saciada a minha sede de bebidas da mittleuropa, checas e austro-húngaras, pedi uma Hobgoblin – produzida em Inglaterra, na lendária Whychwood, como se estivesse a precisar de mais açúcares no sangue. Em vez do açúcar chegou também um levíssimo aroma de malte com chocolate ou cacau, que até hoje não pude definir. A Hobgoblin deve beber-se mais devagar do que as cervejas tradicionais (pilsener ou qualquer lager); digamos que não perde qualidades à medida que vai ganhando temperatura – o seu coração, embora delicado e amoroso, permanece frio por muito tempo. Para este amplexo, pois, os preliminares são mais avantajados e carecem de paciência. Não se gosta dela ao primeiro olhar, se bem que a garrafa seja belíssima – depois da impressão de cacau ou chocolate (ainda não decidi o que chamar-lhe), vem um aroma de fruto e só depois o amargo dos cereais, crescendo do fundo do copo, como uma ameaça. É a ameaça do diabo, certamente, que nunca usa cacau nem chocolate mas sabe como se vai lá, ao sabor.

+MARCA: Hobgoblin
Origem: Inglaterra
Álcool: 6,5%
Avaliação: ****

James Squire Original Amber Ale || O recife de coral

Com peso e suave – essa é a primeira apreciação da James Squire Original Amber Ale, que se aproxima a passos largos de uma ale inglesa. De todas as surpresas que se têm quando se abre uma garrafa de cerveja e se aprecia com uma tranquilidade de fim-de-semana aquele momento em que o líquido desce para o copo, a do aroma da James Squire é das mais fortes e sinceras. Falo de sinceridade por falar: uma cerveja não tem nada a ver com sinceridade mas talvez com autenticidade. As ale das ilhas britânicas oferecem ambas as coisas; não mentem e não se escondem. A James Squire Amber Ale, australiana, olha-se à luz para ver como a sua cor clara pode ser permeável à doçura do momento, tingido de tons avermelhados. Leve-se o copo junto da boca, aspirando os aromas de madeira e um nadinha de fermentação; finalmente, deixemo-nos cair em tentação para apreciar aquela tempestade que toma conta da língua, do céu-da-boca, do palato, como uma onda de caramelo que enfrenta um recife de frescura, cremoso e antigo. É das melhores cervejas que bebi. Para ser sincero, uma das melhores ales que provei, sem a natureza carbonatada das cervejas a que estamos habituados. Não se lhe pode pedir, à James Squire Amber Ale, que seja light & easy como como uma beberagem refrigerante. Desde 1794 que a James Squire ensina a matar a sede. Esta é a prova final, derretida sob aquela vaga de espuma que nos faz rodar, agitar, sacudir o copo para que o interior fique protegido. Yeats tem um poema sobre «a espuma do mar» e eu compreendo a necessidade de se ser romântico uma vez por outra, em circunstâncias que vêm «a pedido». No meu caso, uma James Squire Amber Ale pode ajudar bastante. Ao entrar na Austrália, o grande recife de coral é apenas uma vaga de espuma, o sinal de que Deus (afinal) criou o mundo desta maneira inesperada.

+MARCA: James Squire Amber Ale
Origem: Austrália
Álcool: 5%
Avaliação: *****

Judas || Deliquescente

Sérgio Augusto, um dos melhores cronistas brasileiros de cinema (é autor de vários livros sobre a matéria, incluindo um sobre a chanchada brasileira, e os seus textos mais recentes estão reunidos em Lado B, edição Record), conta que, um dia, quase se despediu de uma revista porque os editores se recusavam a admitir a palavra deliquescente. Eu gosto da palavra e recomendo que o leitor passe pelo dicionário (o Houaiss, já agora). Ora, deliquescência é o que me sugere a cerveja desta semana. De entre as principais marcas e referências belgas de tom mais claro, poderemos falar da Duvel. Faltaria ainda mencionar a Judas. A sua fama alargou-se devido, principalmente, ao nome – que evoca memórias pouco cervejeiras – mas, seja como for, também merece distinção: os seus 8,5 de álcool são o portal de várias promessas. Eu escrevi, lá atrás, «de tom mais claro», mas deve dar-se algum desconto: não é uma pilsener. Encaminha-se para uma ale e não é por acaso que a larga maioria das cervejas belgas «de tom mais claro» são associadas ao «estilo inglês». Assim acontece com a Judas: agradável, sim, e seca, mas com um peso específico que não se envergonha de ser bebido a temperaturas mais exigentes (ou seja, mais frias). É aqui que eu mencionaria a deliquescência: ela deixa-se desfazer, entra em desagregação mal toca a língua, desfaz-se, espalha-se com uma onda até que o álcool, como se supõe (e correctamente), sobe ligeiramente à cabeça. É isto bom? É. Tem dias.

+MARCA: Judas
Origem: Bélgica

Álcool: 8,5%

Avaliação: ***

Little Creatures || Vinda do Deserto

As regras mandam que a primeira prova de uma cerveja se faça vertendo apenas uma pequena quantidade de líquido no copo apropriado; depois, que se agite o copo de uma só vez para se pressentirem todos os seus aromas; leve-se o copo à boca (ter em atenção que o tom doce de uma cerveja é apreendido pela frente da língua; o seu lado amargo lá atrás; a sua efervescência e sabor pelos lados – perdoem-me a incisão); ao contrário dos vinhos, que não podem ser ingeridos em prova, a cerveja deve ser bebida com grande proveito para se apreciar o seu sabor – e uma boa cerveja, além de exigir que repitamos a prova sucessivas vezes, deve deixar uma sensação de frescura no palato, que é fundamental. A segunda prova deve ser efectuada já com mais líquido no copo e é natural que um salgado seja exigível para intervalar. Ora, para provar a Little Creatures, suspeito que é necessário abreviar, de tal modo é clara a sua superioridade: formato da garrafa, cor do vidro, grafismo superlativo em geral – os australianos dizem que se trata de uma cerveja para as refeições, de grande qualidade. No copo ela é claríssima, mantendo os reflexos dourados de um lager que atravessa o deserto australiano para nos civilizar com o seu sabor. E aquele tom agradável, final, amargo e gelado – chama-se «toque de génio». Os mestres cervejeiros reconhecem-no quando estão diante dele. Mas não lhe dão um nome.

+MARCA: Little Creatures Pale Ale
Origem: Australia
Álcool: 4,5%
Avaliação: ****

Kingfisher || Bangalore, Bangalore

Nem sempre se encontra a cerveja – a cerveja da nossa vida. Ou porque não se conhece, ainda; ou porque há demasiadas cervejas no mundo para que fiquemos presos a uma delas; ou porque, bebendo-se uma vez, ela está muito distante, só se encontra muito longe. Nisto como em outras matérias, não se pode ser muito definitivo: ao virar da esquina somos surpreendidos, justamente porque na esquina pode ficar um bar de cervejas, por exemplo. Não se coloca, pois, a questão da fidelidade absoluta: beber uma cerveja não implica juras matrimoniais ou uma relação para toda a vida, embora possa acontecer. Já se tem visto. Um dia, num dos livros de Rex Stout, o detective Nero Wolfe, de quem é conhecida a sua obsessão contra a novidade, pede ao cozinheiro Fritz Brenner para lhe comprar cervejas de várias marcas (Wolfe bebe exclusivamente cerveja, mas apenas de uma marca). A maior parte das garrafas que Fritz compra são de marcas novaiorquinas, e quase todas elas deixam Wolfe absolutamente convencido de que vale a pena, de vez em quando, transgredir nas suas obsessões e, no caso, experimentar outras cervejas: era muito boas. No meu caso, não vejo outro remédio – de contrário, estas notas não existiriam. Uma das cervejas que se encontra muito longe é a Kingfisher, uma lager fina e clara, muito refrescante. As suas origens são as da Castle (marca muito conhecida, aliás, pelo antigo império britânico – existe na Suazilândia uma Castle muito, muito aceitável), que se estabeleceu em Bangalore nos finais do século XIX para abastecer os fígados ingleses que ali se encontravam, sendo legítimo supor que Churchill deve ter bebido Kingfisher, que é muito fresca, suave, leve e reconheço que é a ideal para acompanhar um bom caril. O problema, que ocorre frequentemente comigo, é que bebo uma cerveja indiana e evoco logo o tamarindo, o cardamomo, uma gota ácida de maçã, um fruto proibido. Benefício para a cerveja, que deve sempre levar-nos a imaginar que não é apenas cerveja.

+MARCA: Kingfisher
Origem: Índia
Álcool: 4,8%
Avaliação: ***

La Fin du Monde || Até ao fim do mundo

Sim, eu escreveria um romance com esse título. Infelizmente, não tenho argumento para ele senão coisas vagas de que me recordo depois de ter atravessado o Estreito de Magalhães. Vem isto a propósito do tempo que passa, evidentemente – e de uma cerveja canadiana que não tem a ver com o assunto. La Fin du Monde, fabricada no Quebeque, tenta ser uma trippel belga e raramente se conseguiu, do lado de lá do mar, tamanha intrusão. A Unibroue, que também produz La Blanche de Chambly, La Don de Dieu, La Terrible e a La Trois Pistoles, lançou a La Fin du Monde no mercado em 1994 com a intenção de ser uma cerveja de festa. Uma cerveja de celebração, pertencendo a casta superior, deve ser especial também na sua percentagem de álcool: 9%. Aí está porque não é uma cerveja de todos os dias. O que é uma pena, porque a sua cor é belíssima, de um amarelo vagamente alaranjado ou torrado, e se associa na perfeição aos aromas de malte, de baunilha e a essa respiração afrutada, de final amargo, que faz as delícias dos silenciosos apreciadores de uma trippel. Porquê silenciosos? Porque uma cerveja assim, cheia de sabedoria e de sabor, pede circunspecção e concentração. Mesmo para lá do fim do mundo.

+ MARCA: La Fin du Monde
Origem: Canadá (Quebeque)
Álcool: 9%
Avaliação: ****

Molson || Imagine, do Canadá!

Só tardiamente soube que a Molson era canadiana. Justifico-me: a Molson Breweries foi fundada por um inglês no longínquo ano de 1786 e dou as minhas papilas por definitivamente estragadas se isto não é, ainda, uma cerveja inglesa. Refiro-me às categorias «Lager» e à «Export», as duas que pude provar entre aeroportos – e que recomendo apesar de se tratar de cerveja do Canadá, esse país do qual nada se sabe e que, infelizmente, continua longe demais. Sabe-se o suficiente, no entanto, para que se esclareça o seguinte: antes de alguém falar da «lei seca» americana, lembremos a «grande proibição» canadiana, que durou vinte anos, até 1932. Findo esse período, a cerveja voltou. A Molson Canadian Lager é suave, apesar da cor e da fermentação acentuada de malte (vai bem com uma refeição), mas nada se compara em leveza com a Molson Export que revela um tom afrutado que não engana, uma espuma quase cristalina própria para beber ao longo do dia, sem comprometer a cabeça, o coração ou o estômago. Entre uma e outra, como em quase todas as coisas, aconselho que se tenha em consideração «a circunstância em que se bebe»: das duas vezes que bebi a Molson Export fi-la acompanhar de uns salgadinhos que espevitaram a sede e a necessidade de mais uma garrafa. É evidente que podia ter bebido água, mas se há uma coisa que distingue o homem que vive no paraíso original daquele que frequenta bares de aeroporto, essa coisa é a descoberta de sabores que só se pressentem uma vez. Por isso, não deixei passar a oportunidade.

+MARCA: Molson
Origem: Canadá
Álcool: 5%
Avaliação: ***

Palma Cristal || Palmeiras bravas

Não exageremos, mas Cuba continua a ser um destino de férias de muitos portugueses. Fui lá quando vi aquele filme com o Robert Redford e comprei charutos, livros usados e uma passagem para o México. Na altura, a cerveja que bebi era Hatuey. Não tenho grandes recordações dela, mas lembro que foi ultrapassada pela ingestão de daiquiris e de mojitos, além do rum escuro que acompanhava café e os primeiros Cohiba da minha vida. Já foi há muito tempo. A Palma Cristal é, cubana, uma pilsener clara, é uma descoberta recente e deparo com ela nos nossos supermercados (sobretudo no El Corte Inglés). A primeira impressão é de água fresca. Bem gelada (um truque: meia-hora antes de bebê-la, retire-a do frigorífico e reserve-a no congelador), parece saudável e não ataca nenhum dos órgãos vitais, o que é uma boa notícia. Fidel podia bebê-la como refresco. Passado esse momento, o da primeira libação, levemos o copo à boca, de novo. Já tem algum sabor, embora seja fraca de aroma: ligeiramente citrina, um amargo decentíssimo e quase nenhum peso no estômago. A passagem pelo esófago é muito refrescante. Dizem-me que, aí, há uma válvula interessante, o piloro. A Palma Cristal não o obstrui, ao piloro. Salta como uma cascata no meio da Sierra Maestra, a caminho das profundezas. Se me entendem, é para isso que ela serve: para nostálgicos e para coleccionadores. E fresquinha.

+ MARCA: Palma Cristal
Origem: Cuba
Álcool: 4,5%
Avaliação: **

Rheingold || O Reno em NY

Não sei se já desceram ou subiram o Reno. De barco deve ser uma experiência notável, mas eu só acompanhei as suas águas de comboio. De qualquer modo, a homenagem que lhe faço é quase sempre a partir da Hauptsträsse, em Heidelberg, a rua pedonal que é manifestamente o centro vivo da cidade, e de onde se vêem as colinas que separam – ao longe – o Reno do Néckar. Os meus amigos dizem-me, com o coração ao pé da boca, que os alemães têm Heidelberg mas que são como são: a sua poesia é soturna e bebem demasiada cerveja; tiveram o que tiveram nos anos trinta e quarenta e a que sua atitude marcial os torna indisponíveis para o divertimento (não é nada verdade); transformaram a Lorelei mítica morta nas águas do Reno num símbolo nacional, o que diz bem do carácter ainda mais soturno que a música de Wagner e o cinema vagamente expressionista; vestem de maneira estranha e respeitam os horários de trabalho. O que eu assinalo, para esta crónica, é que eles produziram cervejas notáveis e literatura que não desmente as suas qualidades. O resto é, também, muita dor de cotovelo. Por exemplo, foi da Alemanha que os Liebman levaram para Nova Iorque, na segunda metade do século XIX, a arte de fazer cerveja. Era, dizem os registos, uma cerveja clara que sucumbiu duas vezes: nos anos vinte, durante a «proibição» americana de produzir e comercializar álcool; e em 1976, quando a cervejaria faliu. Há cerca de cinco anos, provando que a globalização não quer dizer massificação, Walter Liebman relançou a marca: nesse ano comemorar-se-ia o duplo centenário do nascimento de Samuel Liebman, o fundador da cervejaria e afortunado criador da Rheingold – o Ouro do Reno. Até 1976, nessa última fase de existência da cervejaria, antes da sua ressurreição, a Rheingold produzia cervejas para quase todos os gostos: light, pale ale, brown ale e pilsener. Agora concentra-se mais na tradicional cerveja clara, uma dry beer com características de pilsener, muito ao gosto novaiorquino, disponível, culto, liberal, acessível e que vota democrata. No copo, tem uma leveza extraordinária, o que faz dela, claramente, uma cerveja de fim de tarde, de horário pós-laboral, própria para ser bebida ao balcão de um bar medianamente ruidoso enquanto se vê um bom jogo de futebol.

+MARCA: Rheingold
Origem: EUA, NY
Álcool: 5,2%
Avaliação: ***

Devassa Tropical Lager || Frescura sem frescura

Há cervejas brasileiras que me comovem. A Bohemia, a Cerpa, alguma Kaiser (sobretudo o chope da Kaiser tirado no Liliput, de Porto Alegre, em dois barris comunicantes), alguma Skol. Bebo-as sem pensar no destino da humanidade e sem outra evocação que não seja a de beber uma cerveja longe do compromisso de as beber: a maior parte delas requer uma boa dose de irresponsabilidade e de rapidez. É aquele tipo de cerveja sobre o qual reflectimos o suficiente para a aceitarmos como ela é. Não temos de dizer “oh não, hoje comi salada com demasiada cebola, não vai dar”, ou “tenho de pedir um queijo seco, oloroso, salgado, para acompanhar”. A maior parte delas, sendo apreciável, não deixa um travo amargo carregado de lúpulos de qualidade; tirando a Cerpa e a Bohemia, a maior parte das loiras brasileiras (refiro-me às cervejas, evidentemente) é agradável ao paladar (porque não o fere) e suave na boca (porque não sabe agredir e, na verdade, são bem construídas com muito poucas excepções). A Devassa Tropical Lager é, não duvido, a melhor lager de grande distribuição. Tem aquele tom amargo final, próprio das pilsener. Seca, com um levíssimo sinal da presença de frutos acidulados, a devassa loirinha merece encómios. Em chope, a espuma é mais cremosa, evidentemente, mas em garrafa não perde o essencial da sua coroa consistente e perdurável, protegendo o corpo leve e ondulante de uma musa caminhando pela Gávea em certas horas do entardecer. Podia falar da Lagoa, claro, da Lagoa Rodrigues de Freitas, e uma certa esplanada onde a bebi também, porque as cervejas ou nos fazem sonhar e desaparecer do mundo dos comuns mortais, ou não vale a pena insistir. Ela é devassa. Tem aquela frescura intensa e comovente – mas, para o idioma do Brasil, não tem frescura, se me entendem. É bem feita. Bem torneada.

+MARCA: Devassa Tropical Lager
Origem: Brasil
Álcool: 4,8%
Avaliação: ***