No início desta semana perdi o meu avô. O segundo.
O primeiro avô perdi há quase 16 anos. Ele tinha 94 anos, eu tinha 16. Era um avô querido, o João, mas a relação que estabelecemos foi limitada pelo pouco tempo juntos e pelas condicionantes próprias das faixas etárias respectivas, e pela maior distância física (+300 Km). O avô João era agricultor, em S. B. de Messines, no Algarve. Foi a primeira pessoa próxima que vi morta, literalmente, e com cujo desaparecimento tive que lidar. O fim era esperado, dada a idade e algumas maleitas menores, e a vida continuou. Sempre tive curiosidade de ter conhecido melhor o meu avô, o seu passado, a sua história, a pessoa. Contudo não foi a sua morte que me impediu de o fazer, mas simplesmente a sua velhice, tinha 79 anos quando eu nasci.
O meu avô Faustino tornou-se avô aos 52 anos, com o meu nacimento. Foi emigrante em França quando era novo, ali entre os 24 e os 30 anos. Em Portugal, depois, ganhou a vida como comerciante. Quando era miúda acompanhei-o em feiras, ia com ele distribuir sacos de farinha e afins (aos clientes), ía com ele aos armazéns para abastecer a mercearia, e ajudava na loja, nas férias do Verão, e sempre que lá íamos à terra.
O meu avô era forte, pragmático, directo, um pouco rude, bem-disposto, e tinha sempre umas tiradas engraçadas. E dizia caralhadas. Como toda a gente daquela zona, de resto (Casal dos Bernardos, Ourém). Como se fossem pontuação. Mas fazia-o de uma forma engraçada, principalmente por causa do seu ar sério, e fazia-nos rir a todos nos almoços de família. Nos últimos anos incorporei esta herança na minha vida. No momento certo, são libertadoras, divertidas, muitas vezes em simultâneo.
Quando deixei a minha área de formação da faculdade e me meti num negócio próprio fadado para me dar trabalho a mais e dinheiro a menos, não ouvi nenhum comentário negativo do meu avô. Se tinha dúvidas ou desagrados, não os manifestou. “Força para a frente” e ficava por aí. Sempre apoiou e apostou nos filhos, e fazia o mesmo com os netos, na extensão possível. O meu pai foi o primeiro da família a tirar uma licenciatura. “Liberdade com responsabilidade” foi um lema de vida que aplicou aos filhos, e que o meu pai nos aplicou a nós também. Para todos nós as noções de família e de solidariedade são basilares.
Nos últimos anos fez-me muita confusão ver o meu avô a envelhecer de forma mais acelerada e notória. Os comentários afiados continuaram sempre até ao fim, felizmente, tinha um espírito muito positivo, mas foi perdendo mobilidade e autonomia. O corpo não lhe acompanhava o espírito, que o queria sempre em movimento, a ir aqui e ali tratar disto e daquilo e ver deste negócio e daquele. O Ti Faustino “Caneco” não era homem de ficar parado, e isso custava-lhe, revoltava-o a falta de liberdade. A nós doía-nos perceber isso e não poder devolver-lhe essa liberdade que os anos e as doenças lhe tiravam.
Na madrugada do dia 3 de Junho de 2013 o meu avô morreu. Tinha 84 anos. Sou ateia, pelo que até prova em contrário, tanto quanto sei, o meu avô extinguiu-se, acabou. Não foi para outro sítio, nem tomou outra forma. Não estará a olhar por mim algures. Não nos voltaremos a encontrar um dia. Desapareceu uma parte de mim, que eu nunca terei oportunidade de conhecer melhor. Os pais, e os avós, acompanham-nos desde que nascemos, vão-nos conhecendo, e reconhecendo-se. Os filhos precisam de muitos anos para serem capazes de se reconhecerem nos pais e nos avós, e quando estes morrem, esse processo de descoberta é para sempre suspenso. Faz muita diferença no nosso processo de auto-conhecimento, aceitação e desenvolvimento pessoal sabermos de onde viémos.
Ver o meu avô Faustino morto no velório foi estranho, reconhecer o corpo, embora alterado, mas saber que ele já não estava lá, causava uma certa dissonância cognitiva. No dia seguinte, no funeral, vemo-nos forçados a aceitar que aquela pessoa já não existe, só um corpo, que se desintegrará rápida e irreversivelmente.
Um ateu pode ver poesia na morte. O nosso corpo continuará no ciclo da Natureza, as células que nos constituíram serão decompostas e consumidas por outros seres vivos. Os materiais do nosso corpo e a energia contida nos mesmos será usada por outros organismos para viverem, crescerem, reproduzirem-se. Nada se cria, nada se destrói, tudo se transforma. Nessa óptica somos todos um pouco eternos. Mas nós não somos o nosso corpo, ou pelo menos, não somos só o nosso corpo. Podemos desaparecer sem morrer. Se algo no meu cérebro se alterar posso mudar, deixar de ser quem era, por perder a memória, ou por alterar a minha personalidade, ou o meu intelecto. Eu sou o software que corre no hardware que é o meu corpo.
Detestei a cerimónia que antecedeu o enterro. Em vez de ser sobre o meu avô foi uma coisa sobre deus. Ter que ouvir não sei quantas vezes a mesma ladaínha naquela missa deu-me uma certa raiva. E quando o padre disse para lá umas cenas tipo “deus não deixar que o Faustino arda no inferno”, apeteceu-me dizer-lhe o que imaginaria o meu avô a dizer-lhe: “olha, fode-te!“. O meu avô vai para onde ele quiser, pá.
De certa forma, o meu avô continua tão vivo hoje quanto na semana passada, está vivo nas minhas memórias. A diferença é que na semana passada eu tinha a expectativa de o voltar a ver, e esta semana não tenho. Na semana passada eu sabia que mesmo que ele estivesse distante, estava com alguém, agora não está comigo nem com mais ninguém. Agora o meu medo é esquecer-me. Esquecer os contornos do seu rosto, o timbre da sua voz, as suas histórias, as nossas histórias. Esquecê-lo. Porque sei que uma pessoa quando morrer só desaparece quando morrerem todas as pessoas que a conheceram, quando desaparecer a memória dela.
Esta foi a minha primeira perda adulta. Não sabia como ia reagir. Não esperava chorar. Alternar momentos de normalidade, humor e sorrisos com momentos de nó na garganta e lágrimas. Não esperava chorar nos dias seguintes ao funeral, mas choro, todos os dias.
Não sei se choro por ele ou por mim. Dado que ele já não existe para lamentar o facto de ter deixado de existir, concluo que choro por mim. Pela minha perda. Por ter perdido algo de que eu era parte, e que era parte de mim, por ter ficado mais só no mundo, pela constatação forçada da minha própria mortalidade, e da daqueles que amo. Choro também pela perda da minha avó, do meu pai e da minha tia. Se perder um avô é mau, perder um pai será ainda pior. E nem consigo imaginar o que será perder um companheiro de 60 anos de uma vida, amigo, amante, pai dos filhos, sócio no trabalho. Olho para o Bruno e sinto um nó no peito.
O meu avô Faustino foi e será sempre uma referência fundamental para mim, uma peça incontornável na construção da minha identidade e da minha história. Espero conseguir honrar a sua memória e o seu nome.
E porque pior do que uma grande perda é não chegar a ter nada nem ninguém de grande para perder, vou tentar chorar menos por o ter perdido e sorrir mais por o ter tido.
Adeus, avô.