André Cayatte (1909-1989) graduou-se em Direito e doutorou-se em Filosofia e Letras. Em 1938, contratado por um estúdio cinematográfico para examinar um caso de plágio, interessou-se pela sétima arte e resolveu seguir carreira no cinema. Primeiro, foi roteirista; depois, diretor. Doze anos mais tarde, venceu o Leão de Ouro em Veneza com “Justice Est Faite” (“O Direito de Matar” ou Justiça Seja Feita). O filão explorado por Cayatte abordava dois dentre os temas mais valorizados em dramaturgia adulta: a busca pela verdade e o apelo à justiça. O cineasta costumava participar de seus filmes por meio de pequenas intervenções. “Justice Est Faite”, por exemplo, conta a história do julgamento de um crime com previsão de pena capital.
Sensibilizado com o clamor do réu, o juiz se atormenta em dúvidas e o condena a oito anos de reclusão. Genial como de hábito, Cayatte enriquece a história com sua visão de jurista: “Se o réu é culpado, a pena foi pouca. Se o réu é inocente, a pena foi muita. De qualquer forma, a justiça dos homens foi feita.”
Em 1963, Cayatte lançou “Le glaive et la balance” (“Dois são culpados” ou A Espada e a Balança), com destaque para Anthony Perkins, o demente de “Psicose”. Outra história de julgamento. Um garoto é sequestrado e morto. Três suspeitos são detidos. Pelo abundante relato de testemunhas é indubitável que dois deles cometeram a barbárie. O terceiro apenas teve o azar de estar nas proximidades da cena do crime. Sendo impossível precisar qual dos três é o inocente, cada um dos advogados de defesa busca convencer o júri da insuficiência de provas para a condenação de seu respectivo cliente. A estratégia resulta eficaz. Dada a altíssima possibilidade de cada suspeito ser inocente, os jurados concordam que todos poderiam ser, em tese, inocentes. São, então, absolvidos em bloco.
A exemplo da conclusão de “Justice Est Faite”, alguém poderia dizer: “Se o réu é culpado, a pena foi pouca.” Mas não houve pena alguma; não há sequer o conforto de dizer que “de qualquer forma, a justiça dos homens foi feita”. Uma turba aglomerada do lado de fora do tribunal toma conhecimento do veredicto. Comoção. Tumulto. A polícia busca proteger o trio retirando-o de camburão. O filme termina com a viatura em chamas e seus três ocupantes – os dois culpados e o inocente – carbonizados.
O desfecho da ficção acima ajuda a compreender o zelo intransigente e quase inquisitorial dos arautos do macroevolucionismo, também conhecido como Teoria Geral da Evolução ou TGE. Em seu século e meio de reinado, ela mudou profundamente a forma de o indivíduo relacionar-se consigo mesmo e com o seu semelhante. Embora parte dos evolucionistas acredite em Deus (ou algo similar), a TGE prescinde inteiramente dessa possibilidade. Ela é filha dileta do naturalismo mecanicista, um pressuposto puramente filosófico. Semelhante a Saturno, a TGE gerou, ao menos em parte, vários e destrutivos “ismos” em seu ventre: relativismo, ateísmo, hedonismo, existencialismo, nazifascismo, socialismo, entre outros. Essa Caixa de “Pandorismos” vem influenciando os pensamentos e atos de significativa parcela da humanidade.
Abramos agora um parêntese: sabemos que ninguém suporta o logro. Melhor dizendo, ninguém suporta ser logrado. A frustração e o rancor do lesado costumam ser, no mínimo, proporcionais à crença investida no engodo e à extensão final do prejuízo. Guardemos para mais adiante esse conceito: EXTENSÃO FINAL DO PREJUÍZO.
Voltando à TGE, um de seus mais agressivos arautos, Richard Dawkins, é bem conhecido do público. Não satisfeito em alçar sua teoria predileta à condição de verdade indiscutível, Dawkins ainda prega o ateísmo militante. Mais ingrato que Nero, ele convenientemente se esquece de que seu sucesso acadêmico e profissional se deve a uma das maiores contribuições da religião que ele hoje achincalha – a ciência moderna. Coerente com essa deficiência, o etólogo de Oxford costuma usar a técnica mais comum dos chicaneiros de porta de cadeia: a negativa de autoria. A inexistência de Deus, argumento central de um de seus maiores sucessos, Deus, um Delírio, pode ser facilmente desmontada por qualquer estudante medíocre de filosofia. Salta aos olhos a penúria de suas principais premissas (coincidentemente elas se encontram na página 171 da edição brasileira). As falácias de Deus, um Delírio são tão evidentes, tão explícitas que não chegam a caracterizar um logro. Dawkins não recorre à insuficiência intelectual de seus leitores. Não precisa. Ele se vale de coisa pior: a artimanha da cumplicidade. Intencionalmente, o escritor cativa a simpatia do leitor à moda dos fascistas: adula-o, aliena-o ao transmutar seus defeitos em qualidades, solidariza-se até criarem um vínculo de permissividade e autocondescendência. Estratégia do Diabo: a delinquência intelectual e a pilantragem moral se retroalimentam mutuamente.
Em contraste diametral com o bestialógico do professor queniano, o Cristianismo prega a compaixão, a pureza, a caridade e a temperança. Sem concessões. Sem trapaças. Sem subterfúgios. Através de uma primologia e uma escatalogia bem definidas, situa a humanidade em geral e o indivíduo em particular em um contexto pleno de significado e propósito. Oferece sentido para o passado, serenidade para o presente e anelo no futuro. Então vem Dawkins-todo-cheio-de-graça e afixa em ônibus a sua pièce de resistance: “Deus provavelmente não existe. Agora pare de se preocupar e vá aproveitar a vida.” Dissequemos esta proposição: “Deus provavelmente não existe.”
Dawkins convida o leitor a brincar de assustar os outros praticando roleta-russa apostando que o pente da arma PROVAVELMENTE esteja vazio. Um ônibus é pequeno para a tradução da frase: “Eu creio com toda convicção que Deus não existe, porém, não tenho como prová-lo. Se Ele não existir, maravilha. Se existir, lembre-se: eu nunca lhe dei certeza do contrário. Logo, a proposta é minha – mas o risco é seu.” É como um narcotraficante aliciando um adolescente: “Meu ‘bagulho’ PROVAVELMENTE não irá viciá-lo. A polícia PROVAVELMENTE não irá prendê-lo. Seus pais PROVAVELMENTE não irão interná-lo.” Além de covarde, o propósito da assertiva é escandalosamente amoral.
“Agora pare de se preocupar.” Nesse caso, o advérbio “agora” tem a mesma função da conjunção conclusiva “portanto”. Apliquemos os termos corretos: “Em decorrência da provável não-existência de Deus, você deve parar de se preocupar.” Essa frase, que será complementada pela próxima, tomografa as vísceras do nosso conselheiro ateu. Ao tentar ser matreiro, Dawkins acaba sendo apenas tosco. Para justificar o ateísmo, vale-se de clichês fossilizados, como os desvios lamentáveis do Cristianismo. Propositadamente, ele releva o principal ativo moral da cristandade: uma lista incomparável de princípio e virtudes – os quais moldaram o Ocidente em seu melhor. Tais virtudes, conforme anunciado por Cristo, dividem automaticamente as pessoas entre as que se “preocupam” e as que não se “preocupam” com a questão de Deus:
“Deus enviou o Seu Filho ao mundo, não para que julgasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por Ele. Quem crê nEle não é julgado; mas quem não crê, já está julgado; porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus. E o julgamento é este: A luz veio ao mundo, e os homens amaram antes as trevas que a luz, porque as suas obras eram más. Porque todo aquele que faz o mal aborrece a luz, e não vem para a luz, para que as suas obras não sejam reprovadas. Mas quem pratica a verdade vem para a luz, a fim de que seja manifesto que as suas obras são feitas em Deus” (João 3:17-21).
Eis a chave para decifrar o comercial moleque de Dawkins: quem “faz o mal aborrece a luz, e não vem para a luz”. Para esses, Deus é uma fonte não apenas de preocupação mas também de angústias e culpas. Ou seja, essas pessoas têm plena consciência da injustificabilidade moral de seus atos e desejos. Entendem que seus intentos são maus e que terão que arcar com suas consequências. São esses a quem Dawkins se dirige: “A cosmovisão que vos ofereço não comporta Deus; logo, não existem bem, mal, trevas ou luz. Aleluia, irmãos ateus? Aleluia!” Assim, a execração da religião cristã como proposta por esse senhor destina-se tão-somente a cauterizar a consciência moral dos que ainda a têm. Essa é a boa-nova do evangelho ateu afixada nos ônibus; esse é o wishfull thinking dos malfeitores em potencial.
“Vá aproveitar a vida.” Chegamos ao ponto em que o nosso ateu adula o leitor apelando para as suas pulsões. Ora, o motivo de preocupação da pessoa visada por Dawkins é a impossibilidade de conciliar sua forma de “aproveitar a vida” com a existência de Deus. Não havendo Este, libera-se aquela (sempre lembrando que isso não passa de uma aposta temerária). Observe-se também que no oba-oba dawkinsiano não há limites explícitos ou implícitos para o tal “aproveitar a vida”. O Ministério da Saúde de Richard Dawkins não recomenda sequer o nosso conhecido “Aprecie com moderação”. “Aproveitar”, no caso, significa, dentro das limitações temporais e materiais, desfrutar de tudo o que nos possa proporcionar prazer. Vejamos o cardápio:
Intemperança, preguiça, drogas lícitas ou ilícitas? – aproveite. Promiscuidade, pedofilia, bestialismo ou sadomasoquismo? – aproveite. Irresponsabilidade familiar, social, ambiental ou política? – aproveite. Eu disse “dentro das limitações”? Perdoem minha crença ingênua na bondade humana. Coisa de crente. Se o prazer se presume irrestrito, irrestritas podem ser as formas de se alcançá-lo. O sequestro e morte do menino da ficção de Cayatte resultam do método destinado a obter os recursos que permitam aos dois culpados “aproveitar a vida”. A vingança coletiva pelo linchamento tenebroso dos culpados (e do inocente junto) também.
O Inferno de Dostoievski (“Se Deus não existe tudo é permitido”) passa a ser o Paraíso do enfant terrible, e essa utopia lhe é tão cara que ele não admite sequer o sucedâneo pós-ateísta proposto por John Le Carré (“Se Deus não existe tudo é permitido. Inclusive agir como se Deus existisse”). Eis o fruto proibido da sedução cínica de Richard Dawkins. Não admira que muitos evolucionistas – teístas, sobretudo – demonstrem justa preocupação com o seu convite aberto para uma orgia relativista.
“Deus provavelmente não existe.” Mas e se Ele de fato existir? E se fossem desnudadas as impossibilidades epistêmicas da TGE, hoje a maior aliada do ateísmo? E se fosse justificada a crença em um Projetista – o zeloso Deus cristão? Nesse caso, como ficaria o saldo espiritual dos que, seguindo o conselho do popstar da Nomenklatura Científica, “pararam de se preocupar” e resolveram “aproveitar a vida”? A conta da fatura revelaria a EXTENSÃO FINAL DO PREJUÍZO. Restaria ao clero de Darwin (os dois terços culpados e terço inocente) tentar se proteger dentro de um camburão apertado, cercado por uma turba de logrados portando tochas.
(Marco Dourado, Curitiba, PR)