Na
Folha de S. Paulo do dia 16, o articulista Hélio Schwartsman publicou o texto "Deus e o Jardim das Delícias". O leitor Marco Dourado enviou um e-mail para o bacharel em filosofia, cujo conteúdo publico abaixo, com autorização:
Caro Hélio,
Em sua última coluna na
Folha, “Deus e o Jardim das Delícias”, você se declarou um “ímpio contumaz”.
Data venia, prezado. Contumaz, talvez; ímpio, nem por brincadeira. Você obviamente aplicou contra si um juízo apocalíptico – acredito que por galhofa, a julgar pelo encômio moral que você se dedicou há alguns anos. Hélio, não se superestime. É preciso muito suor, muita hora-extra – em suma, um esforço literalmente dos diabos para se atingir o
status da impiedade. Por algumas de suas colunas na Pensata, você, quando muito, mereceria do seu provável ascendente, o rei Davi, a pecha de néscio ("Diz o néscio no seu coração: Não há Deus. Os homens têm-se corrompido, fazem-se abomináveis em suas obras; não há quem faça o bem." Salmo 14:1).
Mas eu falava de esforços. O ímpio é, antes de tudo, diligente. Abnegado. Não sabe o que é desídia, ao menos a desídia intelectual. Logo, para juntar-se ao conselho dos ímpios, você deveria demonstrar essa diligência ímpia ao longo de seus textos. Parece-me que tal não ocorre. Permita-me desenvolver o raciocínio.
Em tempos idos, mais precisamente 11/1/2007, você escreveu o artigo “Santa Ilusão” a respeito do livro
Deus, Um Delírio, de Richard Dawkins. À época, não me dispus a ler o “delicioso libelo”, como então você o definiu. Apeteceu-me mais o breve, elegante e bem conduzido
Deus Existe, que conta a decisão aristotélica do filósofo Antony Flew de abraçar o teísmo após setenta anos de ateísmo. Por que “aristotélica”? Porque Flew, desde a adolescência, se dispôs a seguir o argumento até aonde ele o levasse. E o livro é um
road movie desse trajeto.
Contudo, mesmo não conseguindo Dawkins me induzir à copromancia (falar nisso, por onde andará o Paulo Betti?), ainda assim confiei em seu juízo quando você se dispôs a resenhar o fecaloma editorial do renomado zoólogo. Ao menos quanto à pertinência da argumentação do bufo sacrílego, julguei que você a dissecaria segundo seus critérios de filósofo. Daí, por decorrência, imaginei que, malgrado as grosserias levianas do autor, haveria algum mérito lógico nas ideias ali defendidas. Ledo e ivo engano. Hoje pela manhã me repassaram um vídeo em que o filósofo, teólogo e historiador do Novo Testamento, William Lane Craig, disseca o argumento considerado central pelo próprio Dawkins em seu “delicioso libelo”. Repasso-o, meio que de memória.
Para começar, a edição brasileira do
Delírio, sem querer, comete uma graça: o argumento central do livro começa à página 1-7-1.
Craig argumenta que se o cerne do livro de Dawkins falhar, como aquele mesmo propôs, suas conclusões a respeito da inexistência de Deus se esfacelam.
Citemos as palavras do livro:
1) Um dos grandes desafios para o intelecto humano, ao longo dos séculos, vem sendo explicar de onde vem a aparência complexa e improvável de
design no Universo.
2) A tentação natural é atribuir a aparência de
design a um
design verdadeiro.
3) A tentação é falsa, porque a hipótese de que haja um propósito suscita imediatamente o problema maior sobre quem projetou o projetista.
4) O guindaste mais engenhoso e poderoso descoberto até agora é a evolução darwiniana, pela seleção natural.
5) Não temos ainda um guindaste equivalente para a Física.
6) Não devemos perder a esperança de que surja um guindaste melhor na Física, algo tão poderoso quanto o darwinismo é para a Biologia.
Conclusão: "Deus, quase com certeza, não existe."
Salta aos olhos que a conclusão brota do vento. Qual
theo ex-machina, ela desce de paraquedas; não resulta de nenhuma das seis premissas anteriores. Não é preciso ser um estudante de filosofia para perceber que se trata de uma falácia
non sequitur (ou como você bem traduziu uma vez: besteira da grossa).
Falácia permanece falácia mesmo quando todas as suas premissas se mostram verdadeiras. Elas são? Vejamos.
Poderíamos, sob a batuta de Quine, apelar para a generosidade (embora quando se trate de Dawkins eu ache melhor pautar-me por Goya – aquele que pintou um quadro de nome “o sono da razão gera monstros”). Nesse caso, diríamos não se tratar de premissas mas de um conjunto de afirmações cuja consecução um tanto saltitante resultaria na conclusão da inexistência de Deus.
Pergunta a um filósofo: “Existe alguma regra lógica que permita, de maneira válida, chegar à conclusão de Dawkins partindo de suas seis 'afirmações'?”
Parece que nem blindada pela caridade a conclusão se sustenta. No máximo, considerando-se verdadeiras cada uma das seis afirmações, não se poderia afirmar a existência divina com base no “aparente”
design do Universo. Daí a negá-la resulta que o eminente queniano atolou-se até o pescoço no monturo de seus preconceitos.
Melhor, a “aparente” complexidade do Universo não confirma a existência de Deus – mas também não a inviabiliza. Na verdade, essa “suposta” impressão de
design mais apoia que desmente a existência de Deus. O crente pode, a partir dela, crer justificadamente em Deus – ainda que dispense argumentos cosmológicos, ontológicos, morais ou, por que não, desconsidere qualquer argumento. Ele pode basear-se talvez em experiências religiosas estritamente pessoais. Até mesmo, quem sabe, na própria Revelação Divina. Não seria incoerente; um dos pilares cristãos vem justamente de a fé ser um dom divino, imprescindível para o perdão dos pecados e a salvação da alma.
Portanto, a rejeição para o argumento do
design para a existência de Deus de modo algum implica que Ele não exista. Nem sequer invalida essa crença. Muitos dos cristãos que conheço rejeitam diversos argumentos em favor da existência de Deus (alguns rejeitam até o
design) e isso não faz com que levem a sério o ateísmo ou o agnosticismo.
Voltando aos seis passos de Dawkins, percebe-se que alguns deles são flagrantemente falsos:
Passos ou premissas 5 e 6:
Neles, Dawkins se refere ao improvável, quiçá miraculoso, ajuste fino para que as condições iniciais do Universo viessem a propiciar o surgimento e desenvolvimento da vida. Tais condições são tão complexas e de tal forma excludentes a alternativas que muitos cientistas se assombram a ponto de chamarem-nas de “sintonia fina do Universo para a vida”.
Pois não é que Dawkins admite justamente isso no argumento 6? Não há equivalente à Teoria da Evolução para explicar essa sintonia. Logo, mesmo se o neodarwinismo fosse bem sucedido (e não é) para explicar a origem da vida mais a sua complexidade em planos estanques de reinos, filos, classes e ordens, não há teoria que explique o improbabilíssimo emaranhado de combinações pró-vida decorrentes do tal Big Bang.
Desse modo, o famigerado livro de Richard Dawkins, tão incensado, tão badalado, possui em seu miolo um buraco impossível de ser preenchido apenas com entulhos falaciosos.
Para cobrir tal lacuna, ele recorre ao velho tapa-buracos do otimismo: “Não devemos perder a esperança de que surja um guindaste melhor na Física, algo tão poderoso quanto o darwinismo é para a Biologia.” Obliquamente, o evangelho dawkinsiano sequestra uma metáfora de Richard Goldschmidt: “Eis que o monstro esperançoso se fez cãs e foi esvoaçá-las no campus de Oxford.”
Mas há como o nosso etólogo travesso se superar. Tomemos o passo 3 de seu argumento:
“A tentação é falsa, porque a hipótese de que haja um propósito suscita imediatamente o problema maior sobre quem projetou o projetista.”
Quer dizer: não há justificativa para inferir
design a partir da complexidade do Universo porque o problema seria apenas deslocado para mais adiante.
Primeiro: para que uma explicação seja satisfatória não há necessidade da explicação da explicação. Isso é elementar em filosofia da ciência. Exemplo: se em alguma das luas de Júpiter forem recolhidos maquinários de lavra desconhecida não seria justificável negar-lhes origem alienígena apenas por não se conhecer os seres extraterrenos que os possam ter produzido – sobretudo não havendo a mínima ideia de como chegaram àquele astro ou mesmo quem eram (Aquiles, Brás Cubas, Papai Noel?).
Segundo: exigir uma explicação anterior leva a uma regressão infinita: qual a explicação da explicação? Qual a explicação da explicação da explicação? E por aí segue,
ad eternum... Pode até parecer um bom recurso para avacalhar uma infindável linhagem teogônica. Acontece que pau que dá em Pinto dá em Jacinto: de igual modo, nenhuma explicação científica seria definitiva e a ciência colapsaria. Esse é o lado Bin Laden de Dawkins: para acabar com Deus ele não titubeia em pôr em risco as torres gêmeas da ciência. Por que tamanha temeridade? Para não conceder ao leitor que a explicação do “aparente” aspecto de projeto do Universo não implica em descartar o projetista.
Terceiro: em outra parte do texto, Dawkins defende que a explicação da origem do Universo, no caso, o projetista, precisa ser pelo menos tão complexa quanto a coisa a ser explicada. Ora, isso em nada avançaria a explicação. Mais: Dawkins não parece ter uma relação epistêmica saudável com o critério de simplicidade para ponderação de hipóteses. Particularmente, não considero esse critério nem descartável nem soberano. Poderíamos citar outros critérios como o “poder explanatório”, o “escopo explanatório”, o grau “ad hoc” naturalidade/artificialidade, a plausibilidade, etc. Todos eles devem ser considerados balanceadamente ao se comparar hipóteses.
Quarto: um projetista não precisa ser tão ou mais complexo que o Universo projetado por ele. Sendo incorpórea, a mente divina se revelaria consideravelmente simples; até onde podemos supor, ela não possui secções, não é multicomposta. Incorpórea, frisemos, ela pode tranquilamente ser monolítica e ainda possuir as propriedades características de uma mente: autoconsciência, racionalidade e vontade. Isso é muito simples, ao contrário da complexidade de um universo contingente formado de quantidades de matéria e energia balizadas por inúmeras constantes e propriedades, além de uma inexplicável aparência de
design. Comparados, a mente divina é inegavelmente mais simples que o Universo. Sem contar que a simplicidade de tal mente não a impede de formular ideias complexas, até imperscrutáveis para a nossa compreensão. Para ela, o cálculo infinitesimal, por exemplo, poderia ser tão trivial quanto somar 2 com 2. Dawkins, propositadamente ou não, desconsidera que a complexidade de uma ideia não é incompatível com a simplicidade da mente que a formulou.
Por fim, a verdadeira questão: Por que um biólogo doutorado em uma das mais renomadas universidades do planeta comete uma falácia tão bisonha? Pior: Por que tamanha falácia não é desmascarada pela maioria dos que se arrogam a faculdade de bem pensar?
Tenho um palpite, mas fica para a próxima.