novembro 23, 2024

Coração Impaciente - Stefan Zweig

Título original: Ungeduld des Herzens
Ano da edição original: 1939
Autor: Stefan Zweig
Tradução: Maria Henriques Osswald, F.I.L.
Editora: Livraria Civilização - Editora

"Stefan Zweig, mestre em psicologia, artista humaníssimo que constrói figuras vivas, palpitantes - obra de carne e nervos - enriqueceu a sua obra notabilíssima com um romance profundamente humano, em cujas páginas palpita a tragédia inigualável de uma rapariga riquíssima, que pode com o seu dinheiro comprar quanto a vida tem de belo para vender, mas não a perfeição física, pois é irremediavelmente uma pobre aleijada... nem o amor, pelo menos o amor-paixão tal como a sua alma vibrante ambiciona.
Só pode ser amada por caridade, pobre farrapo humano, cercado de fausto, só a mentira a rodeia, a mentira piedosa de uns, a mentira aduladora de outros, mas sempre como uma maldição, só a mentira a cerca: a mentira, a mentira...
Os caracteres deste romance são vincados com rara mestria. O homem que se deixa arrastar, sugestionar pela piedade e pela ternura de um pai amantíssimo que ambicionava dar à sua filha querida a felicidade, é fortemente traçado neste romance apaixonante e tão rico de psicologia humana.
Zweig, neste livro, ergue ainda mais alto se é possível, o seu nome de artista."

Um soldado que descobre o poder da caridade e começa a sentir-se invencível na sua bondade, vai descobrir da pior forma que as pessoas não precisam de caridade, precisam de amor, verdadeiro e genuíno, precisam de amizade desinteressada e honesta.
Um pai, rico, que tudo pode comprar, vive angustiado com a doença incapacitante da sua única e amada filha. A menina, quase uma mulher, foi perdendo, ao longo dos anos a capacidade de andar. Depende de uma cadeira de rodas e de muletas para se deslocar. É doce e tirana, compreensiva e cruel, tudo ao mesmo tempo. Generosa e egoísta, vive presa na dualidade entre o que é e consegue fazer, e aquilo que sabe que poderia ser e fazer se a doença não lhe tivesse batido à porta.

É na dinâmica que se cria entre o soldado solitário, que descobre a caridade, a menina entrevada, sedenta de amor e um pai, meio louco, que nada consegue fazer para que a filha seja feliz, que a trama de Coração Impaciente se vai desenrolando. 

Coração Impaciente é, entre outras coisas, uma história sobre piedade e sobre o facto de a caridade ter, por vezes, efeitos perversos para quem é alvo dela.
Mesmo quando achamos que estamos a fazer bem, não podemos descurar o outro e a forma como o outro está a receber aquilo que temos para oferecer. 

Enquanto fala de incapacidade física, de doenças desconhecidas e incuráveis fala, na verdade, de inseguranças e da enorme incapacidade que temos de viver confrontados com a imperfeição. Temos dificuldade em vermos o lado positivo de situações menos boas.

Coração Impaciente, é sobre desequilíbrio mental, violência psicológica, sacrifício, por vezes é sobre  amor, esperança e boa-vontade mas, essencialmente, acaba por ser sobre desespero, confusão e arrependimento. É um livro pesado? Nada disso, lê-se muito bem. 

Gosto muito da escrita de Stefan Zweig. Gosto das personagens que cria, das suas personalidades, complexas e pouco previsíveis. Consegue retratar muito bem como as relações humanas são complexas e frágeis. 

Gostei e só posso recomendar.

Boas leituras!


Excerto (pág.158):
"«Não sei e nunca saberei tudo o que prometi e afiancei a Kekesfalva nesse banco dos pobres. Assim como as minhas palavras embriagavam o seu ouvido ansioso, também a felicidade com que escutava me embriagava, e sentia o prazer de lhe prometer cada vez mais. Nenhum de nós  reparava nos relâmpagos que flamejavam em volta, nenhum de nós  ouvia o estalar ameaçador do trovão. Permanecíamos unidos; um falava, outro escutava e eu afirmava-lhe convicto, honestamente convicto: - «Sim, ela há-de sarar, muito breve, há-de sarar em absoluto». E de novo ele balbuciava: «Ah! Deus seja louvado!» Como era maravilhoso, contagioso, este êxtase, este delírio! Quem sabe quanto tempo ali teríamos permanecido sentados, se, de repente, não sobreviesse aquela rajada decisiva que sempre vem na vanguarda de uma tempestade, como que a abrir-lhe o caminho?! Curvavam-se as árvores com tanta violência, que os troncos estalavam, vergavam; dos castanheiros, sacudidos furiosamente, caía forte saraivada de projécteis e quase nos sufocou uma gigantesca nuvem de pó." 

novembro 04, 2024

[Ebook] Luanda, Lisboa, Paraíso - Djaimilia Pereira de Almeida

Título: Luanda, Lisboa, Paraíso
Ano da edição original: 2018
Autor: Djaimilia Pereira de Almeida
Editora: ´Companhia das Letras

"Chegados a Lisboa, Cartola e Aquiles descobrem-se pai e filho na desventura. Até que num vale emoldurado por um pinhal, nas margens da cidade mil vezes sonhada pelo velho Cartola, encontram abrigo e fazem um amigo. Será esta amizade capaz de os salvar?

«Se o entendimento entre duas almas não muda o mundo, nenhuma ínfima parte do mundo é exactamente a mesma depois de duas almas se entenderem.»

Luanda, Lisboa, Paraíso, o segundo romance de Djaimilia Pereira de Almeida, é o balanço tocante de três vidas obscuras, em que esperança e pessimismo, desperdício e redenção, surgem lado a lado."

Cartola e Aquiles, pai e filho, partem de Luanda para Lisboa para que Aquiles seja operado ao calcanhar que nasceu torto.
Chegados a Lisboa, o pai Cartola, apesar de achar que tinha tudo planeado, é surpreendido pela dimensão da cidade e pela indiferença das pessoas. Sente-se perdido e desorientado.
Depois a operação acaba por não correr tão bem como esperavam, o tempo vai passando e o regresso a Luanda parece cada vez mais distante.

Em Luanda deixaram Glória (mulher e mãe), doente, e Justina (filha e irmã). Em Luanda, Cartola era completamente dedicado a Glória. Em Lisboa sente pouca vontade de regressar a casa e, não é só por vergonha de as coisas não terem corrido como planeado. A verdade é que, apesar das dificuldades que sente em Lisboa não quer regressar para Glória e a sua doença.
 
Aquiles, adolescente, vê-se preso a uma deficiência que o atormenta, numa cidade que não conhece e que estranha, e a ter de cuidar do pai que parece estar, lentamente, a enlouquecer. Sente vergonha de Cartola por ser tão "estrangeiro" em Lisboa e, sente pena do pai.

É uma história triste que é, certamente, a história de muitos dos que chegam a Lisboa, sem ninguém que os receba, e que os ajude, acabam por ser engolidos pela cidade, empurrados para guetos, condenados à mera sobrevivência.

Gostei bastante da escrita, da história e das personagens e por isso só posso recomendar.
 
Voltarei, certamente a Djaimilia Pereira da Almeida

Boas leituras! 


Excerto:
"O rapaz sorriu. O pai pareceu-lhe jovem. Aquela era a sua segunda juventude. Continuava com a ilusão de que podia começar do princípio. A chuvada dera-lhe uma esperança pasmada, infantil. Não podia impedi-lo de se atirar nos braços de Lisboa e de se magoar. Mas ninguém tinha ensinado a Aquiles como se lidava com um adulto que recomeça, o que fazer diante dele. Ao olhar para a cara do pai, os olhos de Cartola atingiram o filho com uma ingenuidade que o assustou. Parecia ter regredido décadas e ser agora mais novo do que ele. Um horizonte reabria-se para Cartola numa imensidão ponte Aquiles não cabia. O homem que tinha à sua frente não era simplesmente um velho, como começara por lhe parecer no avião, mas um jovem em início de vida, um velho doente, nascido de novo. Aquiles abraçou o pai para o aquecer. Tremia de medo. «Poça, faz frio em Lisboa, Papá.» O pai, ensopado, estava quente por dentro. Tinha os lábios secos contornados num sorriso inocente. Quase dava para ver na cara dele o menino que um dia tinha sido. Aquiles soube que estava sozinho. Ele era o coxo e a bengala. "

novembro 02, 2024

Manhã e Noite - Jon Fosse

Título original: Morgon og Kveld
Ano da edição original: 2000
Autor: Jon Fosse
Tradução: Manuel Alberto Vieira
Editora: Cavalo de Ferro

"Um menino está prestes a nascer - chamar-se-á Johannes como o avô e será pescador como o pai. Uma vida boa, é esse o desejo de quem o traz ao mundo, embora este seja um mundo duro, ruim e cruel. Um homem, velho e sozinho, morre - chama-se Johannes e foi pescador.
É o seu melhor amigo que o vem buscar rumo a esse destino onde não há corpos nem palavras, apenas tudo aquilo que se ama. Antes do regresso definitivo ao nada, Johannes revisita o museu da sua vida, longa, simples e quotidiana, confrontando-se paulatinamente com a morte num constante entrelaçamento de real e alucinação, passado e presente.
Manhã e Noite é um romance sobre o maravilhoso sonho que é viver e a aceitação do ciclo natural das coisas. Numa linguagem poética e elíptica, inovadora e despojada, Jon Fosse condensa toda uma existência em dois momentos-chave, urdindo uma reflexão encantatória sobre o significado da vida, Deus e a morte."

É um pequeno livro, em tamanho, mas que diz muito. A escrita embala, tem uma cadência que nos leva a compreender o que sentem as personagens. Sentimos a confusão, a alegria, o medo, o entusiasmo. Parece que estamos dentro da cabeça deles ou que aqueles pensamentos podem até ser nossos. 

Pensei que fosse ter dificuldade em acompanhar a história, porque a forma como o livro está escrito, os parágrafos, as repetições, podiam ter sido motivo para me perder mas a verdade é que a linguagem é tão simples, como é Johannes e todos os que fizeram parte da sua vida e, da sua morte e, por isso, a história quase que baila dentro de nós
E é disto que se trata, do nascimento, da vida e da morte de Johannes. Da naturalidade e inevitabilidade que é subjacente a tudo isto. Nasce-se, vive-se, o melhor que conseguirmos e, depois morremos. Deixamos para trás as pessoas que nos preencheram a vida, que amámos, com quem rimos e chorámos. Encontramos os que partiram antes de nós e que, agora nos ajudam para que esta transição seja o mais pacífica possível, sem dor, confusão, medo ou revolta.

A parte final, em que se insinua uma espécie de vida depois da morte, uma visão mais religiosa da passagem para uma outra dimensão, porque me diz pouco, acabou por me estragar um pouco o resto do livro. Nada contra, até porque nunca se menciona Deus ou o paraíso ou algo semelhante mas, parece que me arrancou à pura ficção e me levou para os bancos da igreja. :)

Gostei desta primeira experiência com Jon Fosse. Gostei especialmente da linguagem e da forma como está escrito. Voltarei a ele, de certeza.

Boas leituras!

Excerto (pág. 28):

"(...) por aquela altura já deveria ter-se levantado, pensou, não podia ficar mais tempo deitado, e além disso ansiava por um cigarro, que bem me saberia um cigarro agora, pensa Johannes, e faz frio no quarto dele, na divisão principal também, mas na cozinha a lenha do figão esteve a arder toda a noite, de maneira que devia ir até lá, enrolar um cigarro, pôr a cafeteira ao lume e depois preparar qualquer coisa para comer, uma fatia de pão com queijo caramelizado, mais um dia igual a todos os outros dias, pensa Johannes. Mas e depois? O que faria ele depois? Talvez caminhar para oeste em direção à Enseada, para ver como estão as coisas por lá? e se o tempo não estiver especialmente mau talvez possa fazer-se à água, pescar um pouco, sim, talvez não seja má ideia, pensa Johannes, e logo lhe ocorre que acaba de pensar o que pensa todas as manhãs, todas as manhãs sem exceção tem exatamente o mesmo pensamento, pensa Johannes, mas que outro pensamento pode ele ter? que mais pode ele fazer senão caminhar para oeste em direção à Enseada?, pensa Johannes, e pensa também que não há razão para se sentir tão acabrunhado, não é assim tão terrível, ainda tem um tecto sobre a cabeça, calor bastante com se aquecer, e tem filhos, são bons filhos, os que ele tem, e a filha mais nova, Signe, não vive muito longe e visita-o quase todos os dias, é verdade, (...)"

outubro 26, 2024

[Ebook] Ecologia - Joana Bértholo

Título: Ecologia
Ano da edição original: 2018
Autor: Joana Bértholo
Editora: Editorial Caminho

"Numa sociedade que se fundiu com o mercado - tudo se compra, tudo se vende - começamos a pagar pelas palavras.

A estranheza inicial dá lugar ao entusiasmo.
Afinal, como é que falar podia permanecer gratuito? Há seis mil idiomas no mundo.
Seis mil formas diferentes de dizer ecologia, e tão pouca ecologia.
Seis mil formas diferentes de dizer paz, e tão pouca paz. 
Seis mil formas diferentes de dizer juntos, e cada um por si."

E se a linguagem e as palavras passassem a ser pagas? Primeiro são só algumas palavras e as pessoas, de uma forma geral, não se opõem. Depois a lista de palavras que são pagas começa a crescer e comunicar começa a ser, quase um luxo. 
No início parece que é para que algumas palavras ou idiomas não morram, para que o vocabulário permaneça rico. É para estudar a linguagem, perceber o que nos distingue como seres humanos. No fim, acaba por ser, como é natural, uma questão de poder e dinheiro. 

Gostei da escrita, muito fluída e oral. Gostei da história e embora não seja um livro muito fácil de ler, há imensas coisas que fogem ao meu entendimento, a verdade é que se lê muito bem.

Não sendo um livro fácil de ler, também não é um livro fácil de comentar. Tem camadas e mais camadas. :)

Gostei muito e recomendo. Joana Bértholo é para manter debaixo de olho.

Boas leituras! 

Excerto:
"O anúncio foi feito esta manhã, em Dublin, na sede da multinacional Gerez: As palavras BERÇO, ENTRETANTO e INGREDIENTE estão entre as primeiras cinquenta palavras sujeitas ao período de testes do Plano de Revalorização da Linguagem. A Gerez, empresa mediática graças à recente polémica em torno da privatização do genoma humano, é também célebre pela sua directora-executiva, Darla Walsh, que esteve mais de três horas a responder à imprensa internacional. O tema que suscitou mais perguntas foi a taxação dos termos. Walsh explicou: «Cada palavra tem um sentido e um peso diferentes, e por isso o valor de cada uma delas varia, como as pessoas vão ter oportunidade de experienciar nos próximos meses. O objectivo é estarmos todos mais conscientes do que dizemos, mais atentos ao modo como falamos. Tenho a certeza de que, a partir de agora, as pessoas vão deixar de falar por falar. Isso vai necessariamente enriquecer-nos, às nossas relações e à nossa vida enquanto comunidade.»
A apresentação do projecto incluiu simuladores que os próprios jornalistas puderam testar, e assim compreender o dispositivo que permitirá, doravante, a taxação do que é dito. Durante a conferência de imprensa, Walsh partilhou as motivações pessoais para este ambicioso projecto: «Falo onze idiomas e sou fascinada por línguas. Quero encontrar a sua raiz universal, perceber como tudo começou, como funciona... Com a tecnologia disponível, isso é possível. Estamos a poucos passos de conseguir computar todas as emissões humanas e, quando o fizermos, vamos poder aprender coisas inimagináveis. Uma nova era, uma transição só comparável à da roda, do fogo, ou à introdução da linguagem escrita.»
Eloquente e rigorosa, Walsh falou sobre como a linguagem faz de nós humanos, a ligação entre as nossas identidades culturais e os diferentes idiomas, e o quão pouco sabemos sobre as suas origens. Referiu-se também à actual desvalorização da palavra, a uma cultura de opinião em que já não se distingue um facto de uma «pós-verdade», na qual «o jornalismo, a literatura e as relações interpessoais perderam o norte». Reforçou a ideia de que «somos gratuitos a falar» e anunciou como missão da Gerez e do seu Plano de Revalorização da Linguagem rectificar isso.
Segundo nos foi possível apurar, às listas internacionais, ditadas pela Gerez/CCM, cada Mercado irá ter autonomia para emitir as suas próprias listas, consoante o idioma e a cultura. O Mercado do Português©, por exemplo, revalorizará, na Primeira Vaga, as palavras «peúga» e «cimbalino», enquanto o Mercado do Português do Brasil© reconhecerá termos como «grampeador» e «bunda»." 

outubro 06, 2024

Da Meia-Noite às Seis - Patrícia Reis

Título: Da Meia-Noite às Seis
Ano da edição original: 2021
Autor: Patrícia Reis
Editora: Edições D. Quixote

"Num mundo assolado ela instabilidade, a pergunta da canção de Caetano Veloso mantém-se: «Existimos: a que será que se destina?»

Escrita num registo de intimidade que nos envolve, esta narrativa segue a vida, presente e passada, de personagens que se cruzam e cujas opções de vida reflectem o que é prioritário em tempos de pandemia.

Da Meia-Noite às Seis é o regresso de Patrícia Reis ao espaço literário que define a singularidade, a subtileza e a sabedoria da sua voz: o território da complexidade das relações humanas e da busca de identidade."

Da Meia-Noite às Seis, passa-se durante a pandemia de Covid-19, numa realidade mais ou menos fiel ao que todos nós vivemos, embora no livro pareça que o confinamento terá sido mais prolongado, e é nesse contexto que conhecemos a Susana e o António Ribeiro de Andrade, o Rui Vieira, o Miguel Noronha e a Laura.

Susana trabalha na rádio, à qual regressa, após um período de luto pela morte do marido que morreu com covid. Regressa para o horário da meia-noite às seis, para o qual se voluntariou, porque não se sente capaz de enfrentar os dias, a luz e o sol. Descobre no horário da noite uma forma de fazer o luto pelo amor da sua vida e pelo tanto que ficou por viver. Vamos conhecendo a Susana e, através dela António, o marido que morreu cedo demais e a deixou perdida num mundo cada vez mais estranho.

Rui Vieira, também trabalha na rádio. A mesma onde Susana trabalha mas, nunca se tinham cruzado porque, ela trabalhava de dia e ele fazia parte da equipa da noite. O Rui teve um acidente grave, há uns anos, que o deixou com algumas sequelas, sendo que a mais visível é nunca mais ter dito uma palavra. Ficou mudo e, por isso, passou a escrever as notícias para que outros locutores as leiam na rádio. Foi também, na sequência do acidente, que toda a sua família ficou a saber que Rui é gay e, desde então nunca mais falou com os pais.
É no turno da meia-noite às seis que Rui e Susana  se conhecem, trocam emails, e é assim que dão início a uma bonita amizade que os vai ajudar a sobreviver e a superarem as suas tristezas.

Miguel Noronha, quando o conhecemos, namora com o Rui. É um homem do norte, que pertence a uma família com algum nome, é ambicioso e um pouco frio e distante nas relações amorosas. Tem alguma dificuldade em assumir compromissos. Nem ele nem Rui percebem muito bem que tipo de relação têm e o que pretendem um do outro.

Laura é a irmã do Rui, a única que continua presente na sua vida, depois de os pais se terem afastado do irmão por causa da sua homossexualidade. Laura é aquilo que todos esperam dela, sorridente, disponível, boa filha, casada com alguém que os pais aprovam e com dois filhos. Avessa ao confronto e com medo de desiludir os pais, vive presa a um casamento infeliz. Nunca abandonou o irmão que, juntamente com Miguel Noronha, ajudou a recuperar após o acidente.

Patrícia Reis é uma das favoritas, embora, como leitora, reconheça que nem tudo o que escreve é igualmente inspirado. No entanto, gosto muito da forma como escreve e das histórias que nos dá a conhecer. 
No caso deste Da Meia-Noite às Seis, acho que é dos que gostei. É um livro pequeno, que se lê muito bem e é fácil gostarmos das personagens.
Ainda não sei se é demasiado cedo para lermos ficção que tem como pano de fundo a realidade vivida durante a pandemia. Confesso que me desconcentrou um pouco, embora a história não seja de todo sobre a Covid, traz de volta algumas das sensações daqueles tempos. E, por estar num livro, quase parece ficção científica. É um pouco estranho, não nego.

Recomendo sempre Patrícia Reis, sem qualquer hesitação.

Boas leituras!

Excerto (pág. 80):
"A tarefa, que inicialmente lhe parecera ser mais uma pedra de Sísifo, outra forma de se torturar, era agora uma razão para sair do sofá, para fazer o reconhecimento nocturno de uma cidade que amava desde sempre, era Lisboa, a cidade boa, cidade que a vira crescer e sobre a qual dominava, sabia dela os segredos de quem a ela pertence. Certas vezes, calhava-lhes inventar uma casa no campo, com árvores de fruto e uma horta, António Ribeiro de Andrade dizia que, bem vistas as coisas, era apenas a poesia do campo a invadi-los, porque nunca teriam dinheiro para comprar uma casa, nem mesmo no interior desértico do país. Apreciavam a cidade, sabiam-lhe os recantos. Com a pandemia e o vírus a afugentar as pessoas da rua, havia algo moribundo que deixava Lisboa triste, num lugar impreciso entre a beleza e a maldade. Sou muito urbana, nunca conseguiria viver no campo, tu, que és artista, também não terias como, e ele abanava a cabeça e assegurava que não, ele poderia viver no campo. Nunca tinham imaginado a morte de um ou do outro, não falaram da morte, era um amor demasiado novo. Falavam de casas, era uma construção mental, algo que os remetia para o futuro, para uma vivência tranquila com árvores de fruto."

outubro 05, 2024

[Ebook] Into the Water - Paula Hawkins

Título: Into the Water
Ano da edição original: 2017
Autor: Paula Hawkins
Editora: Transworld Publishers

"Just days before her sister plunged to her death, Jules ignored her call. Now Nel is dead. They say she jumped. And Jules must return to her sister's house to care for her daughter, and to face the mystery of Nel's death. But Jules is afraid. Of her long-buried memories, of the old Mill House, of this small town that is drowning in secrecy . . . And of knowing that Nel would never have jumped."

Jules é uma mulher insegura, com excesso de peso e que vive sozinha, longe da única família que lhe resta, a irmã mais velha Nel, com quem tem uma relação complicada, recheada de traumas, rancores e mal-entendidos e, longe da sobrinha, agora adolescente e que praticamente não conhece.

Jules regressa a casa dos pais, onde Nel e a sobrinha viviam, quando sabe que Nel se atirou ao rio da sua infância, morrendo afogada. O rio, conhecido na cidade por Drowning Pool, é temido por Jules desde um episódio traumático em criança, em que quase morreu afogada.

Este regresso traz de volta a Jules memórias de tempos menos felizes e que preferia não ter de desenterrar. Mas a morte repentina e suspeita da irmã e, a necessidade de cuidar da sobrinha, não lhe permitem fugir para voltar à sua vida.
Jules não acredita que a irmã se tenha suicidado e, na tentativa de perceber o que aconteceu, vai ter de enfrentar os seus traumas de infância e as memórias do que aconteceu e que a levou a afastar-se da irmã. 
É no decorrer desse processo que Jules se vai apercebendo de que, o que recorda pode estar distorcido pela visão da pré-adolescente insegura e inadaptada que era na altura. É com tristeza que se vai apercebendo que, provavelmente, foi injusta com a irmã e, é também por isso, que não a pode abandonar mais uma vez. Quer que toda a verdade seja descoberta e poder ajudar a sobrinha a ultrapassar a perda da mãe. 

É um livro que, mais uma vez, toca no tema da memória e na forma como recordamos o que nos acontece. Até que ponto o que retemos é ou não fiel ao que efectivamente se passou. Estará a nossa memória condicionada pelo nosso estado de espírito e preconceitos? 

É também um livro que fala da violência contra as mulheres e do muito que há para ser feito na prevenção e na proteção das vítimas. 

Paula Hawkins tem sido uma boa surpresa. É consistente na qualidade dos livros que já li dela e dos quais gostei mesmo muito. Gosto da escrita, das temáticas que aborda, da forma como nos vai desvendado as coisas e das personagens que cria. Resumindo, gosto de tudo. :)

Recomendo sem qualquer hesitação. 

Boas leituras!

Excerto:
"There's was something you wanted to tell me, wasn't there? What was it you were trying to say? I feel like I drifted out of this conversation a long time ago. I stopped concentrating, I was thinking about something else, getting on with things, I wasn't listening, and I lost the thread of it. Wells, you've got my attention now. Only I can't help thinking I've missed out on some of the more salient points. 
When they came to tell me, I was angry. Relieved first, because when two police officers turn up on your doorstep just as you're looking for your train ticket, about to run out of the door to work, you fear the worst. I feared for the people I care about - my friends, my ex, the people I work with. But it wasn't about them, they said, it was about you. So I was relieved, just for a moment, and then they told me what had happened, what you've done, they told me that you'd been in the water and then I was furious. Furious and afraid. 
I was thinking about what I was going to say to you when I got there, how I knew you'd done this to spite me, to upset me, to frighten me, to disrupt my life. To get my attention, to drag me back to where you wanted me. And there you go, Nel, you've succeeded: here I am in the place I never wanted to come back to, to look after your daughter, to sort out your bloody mess."

setembro 04, 2024

[Ebook] Olive Kitteridge - Elizabeth Strout

Título: Olive Kitteridge
Ano da edição original: 2008
Autor: Elizabeth Strout
Tradução: Tânia Ganho
Editora: Alfaguara

"Em Crosby, uma pacata povoação costeira no Maine, todos conhecem Olive Kitteridge, a temível professora de Matemática do liceu, agora reformada, e Henry, o seu marido, farmacêutico gentil.
E talvez não haja ninguém que conheça tão bem quanto Olive os segredos e os dramas dos habitantes da vila: o desespero de um ex-aluno que perdeu a vontade de viver; uma pianista alcoólica vítima de uma mãe castradora; uma mãe destroçada pelo crime hediondo do filho; um homem que descobre a ferocidade e as consequências do amor; e a solidão da própria família de Olive, à mercê dos seus caprichos.
Lamentando os ventos de mudança que varrem a sua vila e o mundo, sempre pronta a apontar um dedo crítico, Olive nem sempre dedica aos que a rodeiam a sensibilidade ou tolerância que mereceriam. Mas à medida que todas estas vidas se vão entrelaçando, Olive começa a conhecer-se melhor e a compaixão - pelos outros e por si própria - ganha terreno ao preconceito.
Nas mãos de Elizabeth Strout - autora elogiada pelo olhar clínico sobre a condição humana - a sonolenta vila esquecida na margem do Atlântico torna-se o mundo inteiro, e os seus habitantes somos todos nós, enredados no drama e no milagre diários da vida, com os seus conflitos, tragédias, alegrias - e a coragem que viver sempre exige."

A sinopse é um bom resumo do que esta história é - a vida de uma comunidade numa vila pequena, onde todos se conhecem, ou acham que se conhecem. 
Em Crosby ninguém se mete na vida de ninguém, no entanto todos sabem da vida um dos outros e, embora seja uma vila pequena, não sentimos muito aquela mítica solidariedade e envolvimento do lugares mais isolados ou, então é porque os conhecemos pelos olhos de Olive Kitteridge. Mas o que sentimos é que todos, de uma forma geral, têm histórias de vida difíceis, com traumas, suicídios, doenças mentais e com segredos e, por isso, acabam por se manter todos, focados nos seus próprios problemas.
Olive é uma professora de matemática aposentada, de caráter duro, pouco simpática e pouco dada a sentimentos. Parece ser sempre empurrada para fazer alguma coisa pelos outros, sempre contrariada e de mau-humor. Mas, não é por isso que deixamos de sentir que, lá no fundo, Olive é boa pessoa só não é uma pessoa muito feliz e, provavelmente não sabe como sê-lo.

Ao longo da história vamos notando em Olive algumas mudanças, subtis, à medida que o seu mundo parece crescer e a sua tristeza e rabugice parecem ceder. A Olive do último parágrafo já não é bem a mesma que nos é apresentada nas primeiras páginas, embora a sua essência permaneça inalterada.

Olive Kitteridge é, na minha cabeça, uma típica história norte-americana, tudo o que é descrito me parece familiar por causa dos muitos filmes americanos que já vi. É mau, Olive Kitteridge ser "tão" americano? Não me parece que seja. A escrita é fluida, a narrativa tem um bom ritmo, conseguimos adivinhar que será um filme (já existe uma minisérie com a fantástica Frances McDormand) mas, neste caso, nada disto é mau. Funciona porque a escrita de Elizabeth Strout é boa e a história também é boa. 

Gostei da escrita, da história e da forma como nos vai contando a vida dos habitantes de Crosby. Gostei, naturalmente de Olive, mulher complexa, dura, difícil de gostar, tensa, dorida mas sem deixar de ter esperança de que a vida lhe traga algo de diferente. É uma personagem que ficou comigo durante algum tempo e isso, para quem lê muito, não é assim tão comum. :)

Recomendo sem qualquer hesitação.

Boas leituras!

Excerto:
"A tarde inteira, Olive lutou contra a sensação de se mover debaixo de água: uma sensação horrível e assustadora, uma vez que, por algum motivo, nunca aprendeu a nadar. Entalando o guardanapo de papel entre as ripas da mesa de piquenique, pensa: Pronto, para mim chega, e baixando os olhos para evitar ficar presa em mais uma conversa de chacha, dirige-se para a parte lateral da casa e transpõe uma porta que dá diretamente para o quarto do filho. Atravessa o soalho de pinho, reluzindo ao sol, e deita-se na cama grande de Christopher (e de Suzanne).
O vestido de Olive - importante, claro, uma vez que ela é a mãe do noivo - é feito de uma diáfana musselina verde, estampada com uns grandes gerânios rosa-avermelhados, e ela tem de se estender cuidadosamente na cama para não o amarrotar todo e também para ter um ar decente, se por acaso entrar alguém. Olive é uma pessoa grande. Tem noção disso, mas nem sempre foi grande e, por vezes, ainda tem a sensação de que não se habituou ao seu tamanho. É verdade que sempre foi alta e amiúde se sentiu desajeitada, mas o ser grande foi uma coisa que aconteceu com a idade; os tornozelos incharam, os ombros ganharam um rolo de gordura atrás no pescoço e os pulsos e as mãos pareceram adquirir dimensões masculinas. Olive importa-se com isso, é claro que se importa; por vezes, intimamente, importa-se muitíssimo. Mas, nesta altura da vida, não está para abandonar os prazeres reconfortantes da comida e isso significa que, naquele instante, provavelmente parece uma foca gorda a dormitar, enrolada numa espécie de ligadura de gaze. Mas o vestido até ficou bem, diz para si própria, recostando-se e fechando os olhos. Muito melhor do que as roupas escuras e soturnas que os elementos da família Bernstein decidiram vestir, como se tivessem sido convidados para um funeral e não para um casamento, naquele radioso dia de Junho."