Existe o Quarto Mundo? Quando existia a Teoria dos Mundos (1945-90) usava-se essa expressão para designar países não-reconhecidos, povos nómadas ou recolectores ou ainda povos muito pobres dentro dos países industrializados. Também o termo foi usado pelo Jack Kirby (1917-94) para uma série de BD em que criava uma cosmogonia judaica com o folclore super-heróico, cheia de cores e extravagâncias tecno-fantasiosas.
Nos anos 80, o trompetista Jon Hassel criou o conceito da "Música do Quarto Mundo", onde várias músicas do mundo (dos nobres selvagens do terceiro mundo, muito mais espirituais e puros que os ocidentais badalhocos) se fundiam com electrónica e tecnologia do primeiro mundo - o segundo mundo que se foda, eram os comunas. A dada altura esta música foi vista como uma exploração "coolonialista" e não admira que o clássico My life in the bush of ghost tenha tido queixas e críticas das comunidades árabes sobre o abuso da palavra do Corão no disco. E de repente... estamos em 2018... e uma coisa é certa, actualmente só há um mundo, por muitos esforços estejam a ser tentados para sair deste planeta poluído. Com o advento da WWW passamos a um único mundo.
Na música, vá lá existem dois... O das bandas que vão ao Coliseu ou aos grandes festivais de Verão com tradicionalismos anacrónicos do Rock e o da música de um Mundo do Quarto, esse cubículo íntimo em que se cruza todas as referências do arquivo infinito da 'net de música e sons gravados. Rap e Eurodance dá no Zef dos sul-africanos Die Antwoord, hoje armados em estrelas, mudaram-se para L.A. Techno e poliritmos africanos dá em Kuduro ou Gqom, enquanto que portugueses de origem africana (re)inventam a House sob a batuta da Príncipe. Uns anormais em Almada tocam Viking Metal azeiteiro mas um suiço esperto juntou Black Metal ao Gospel criando um novo mito fantasioso (e se os negros dos EUA fossem pagãos?).
Em breve, teremos um livro de Riccardo Balli (aka DJ Balli) que prova como a cultura "mashup" passou a ser regra na Música criando novas narrativas visto que todo o espaço físico e o tempo já foram condensados a uma nuvem de informação. Na Música e noutros campos! Senão aconteceu, o seu livro será a confirmação de tal porque será uma verdadeira literatura "mashup" 8-bit! Até lá, eis um apanhado de músicas improváveis que tenho apanhado por aí...
Da Colômbia tem surgido algumas propostas de nova música como os
Pixvae ou os
Chupame El Dedo (retratados no
zine que fizemos o ano passado para o Milhões pelo Rui Moura) que misturam Metalada com Cumbias. Desta dupla está lá Eblis Alvarez que é a cabeça dos
Meridian Brothers, banda que reformulam temas tradicionais com novas roupagens. Parece que estão a ter sucesso - a revista
The Wire prova isso - mas se a ideia não surpreende, convenhamos que se faz disto há muito tempo, já este EP
Los Suicidas (*matik-matik*; 2015) dão um passo em frente. Para já é preciso pensar num som muito especial, aquele do leitor de k7s que está com a cabeça suja e/ou com as "rodas" lentas, isso mesmo, um som arrastado e distorcido. Pensem nisso para um CD de meia hora quase sempre de temas instrumentais, de boleros & mambos pouco ritmados em que os sintetizadores são os réis da gravação. Uns sintetizadores ácidos e dissonantes de má-trip em que o desenho da capa, que lembra um mau Phillipe Druillet (desenhador de BD psicadélica nos anos 70), ilustra bem o som. Não é um disco propriamente agradável para quem está habituado a coisinhas limpinhas. Estes estes teclados psico-musicais estão presentes na discografia dos Meridian mas em
Los Suicidas estão em primeiro plano, num jogo viciante que faz com que seja melhor não o ouvir perto de janelas do terceiro andar...
A juntar a loucura de referências cruzadas temos da
Arte Tetra de Itália. que edita lindíssimas k7s (claro que vendem em digital também, dah!). está o segundo volume de
Exotic Ésotérique (2017), colectâneas de todas as "estrelas" da editora. Começa curiosamente com um tema que até poderia ser dos Meridian mas rapidamente, como diziam os 3 Mustaphas 3, "correm em todas as direcções": ritmos africanos com pós-industrialismos, Vaporwave, Médio Oriente Pós-Moderno (pelo russo
Holypalms), Free Jazz, Dub, Illbient, hauntology, electrónica experimental,... tudo isto que destrói fronteiras em quase duas horas de música que se ouve em "loop" sem uma única vez me arrepender de estar a ouvir há horas a mesma k7, neste caso. Numa sociedade narcisista em que todos tem os seus livros de artistas e vinis gravados de um lado só, eis um gesto certeiro de que vale a pena lançar boa música em formato físico. A embalagem é também um mimo. Uma k7 perfeita!
Se as edições normais da Arte Tetra sente-se um calor gráfico, já as edições de
Shit & Shine e
DJ Balli não se pode dizer o mesmo. Talvez porque haja aqui um conceito especial de música funcional que obrigue a uma estética mais "marca branca", como acontece com
Musica Lavapiatti (2017) dos S&S. Como o título indica é música para lavar pratos, uma tarefa muito mais importante do que agitar a cabeça feito estúpido na alienada ZDB, por exemplo. Além de ser importante para a higiene pessoal e caseira, lavar pratos é uma actividade vital para o aumento do intelecto e resolução de conflitos quotidianos. Se por um lado há uma responsabilidade material sobre os pratos e canecas - o risco de se partirem num descuido qualquer - há toda uma energia física para retirar as gorduras mais resilientes dos garfos ou das panelas deixadas da noite anterior. Todos estes extensíveis movimentos de limpeza distraem a mente de forma sincopada para um infinito psíquico onde o irracional entesado dá-nos as respostas necessários e a inspiração para prosseguir na vida. Acham que um concerto ao vivo será tão generoso? Eu acho que não. A música desta k7 é praticada pelo texano Craig Clouse (há demasiado mamados vindos do Texas não há?) com uma faixa ao ritmo gay british porno funk com uma voz que lembra os
Ghostigital a cantar
Bitch better have my money da Rihanna (
WTF!?) e outra a lembrar os Yellow Magic Orchestra depois de tomarem Viagra. Esta é outra k7 que se ouve em "loop" mesmo muito depois da conclusão dos afazeres.
Também serve para lavar a loiça o
Svelto (2017) de Balli com
Giacomo Balla (1871-1958) - uma colaboração possível por via telepática. É um mix de Gabba com discursos do Futurismo. Balli ao lavar os pratos depois de uma deliciosa pasta
al dente fez esta ligação óbvia que nenhum raver pastilhão poderia ter reparado: em 1909 dá-se o primeiro Manifesto Futurista que reclama as máquinas e a velocidade como renovação essencial e radical da Arte e da Humanidade. Oitenta anos depois o projecto electrónico Mescalinum United irá criar
We are arrived, tema Techno que abre as portas para o subgénero Hardcore e como consequência ao Gabba, que terão ligações à Extrema Direita, tal como tinha acontecido com o Futurismo. Paralelismo incrível este! Tal como outros irão aparecer nos
temas desta k7 cheia de detalhes conceptuais, não fosse o DJ Balli o mestre da música Rave conceptual. É claro que o som continua a ser Rave / Gabba que só se curte com 18 anos, E, água e despreocupação existencial. Não há Arte que resista
ao poder destruidor das máquinas, aliás, esta música pode ser para lavar a loiça mas não será à mão...
A CCC tem à venda AQUI.
Da rosa nada digamos por agora... (BaphoRecords; 2017) é a estreia do quinteto
Baphomet que reúne malta de vários reinos musicais bizarros inter-geracionais portugueses como
Älforjs, conjuntos sob a batuta de
Sei Miguel ou ainda os Signs of the Silhouette. É uma (super) banda cujos elementos assinam com nomes fabulosos como Monsieur Trinité ou Mestre André - pessoal do Black Metal roam-se de inveja!! São três faixas entre os 12 e os 30 minutos que compõe o CD em que ouve-se Jazz punheta, Ambient electrónico, batidas duras a lembrar Industrial, "zappices", inferno, minimalismos & reducionismos. Só peca por se repetir na forma: começa devagarinho e baixinho como não soubessem que vão fazer o inevitável, ou seja, um final cheio de cacofonia do Free / Improv. Uma lógica que se vê muitas vezes em concertos do género. Num disco gravado, as audições repetidas terão menos surpresas por esse
cliché. Como evitá-lo!? Baphomet explica...
Por fim, e receio com o mesmo problema de "explosões só no fim", uma k7 inesperada da editora Pop/ Rock
Lovers & Lollypops:
Dream Dream Beam Beam (2018) do saxofonista alemão residente no Porto
Julius Gabriel. Jazz? Parece que sim, pelo menos é indissociável quando se ouve um saxofone não lhe chamar de Jazz. Apesar de algumas linhas musicais apontem para algo de nórdico do jazz - Jan Garbarek em Fukushima? - logo a seguir vai para o ruído - Noise, pá! - e dronaria graças a efeitos electrónicos sujos e duros. É dor de cabeça garantida para quem nunca experimentou
Metal Machine Music... Ao certo ao certo, o que é isto!?