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sábado, 14 de dezembro de 2013

Esperanza

|André Domingues

A cidade chama-se Esperanza e as ruas de Esperanza estão cheias de mapas urbanos, que, por sua vez, estão repletos de círculos desenhados a marcador vermelho com a inscrição: Usted no está aquí. A provocação não faz parte do espírito de Esperanza, por isso o viajante incauto pode esquecer qualquer campanha de marketing e publicidade e concentrar-se apenas na sua bela desorientação, tentando ressuscitar a lógica e, sobretudo, nunca perder o ânimo. Assim, ao deparar-se com um dos milhares de mapas urbanos no coração de Esperanza, o viajante tem ao menos uma certeza: pode estar em qualquer lado da cidade, menos ali. A confusão agrava-se quando de 10 em 10 metros e em qualquer direcção que ouse tomar um novo mapa urbano lhe aparece pela frente com a mesma inscrição, precisamente sobre o mesmo lugar (rua, praça, avenida, encruzilhada) onde estava a anterior. Mas um raciocínio precipitado pode originar deduções fatais. Se todos os mapas representam sempre um único lugar da cidade no qual o viajante definitivamente não está, então é possível que nenhum mapa cumpra verdadeiramente a sua função e que aquela parte da cidade contemplada nem sequer tenha realidade material.
Nada mais errado. Esperanza é uma cidade atípica, projectada a partir de um só extracto da realidade que se repete infinitamente pelo espaço. A Calle de la Confianza, a Avenida de los Expectantes e a Plaza de la Posteridad estão unidas entre si e, consecutivamente, às suas réplicas, que se estendem, como aranhas magistrais, até Anhelo de la Sierra, Santa Ansiedad e Ciudad Revelada, já nos arredores de Esperanza. Chegando até aqui, torna-se cómodo aceitar que o problema de Esperanza é muito menos obscuro e borgesiano do que à primeira vista podia parecer, resultando menos de um enigma de características cósmicas e dissimuladas e mais da incompetência gritante dos seus serviços municipais: como em cada mapa urbano aparece apenas o detalhe do local e não uma perspectiva alargada da cidade, nenhum dos locais assinalados em qualquer um dos mapas pode afirmar que representa aquele exacto extracto da realidade. Daí a pertinência da inscrição: Usted no está aqui. Seguido do magnífico slogan da cidade: Siempre hay que tener Esperanza.


sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Visitas inesperadas

|André Domingues

São 23 horas e 33 minutos do último dia de 1899. Estou com Nikola Tesla, no seu laboratório em Colorado Springs. Tesla diverte-se a descodificar sinais extraterrestres, através da dissecação de frequências atípicas que lhe fazem lembrar ruídos de tempestades cerebrais. A sua convicção está ébria de futuro e compromisso, desejo e disparate. Por mais que queira convencê-lo do logro em que está há anos enredado, não me sinto capaz de frustrar assim uma mente histórica e muito menos de trespassar o direito ao delírio de um homem com a flecha da consciência eterna, soberana e universal.
Por isso, e para que Tesla não morresse de susto ou da imensa realidade da sua arte, disfarcei-me o melhor que pude de Mark Twain que, por essa mesma altura, o visitava com bastante regularidade. E trouxe-lhe um excelente vinho francês para o jantar.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Projécteis para o passado

|André Domingues

Keneth diz-me que todas as noites faz amor com uma constante física fundamental. Eu olho para as nuvens, que entretanto invadiram o céu da minha capacidade de abstracção, esboço um sorriso e continuo a fumar. Ele parece captar com a maior nitidez deste mundo a imagem da minha reacção e está muito determinado em querer provar-me a sua verdade. Vasculha qualquer coisa no bolso das calças. Surge um magnífico revólver na sua mão.
Keneth está com um revólver apontado a uma das suas têmporas, pronto a disparar. Antes que a hipótese de um grito rasgue a pré-história das minhas vontades, o gatilho da arma é accionado. A bala liberta-se a uma velocidade inimaginável. De tal forma que nunca chega a sair da arma. Pelo contrário, regressa ao cano. À caixa de munições. À fábrica onde um dia foi inventada. O próprio revólver tende a desaparecer. A nossa amizade. Eu e Keneth. Todas as constantes físicas fundamentais.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

O voo ignorado

|André Domingues

Na manhã gelada de 4 de Fevereiro de 1912, um conhecido costureiro austríaco, reúne vários amigos e personalidades da época diante da Torre Eiffel. Também lá estão os jornalistas e duas câmaras de cinema instaladas em sítios estratégicos, prontas a registar o momento e a proporcionar-lhe uma vida infinita depois, pelas artes mágicas da reprodução. Reichelt sobe ao primeiro piso da Torre (cerca de 60 metros de altura) para, por fim, pôr em prática a validade exaltada do seu invento, uma espécie de pára-quedas inspirado na perturbante anatomia do morcego que, segundo os seus cálculos fiéis, o traria de regresso a terra, alegre e ileso, com a gentileza de uma pena e a segurança gloriosa da eventualidade. 
Ao contrário daquilo que à primeira vista poderíamos pensar, o desfecho que se segue constata, paradoxalmente, o seu sucesso sonegado. Reichelt falha redondamente a ansiada aterragem perfeita, a sua invenção jamais seria adoptada e melhorada pelo mundo e pela indústria dos pára-quedas, mas acerta em cheio no seu segundo propósito, e talvez o mais sério, que era morrer. No fundo, Reichelt desvia todas as atenções sobre o seu suicídio, porque aponta os holofotes para uma façanha ignorada. Para poder manter-se na sombra do seu verdadeiro êxito, mesmo com o mundo inteiro a olhar para ele, Reichelt impõe uma única perspectiva dos acontecimentos. E o mundo só vê a desgraça e a queda acidental de Reichelt. 
Porque, como dizia Wittgenstein, sobre aquilo que não se pode falar, devemos calar. 
E Reichelt calou sempre. 

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Retrato de menina triste com balão (reflexo e catábase)

| André Domingues

Uma mulher alta, atravessada pela elegância de um vestido decotado e cruel. Ao lado da mulher, uma criança pálida, com rosto de porcelana e sardas severas. A menina está vestida com o uniforme do colégio e leva à volta do seu minúsculo pulso um fio que sobe na direcção do céu e termina, já muito perto das nuvens, num enorme balão. O balão tem a forma de um dirigível. A bordo do dirigível vão os seus demónios particulares.
Está um dia de sol insofismável. A mulher sorri para a câmara. A criança não. Tem medo que alguma coisa aconteça ao seu balão. A mulher não tem percepção da grandeza do balão que a menina traz. Só a menina (e nós que estamos deste lado) sabe da enormidade daquele balão. Do conteúdo inominável daquele balão.
Mas se olharmos atentamente para o dirigível vemos que também um dos demónios leva atado ao seu minúsculo pulso um fio que desce na direcção da terra e termina, já muito perto do chão, num enorme balão. O balão tem a forma de uma menina. Ao lado da menina, uma mulher alta, atravessada pela elegância de um vestido decotado e cruel, com um inofensivo e indefensável dirigível da Chanel na outra mão.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Memento mori

|André Domingues

Eis a memória do teatro-anatómico, a comédia desenganada dos nossos actos. Um artista, um performer, um homem atlético e saudável, cheio de qualidades, aliás, interpreta o papel da vítima de um colapso. Está deitado na bandeja do asfalto, repousa motu proprio, inanimado, no chão. Faz-se de morto. Deixa-se trespassar pela curiosidade mórbida de quem passa. A rua é muito movimentada. Em breve ele fabrica ao seu redor o círculo apócrifo do socorro ignorante. Até que alguém perfura subitamente o círculo e grita que é médico, a única fórmula de socorro autorizado.
O homem que grita que é médico também é um actor. Ajoelha-se ao lado do homem deitado, mede-lhe o pulso, olha para o relógio, depois para as nuvens, depois para a multidão, novamente para o relógio.
A menos de cinco metros de distância outro homem cai desamparado no chão. Abre-se um novo foco de curiosidade. Repetem-se os mesmos passos: gente aflita em redor, alguém que surge da multidão capaz de atestar a gravidade do colapso.
Em pouco tempo aquela rua enche-se de homens caídos no chão, gente à volta, médicos impostores, falsos diagnósticos de morte súbita confirmados. Alguns espectadores não aguentam a violência do espectáculo, ficam feridos na sua sensibilidade e começam realmente a desmaiar. Também há gente à sua volta. As pessoas reagem maravilhosamente ao furor do espectáculo. Pela primeira vez, no entanto, entra em cena uma equipa de médicos verdadeiros. Os médicos verdadeiros imitam os médicos impostores, mas o seu talento para a representação é frágil. O espectáculo torna-se redundante, o público aborrece-se, a multidão começa a dispersar.  

André Domingues - Biografia

André Domingues nasceu no Porto, em 1975. É licenciado em Ciências da Comunicação/Jornalismo e mestre em Literatura e Cultura Comparadas pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Em 2009, recebeu o 1º prémio de poesia, num concurso promovido por essa mesma faculdade. No ano seguinte, recebeu uma menção honrosa pelo poema “Dying Mannequin”, publicado na “Coletânia Prêmio OFF FLIP de Literatura 2010”. Foi vencedor do prémio “Novos Talentos Fnac Literatura 2011”, com o conto “Sine Die”.

Alguns dos seus textos dispersos, maioritariamente poesia e micro-ficção, foram publicados em livro e revistas digitais.