Passada a primeira noite pós-terremoto, todos no Japão ainda estávamos confusos sobre o que iria acontecer. É preciso lembrar que terremotos de menor intensidade continuavam ocorrendo. O chão constantemente balançando é algo difícil de se acostumar.
Resolvi me preparar um pouco mais para qualquer eventual problema. Primeiro, pensei, precisava de um meio de transporte, e ao verificar minha bicicleta, que não usava fazia uns meses, notei que seu pneu estava furado e lá fui eu levá-la para o conserto. Aproveitei também para comprar uma cestinha para acoplar ao guidon para poder transportar qualquer coisa que precisasse. No caminho, vi um poste de energia levemente tombado para o lado. Foi o único estrago aparente na minha vizinhança. Em seguida, fui ao supermercado, e apesar de não ter desabastecimento, havia um anúncio de que o horário de operação naquele sábado e no dia seguinte seria restrito, justamente para controlar o consumo.
De volta em casa, ficava acompanhando as notícias de Fukushima (福島) e à tarde vi a explosão do primeiro reator na TV. Apesar da apreensão inicial, nessas horas o que me trazia mais tranquilidade era me informar o máximo possível a respeito da tecnologia nuclear: como funcionava o reator, porque ele precisava ser resfriado, como era sua construção, etc. Era uma tarefa complicada, pois a mídia se dividia entre “o Japão está acabando” (mídia ocidental) e “não há nada a temer” (mídia japonesa) e o que eu queria não era opinião sobre nenhum dos lados, mas sim os fatos técnicos que me deixassem chegar as minhas próprias conclusões. Ao ver a explosão, tentei me informar se era de fato algo “semelhante a Chernobyl”, como muitos diziam, ou algo mais controlado. Logo aprendi que Chernobyl foi uma explosão de um reator em operação, que incendiou, e não tinha a “panela de pressão” (RPV), dispositivo de segurança que em Fukushima ainda estava intacto. A explosão, sites mais técnicos diziam, era provavelmente por acúmulo de Hidrogênio e apesar de emitir partículas radioativas ao ambiente, não eram um risco a médias distâncias (Fukushima fica a cerca de 300 km de Tokyo), já que esses elementos teriam meias-vida curtas e os níveis de radiação não eram muito altos. Mas por precaução, enchi minha banheira com água, caso partículas radioativas chegassem a Tokyo.
Na tarde de domingo, o sistema de som público do meu bairro começou a anunciar alguma coisa. Fiquei bastante nervoso, pois no início não entendia e nunca havia ouvido aquele sistema fazendo anúncios (em geral esses sistemas ficam em escolas e tocam um sinal todo dia às 17:00, mas nada além disso). Depois eu entendi que o anúncio era para economizarmos energia, pois como as usinas haviam sido desligadas, poderiamos ter problemas de abastecimento. Estava ainda um pouco frio, mas evitei usar o aquecedor, a partir daí. Fiquei pensando nas pessoas na região afetada, onde com certeza estava mais frio, e com menos energia. Com a casa abastecida e a bicicleta arrumada, a principal atividade do fim de semana foi contatar os amigos para saber se todos estavam bem. Mesmo os que moravam em Sendai (仙台), região mais afetada pelo tsunami (津波), estavam a salvo.
Segunda-feira, 14 de março, dia de voltar ao trabalho. Como os tremores continuavam (cada vez mais espaçados, mas ainda várias vezes ao dia), não me animei a ir de trem. Resolvi percorrer o trajeto de cerca de 25 km de bicicleta, e vi no caminho várias outras pessoas que pareciam ter feito a mesma escolha. Estes paravam suas bicicleta nos cruzamentos e ficavam conferindo mapas, placas, indicando que aquela não era a sua rotina habitual. De volta ao trabalho, mantinha a página da TEPCO aberta e conferia os updates da situação da usina, além das leituras de radiação em cada um dos quatro cantos da usina atualizados de 15 em 15 minutos (minha atenção principal era no lado voltado para Tokyo, é claro). Ainda pela manhã, aconteceu mais uma explosão no prédio de outro reator. A explicação era a mesma de antes, então ainda estava tudo “sob controle apesar do caos”. Eu entendia no momento que devido à grande quantidade de água usada para resfriar os reatores em Fukushima, a contaminação toda estava indo pro solo (e mar) da região, e que estes provavelmente ficariam inabitáveis por muito tempo, mas era uma situação completamente diferente da Europa na época de Chernobyl, onde a contaminação foi toda pelo ar. Expediente encerrado, de volta pra casa no primeiro dia da semana da nova “normalidade”.
Terça-feira, 15 de março, acordo e ainda antes de levantar leio a notícia de que o reator 4 também havia explodido nas últimas horas. Esse, eu sabia, era diferente dos outros, pois usava plutônio como combustível, que além de radioativo era também altamente tóxico, diferentemente do urânio usado nos outros dois. O pensamento que me veio a cabeça não foi tanto de estar em perigo devido a explosão, mas sim por uma possível histeria coletiva que viesse a acontecer. Caso todos resolvessem abandonar Tokyo, pensei, eu estaria em desvantagem, por ser estrangeiro e não falar muito a língua local. Resolvi então que sairia de Tokyo preventivamente naquele mesmo dia. Se não por ser um risco real, pelo menos para descansar a cabeça. Preparei uma mochila, peguei um dinheiro que tinha reservado, avisei meu chefe que não iria ao escritório naquela semana (mas levava comigo o computador para trabalhar à distância) e fui a estação de Tokyo (東京駅) comprar uma passagem de Shinkansen (新幹線, o trem-bala) para Hiroshima (広島). Na estação, apesar de uma terça-feira de manhã, havia uma razoável fila para comprar passagens, principalmente de mães com crianças. Apesar de muitos comentários desinformados sobre a “ironia de ir para Hiroshima para fugir da radiação”, fui para lá por dois motivos principais. Primeiro, Hiroshima é uma cidade muito agradável, onde eu sempre me senti bem em visitas anteriores e recomendo para qualquer pessoa que visite o Japão. E também porque Hiroshima fica a 800 km de Fukushima, a uma distância segura, e na metade do caminho entre Osaka (大阪) e Fukuoka (福岡), duas cidades com aeroportos internacionais bem conectados, caso resolvesse sair do Japão. Fiquei no albergue de Hiroshima e encontrei muitas pessoas, japoneses e estrangeiros, na mesma situação, que queriam principalmente um lugar para desestressar. E ao passar a primeira noite lá, sem sentir um único terremoto, e sem racionamento de energia, já comecei a me sentir melhor.
E foi em Hiroshima que, passeando pelos seus jardins e conversando com amigos, refleti bastante sobre a vida, valores, objetivos, e concluí que meu capítulo no Japão tinha chegado ao fim. Após a formatura, havia resolvido trabalhar em Tokyo por cerca de um ano como experiência, e apesar de ela ter sido extremamente positiva, pois experimentei um tipo de vida diferente da de estudante em Tokyo, senti que aquele não era mais o caminho que queria seguir, que não tinha motivos suficientes para continuar lá além da comodidade de permanecer na mesma situação, muito agradável, convenhamos, mas sem muitas perspectivas para o futuro. Precisava sair da minha zona de conforto. Pensei também que o Japão passaria por um grande momento de reflexão e foco na reconstrução e eu lá, como visitante, seria mais um transtorno que uma ajuda, como um convidado na casa de uma família que passa por uma situação difícil. Era metade de março e eu já estava com a passagem comprada para ir de férias ao Brasil no final de abril. Resolvi, então, que o cronograma se acertava. Fiquei em Hiroshima até o final de semana e ao voltar a Tokyo avisei na empresa que estaria saindo no mês seguinte, trabalhando até lá para terminar os detalhes que haviam ficado pendentes no projeto que estávamos terminando.
Como se termina uma vida de 5 anos em um país estrangeiro? Isso vocês vão saber na terceira e última parte desse epílogo. :)