A descida para Lucira é picada estreita que desce por montanhas escarpadas em curva-contra-curva e termina lá no fundo abrupto, no mar e na vila.
Há muito que não vamos à praia. Há muito que não vamos ao Namibe. Descemos a costa de janelas abertas pelas nossas estradas ao longo deste mar que nos molha os pés. Semi deserto adentro com cheiro a maresia. Serpenteamos as rochas expostas. Mergulhamos nas histórias dos pescadores de Lucira.
Amanhece, este país que é nosso. Tipo sábado de manhã com o alvoroço de imbambas e correrias antes de viagem de fim-de-semana. Passa por este, pelo outro. Não esquece disto e daquilo. Sandulas, pitéu; água e gasosa, por favor. A birra e uísque na mão, como antigamente, não dão mais mesmo.
Arranca e vamos para o sul. Lucira, Namibe. Se estivermos em Luanda, a viagem deverá ser dessas longas, de vários dias. Vamos por aí abaixo, EN100 (a nossa estrada praieira já meio esburacada outra vez, dizem as más-línguas). Ramiros, Sangano, Cabo Ledo. Porto Amboim, Sumbe. Passa a Canjala, o Lobito e Catumbela. Chega à rubra Benguela com a Praia mais Morena de todas. Veja o Sombreiro sombreando a Caotinha e a Baía Azul. Sinta, ao longe, o Dombe Grande e o Cuio que kuia. Amanhece neste país que é nosso. “Tão lindo, tão lindo, tão lindo”, vozeirão do saudoso André Mingas em “O que eu quero”.
Avance. Aqui, o sul é sempre mais à frente. E é aqui que a estrada se torna mais picada. Está em reconstrução, e tudo isso, mas vale tanto a pena. A viagem de cerca de 240 km entre Benguela e Lucira, seguindo pela costa, é outra coisa. Durante anos a fio, foi rota a evitar. Primeiro, pelos motivos que todos conhecemos. Depois, pela má fama dos buracões que comeram a via. Contam notícias dos últimos viajantes que por lá andaram que entre Benguela e o Cimo, a estrada está já asfaltada. Depois são mais 105 km até Lucira, numa picada razoável.
Esta nostalgia de estrada solitária a perder de vista torna-a ainda mais apetecível. Avança ao longo do mar, por entre montanhas, rios molhados e secos. Paisagem mais e mais árida à medida que sul se acerca, com o amarelo-torrado dos morros de Benguela a acastanhar-se pouco a pouco. Deserto de vistas e deserto de gentes. São horas a fio a sós com a terra. Com esta terra que teima em amanhecer.
A descida para Lucira é picada estreita que desce por montanhas escarpadas em curva-contra-curva e termina lá no fundo abrupto, no mar e na vila. Lucira foi uma das muitas pescarias que nasceram nas costas do Namibe por volta de 1855, na altura em que armadores portugueses descobriram uma mina de ouro nas águas da região. A indústria pesqueira sempre foi o motor de crescimento desta vila que, nos últimos anos, tem vindo a destacar-se pela produção abundante hortícolas nos vales do Inamangando, Carujamba e Tumbalunda.
As casas estendem-se sobre a praia. Lucira é tranquila, ideal para relaxar sem grandes preocupações. Percorrê-la é conhecer as pessoas que a vivem, pescadores, na sua maioria. E onde há pescadores, há histórias de sal. Conheça-lhes o mar pelas suas palavras, sentados no pontão assentado no oceano. E peça-lhes para o levarem até à gruta da Mãe Santa, junto à praia, de onde partem procissões de barcos todos os anos durante as festas locais. Não perca também, claro, a oportunidade de provar a lambula de Lucira que tem fama em toda a região.
Se tiver tempo, depois de uma noite na vila (pode pedir autorização para acampar na praia) avance pela costa em direcção à cidade do Namibe. Há várias baías por descobrir, há Bentiaba. São pouco mais de 220 km até à capital de uma das regiões mais incríveis do país (opinião muito pessoal) onde as opções são mais que muitas. Aproveite e tire uns dias para conhecer o deserto, a Baía dos Tigres e visitar a Foz do Cunene, já no limite com a Namíbia.
Enquanto o carro avança e o vento quente entra em ebulição nesta viagem que acabou por percorrer sem querer o país, veja o mar e a terra árida. Play em “O que eu quero” outra vez. Suba o volume e ouça o André cantar de novo a terra e a “fazer poesia com todas as letras, contar as estrelas, saudar a vida, ver os deuses igual” a ele, a mim, a todos nós.