Volúpia
Nesta casa tem pedaços de coral e tem elefante que um dia
agarrou nas vestes e hoje prende-se nas cortinas. Tem vela que queima sozinha
mesmo sem ser dia de Nossa Senhora e tem parede de tinta fresca, que cheira
como cheiram as coisas tocadas pela alma fresca e coral que transpõe os tempos.
Só que nestas coisas, agora, não me atenho, por preguiça ou por desdém. Tem
três janelas enormes de vidros quadriculados para se espreitar através, e a
espreita, quando começa, é música de xilofone de coloridos metais, aonde se
toca primeiro com o olhar, depois, só bem depois, com as pontas dos dedos, os
dedos invocando o som, o som procurando o resto.
Mas daí muda a música e muda o senso, e nisso também não
penso agora.
Nesta casa tem um sol que deita de lado e ilumina de
amarelo claro as frestas por onde espio, janela após janela, a rede e o corpo
deitado, também de lado, a tarde silenciosa e algum pano que o encobre.
Embaixo, a poesia amassada de algum caderno mal fechado. Qual será, mesmo, a
poesia, agora que cena me chama e me amassa feito folha e mistura-me as letras
e arrebata-me o olhar?
A tarde é feita de três, apenas três frestas que filtram
o sol e descobrem ... o desejo. Da fresta mãe, a pele guardada entre a sombra e
o que deleita os olhos, e tem na tarde este homem em sua rede, motivo
suficiente para o sol haver transposto o ápice do céu. Theo é a razão pela qual
todas as tardes existem. Tem esse jeito de menino que ainda não acordou por
inteiro, o livro da vida aberto sobre ele. Poesia embaixo, a vida em cima. Mas nem precisava.
Mas tem essa luz que chama e que não vai
abrir janelas. Mas tem esse entrevero de pelos, milharal movendo no vento, o
umbigo visto de lado, e eu ainda não aprendi a atravessar paredes. Entre as
frestas, essa matéria por demais concreta, que não me deixa avançar... Talvez
ainda precise a reza certa, ou o poema declamado por inteiro, ou um pouco que
seja do pó mágico que transforma as vontades e que não sei ao certo aonde
esqueci.
Nesta casa tem rede de olhar embaraçado,
a cintura desenhada que só entrevejo pela segunda fresta, e sinto no fundo que
todas as cinturas deveriam ser assim, desenhadas de lado, emolduradas pelo
poente, o flanco exposto arrebatando os olhos de menina que ainda não sabe
pedir, mas se soubesse, ah, se soubesse... Amassaria por ele todos os cadernos
e a pauta ficaria branca, como é branco o espaço da pele poupada pelo sol,
desde a coxa, quando inicia, até aquele tudo que só vejo como num filme em
preto-sombra e branco-pele, o mocinho fitando a mocinha, o tempo parando na
cena.
A música agora poderia ser de uma guitarra gitana, o ritmo lento
dedilhando os sensos e os olhos, o livro conformado em ficar de lado, o calor
de algum feixe maroto do sol incendiando aonde deveria ser intocável, o macho e
fêmea da parede, o macho entrando no branco da fêmea, o sol amarelo invadindo
as retinas de todos os olhos e permeando as vontades. Margaridas não devem ser
colhidas antes do tempo. Na hora certa, ficam mais abertas, o veludo da corola
mais macio, os pistilos eriçados, os caules mais tenros.
Já não tem nesta casa um corpo desenhado
de lado por entre as molduras benfazejas das frestas cúmplices. A luz se move
na tarde e Theo não se apercebe do sonho, estando por dentro dele. É Theo quem
dedilha esta guitarra louca, tocando apenas a superfície do desejo e isso só já
basta. E tem esta música ficando rápida, e tem esse jeito de dormir impune sem
saber que, daqui há bem pouco, saberei transpor espaços.
A cena é Theo, quando retorno dos
flancos e percorro subindo esse milharal sem vaidades, sem maldade mas obcecada
pelas peles ainda não vistas, feitas de ombros e pescoços e maxilas e olhos
fechados encontrando poças e ruas que refletem o sono-menino, que são assim
todos os homens amados quando dormem.
Não tenho a calma dos tempos pensados.
Eu sempre subo, quando mandam parar. E atravesso mais que paredes: milhas.
Tenho essa afoiteza de querer ceifar no tempo errado e tem essa vontade que não
me deixa pensar. Hipnose ou covardia, mas é aí que entendo quando as flores
estão prontas. Neste ponto em que a dança dos olhos vira dança de mãos de
menina que já não precisa de frestas, que as cortinas dos olhos entreabertos
revelam-no por inteiro, é neste ponto em que a música muda e vem com esse jeito
maluco de mexer e remexer a palavra na garganta, esse fôlego inteiro que é a
vida numa mesma respiração horizontal.
Agora, entrego-lhe o presente da dança
das peles, da festa das frestas, e meu presente é inteiro e irretocável, é
viagem sem volta, porque a cena é completa e devo-lhe a chama para que esquente
o seu sonho, sempre que adormecer nesta mesma varanda por milhares de tardes,
menino que me dá histórias e contos e taconeados.
A música cala. Margaridas enfeitam a
tarde.
6 comentários:
Ceci!
Mais um belísimo texto que encanta a todos. Espero que as postagens prossigam com frequência!
Um beijo carinhoso,
Saul
Que beleza! Só isso - que beleza!
Tony Saad
Estou alegre por encontrar blogs como o seu, ao ler algumas coisas,
reparei que tem aqui um bom blog, feito com carinho,
Posso dizer que gostei do que li e desde já quero dar-lhe os parabéns,
decerto que virei aqui mais vezes.
Sou António Batalha.
Que lhe deseja muitas felicidade e saúde em toda a sua casa.
PS.Se desejar visite O Peregrino E Servo, e se o desejar
siga, mas só se gostar, eu vou retribuir seguindo também o seu.
Estou alegre por encontrar blogs como o seu, ao ler algumas coisas,
reparei que tem aqui um bom blog, feito com carinho,
Posso dizer que gostei do que li e desde já quero dar-lhe os parabéns,
decerto que virei aqui mais vezes.
Sou António Batalha.
Que lhe deseja muitas felicidade e saúde em toda a sua casa.
PS.Se desejar visite O Peregrino E Servo, e se o desejar
siga, mas só se gostar, eu vou retribuir seguindo também o seu.
SEMPRE LINDO TE LER!!
Saudades lindinha!!!
Bjo grande e perfumado como as margaridas;))
This is great!
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