sexta-feira, agosto 20, 2010

A Ponte (ou: ainda pensando em Lèvinas)

A Ponte é o abraço do braço de mar com a mão da maré. (Lenine)
Olha-me, o outro, do outro lado da ponte. Nada espera, travessia, gesto, mote. Tudo desperta, resposta, reconhecimento, suporte. O outro anda e seus passos encorajam e libertam. Porque se move, provoca o movimento. Por existir, interroga, brando e silente: a que vem, o encontro? Brinda-me, o outro, com o infinito das possibilidades, brinca com o futuro, dispõe-se a mudar passados. A ponte é o outro. A ponte e o outro. Aponte o outro, para cruzar a vida. Interpela em mim o que ainda não sou. Produz-me, na resposta. O outro é um convite à outra margem, o outro é provocação: ponte a transpor. A ponte, no outro, é o outro lado, um país e suas bandeiras, mistério e possibilidade, o estrangeiro a quem acolho, mas que não fala a minha língua nem atende às minhas leis. Constitui-me, o outro, desde o primeiro olhar; tangencia-me, por vezes me atravessa. Permite passagens, oferece anteparo, cria a possibilidade. Olhar a ponte é nascer do outro, reinventar na memória texturas, vãos, lonjuras, perguntar-se o tamanho do passo, a fundura do rio, a correnteza no abraço. Há ... braço? Olha-me, o outro, do outro lado da ponte. Nada espera, travessia, gesto, mote. Eu atravesso.
(Texto: Cecilia Cassal Imagem: do filme As Pontes de Madison)

8 comentários:

Edilson Pantoja disse...

Cecilia, quanto tempo, héin? Que texto belo e significativo! A propósito, Heidegger tem um texto em que faz referência à ponte. Está no livro "Ensaios e Conferências". Não lembro agora, mas é um desses dois: "Poeticamente o homem habita" e "Construir, habitar, pensar", que são ótimos!
Grande abraço!

Edilson Pantoja disse...

Ah, minha amiga! Estás em melhor companhia, sem dúvida! Obrigado pela dica! Também vou procurar. Sobre o livro, ele é teu. Só falta te enviar um exemplar, o que farei ainda esta semana. Grande abraço!

Anônimo disse...

Cecilia, eu a leio sempre, mas nem sempre comento. Azar o meu, que poderia habitar melhor esse seu espaço tão convidativo. Essa provocação inquietante e doce, essa ponte que você é. Você é o outro ou eu é que sou. Somos, as duas, o outro e somos o que vê o outro. E somos a ponte também. Como escrveu Guimarães Rosa, tudo é travessia. Beijo da leitora que se sente tua amiga íntima, já, uma vez que textos assim são puraintimidade. Parabéns.


Sara Morgado Filho (Brasília, DF)

Anônimo disse...

Caríssima Cecília,

teu texto me lembrou de cara de um escritor muito caro a mim: Julio Cortázar. Fala que já lhe era impossível derrubar as pontes com o leitor. E tuas postagens aqui no LUA EM LIBRA são pontes, barcos, fluxo quase invisível da água, e uma nova correnteza, a dos nossos pés, atravessando para o outro lado. Te lendo, somos levados a caminhar, a atravessar a ponte. Beijo em ti e, pra variar, grande texto.

Álvaro Gomes Guimarães, de Santana do Livramento. RS.

douglas D. disse...

ir além,
dentro de si.

Renata de Aragão Lopes disse...

Imagem linda:
que filme inesquecível!

Quanto ao texto,
gostei muito do estilo.
Lembrou-me o de Mário Liz.

Um beijo,
Doce de Lira

João Bosco Maia disse...

Estive já por aqui e cá estou outra vez. Belo espaço para as letras, para a poesia, para o pensamento... para tornarmos mais claros nossos caminhos! Ao mesmo tempo em que te mobilizo para removermos este triste índice de 2 livros/ano por leitor brasileiro (na Argentina são dezoito livros/ano),
te convido a conhecer meus romances. Em meu blog, três deles estão disponíveis inclusive para serem baixados “de grátis”, em formato PDF.
Um grande abraço e boa leitura!

CarolBorne disse...

Que palavras, que nada! Só tem coração aqui!