Agora que já
guardei a última colher do café na gaveta em que se guardam as colheres
pequenas de café, e o chão da sala brilha o lustro dado pelas flanelas sobre as
quais arrastei os pés durante meia tarde, posso contar-lhe: fui eu que matei Paula
Beatriz.
Mas deixa que
acomode a almofada da sua cadeira, a fim de que não lhe crie vincos nas peles
das pernas. Demoram-se, depois, a sair, e por vezes deixam marcas vermelhas que
aos outros podem constranger, se ficarem olhando pelo tempo suficiente para
descobrir que são só vincos vermelhos causados por uma cadeira. E não é muito
decente ficar olhando para as pernas de uma mulher por tanto tempo. Podem
pensar maldade.
Pernas. Como
é mesmo que ele chamou as pernas da Paula Beatriz, na primeira vez em que as
viu? Daquela palavra que soa pecado já na hora em que se pronuncia: roliças. Na
verdade, ele não viu as pernas daquela. Ela mostrou.
Chegou na
porta dissimulada, a cara de santa, os cabelos deslambidos, toda rebocada,
sorrindo, estudada: “Avon chama”. Quando ele atendeu, ela foi logo insinuando,
aproveitando que eu tinha ido até o banco pagar a maldita conta adiantada antes
que a conta me roubasse o sono, mas como eu ia dizendo, ela entrou, sentou
naquele mesmo sofá ali, de napa vermelha, que você está vendo e deve ter
cruzado as ditas pernas que, na noite, depois do terceiro martelinho, rindo
largo, ele definiu: roliças! Como é que eu sei que foi assim? Ora, meu marido
sempre me conta tudo, depois do terceiro copo.
Daí veio para
ele com aquela história de que bom marido comprava perfume para a esposa, e – a
título de demonstração sem nenhum compromisso – experimentava o perfume no
punho e dava-lhe que cheirasse e dizia que imaginasse a mim, a esposa, se ele
gostaria que a sua mulher fosse com ele vestindo duas gotas daquele perfume em
outras partes... Safada! E desde quando se fala assim com o marido alheio?
Quando cheguei em casa, suada e esbaforida do calor infernal da rua, lá
estava ele, um romantismo fora de hora, me entregando o perfume que ela tinha,
convenientemente na pronta-entrega, para vender.
Já na hora estranhei. Ele, sempre tão
contido nas questões de presentes – nunca, que me lembre, presenteou alguém
fora das datas obrigatórias, que eu mesma deveria lembrar e advertir mil vezes
até que ele abrisse a carteira e me desse o dinheiro do presente do filho, ou
da mãe, ou do afilhado. “Mas afilhado precisa de tanto presente assim?”
“Cinqüenta reais, uma calça de brim coringa?” Não é brim coringa, eu ensinava.
E calava, porque já estava acostumada que ele tinha parado no tempo. Agora me
vinha com aquela história de perfume fora de data, que coisa!
Depois o
encontro no caixa do supermercado do Artur. A mesma micro-saia, dois dedos
acima da fenda do pecado, jogou os cabelos para um lado e veio toda sorridente:
“então, gostou do perfume que o Amâncio comprou?” Mas então aquilo eram
intimidades? Ora, “o Amâncio”. Logo ele, tão rigoroso com os tratamentos, “o
senhor”, “a senhora” até para pai e mãe, sendo tratado por “o Amâncio”. Naquela
boca parecia coisa ruim, o nome do meu marido. “Gostei”, ainda sorri. Mas não
deveria.
No outro mês,
mal as contas tinham sido pagas e eu depositado os minguados que sobravam na
poupança, lá veio ele me dizendo que precisava tirar um dinheiro, “umas despesas
extras, não sabe?”. Pois bem na tarde em que eu fui ao banco buscar o dito
dinheiro para ele ficar descansando do plantão da noite na refinaria, adivinhe
o que aconteceu? “Avon chama”. E era uma chama muito alta, eu imagino, que
naquele dia ganhei o colar da página central da revista de pedidos. “Uma jóia
para uma jóia”, ele me disse, com sua originalidade de operário da estiva. Sabe
Deus quantos colares ela provou! E logo naquela tarde, que a fila dos
funcionários públicos no banco estava enorme.
Sabe, comecei
a somar perfume e colar, um-mais-um, entende? Mas quieta. Um dia, teria uma
idéia. Comigo era sempre assim. Deixei os estudos para casar com o Amâncio, mas
sempre me informei muito e sou meio esperta para as coisas da vida. Qualquer um
sabia do que iria acontecer, no mínimo, no próximo mês. A vendedora de cosméticos
iria vender o que, mesmo?
Mas o destino
é matreiro como mulher, que por sua vez é astuta como o diabo e, mês que
chegou, ela teve uma tia doente para visitar no interior. Pois sim, acho é que
ela fez o golpe de desaparecer. A velha tática de mulher, para ver se a falta
era sentida. Fiquei esperando para ver se ele comentava. Não comentou.
Calado ele,
muda eu. Tratei de pintar a casa e reformar o sofá da sala, que não queria mais
aquele vermelho tão aceso no lar.
Passaram-se
os meses, um dia ele volta do serviço, o pacote pequeno esticado no comprimento
do braço: “Ó, prá você. Um batom. Vermelho.” Desde quando éramos namorados ele
me dizia que mulher dele não usava esmalte vermelho. Batom vermelho, então,
“coisa de mulher da vida”.
Mas as pessoas mudam e, a título de
comemorar, apressei-me a ir à geladeira, o primeiro martelinho gelado. O
segundo, o terceiro, o quarto. Já no quarto, as duas gotas de perfume e o colar
arrematando, perguntei assim, de improviso, como ela o tinha convencido a
comprar...
Homem puro, ele é. Nunca me escondeu
nadinha nesta vida. Contou: “ela tirou da bolsa um batom com espelhinho, que
limpou erguendo a barra da blusa, e abriu o batom. Bem devagar. “Cuidados, ele
pode quebrar”, disse ela, enquanto girava a base. Bonita a imagem da ponta
vermelha saindo lenta de dentro do tubo dourado. Primeiro a ponta, depois o
resto... Então, esfregou lentamente o bastão (não conseguia dizer batom, o
coitadinho, pelo álcool), primeiro do meio da boca para um canto do lábio, em cima. Depois,
desenhou lentamente a voltinha do boca, o sulco, depois repetiu no outro lado e
embaixo. Quando terminou, lambeu a boca bem devagar “para fixar”, ela disse.
Daí, mulher, pensei em como ia ficar aquela beleza úmida em você. E comprei. Agora vem
cá, que te arranco a saia.”
Eu não usava saia. Pobre do meu
marido. Tão tolo. Bêbado por uma e enfeitiçado pela outra.
Então, hoje de manhã, arrumei as
camas e estendi as roupas da máquina de lavar que ganhei dele no último
aniversário de casamento. Aproveitei que ele tinha saído cedinho, na madrugada,
plantão de dia, desta vez. Passei o pano no chão, que ele não suporta poeira,
dei o lustro nos quartos, que as tábuas têm de refletir o capricho da gente,
minha mãe ensinou, varri a calçada sabendo que ela passaria por ali. Quando ela
veio, chamei para uma compra. Aceitou o branquinho de festa, enrolado na
véspera.
O vidro, moído, parece
bastante com açúcar de confeiteiro.
(Texto e Imagem: CeciLia Cassal)