quinta-feira, novembro 16, 2023

Há Lia

 Ora, ora

Quem vem cá

À morta hora

Quem saberá?

Alia-se à escuta?

Há Lia na escrita?

Quem saberá?

(Postado para recusar a hipótese do blogger de excluir esse blog e deletar seu conteúdo. Ainda não!!!!)

sexta-feira, novembro 30, 2012

Lua em Libra - 7 anos

 
Volúpia 

Nesta casa tem pedaços de coral e tem elefante que um dia agarrou nas vestes e hoje prende-se nas cortinas. Tem vela que queima sozinha mesmo sem ser dia de Nossa Senhora e tem parede de tinta fresca, que cheira como cheiram as coisas tocadas pela alma fresca e coral que transpõe os tempos. Só que nestas coisas, agora, não me atenho, por preguiça ou por desdém. Tem três janelas enormes de vidros quadriculados para se espreitar através, e a espreita, quando começa, é música de xilofone de coloridos metais, aonde se toca primeiro com o olhar, depois, só bem depois, com as pontas dos dedos, os dedos invocando o som, o som procurando o resto.  
Mas daí muda a música e muda o senso, e nisso também não penso agora.   
Nesta casa tem um sol que deita de lado e ilumina de amarelo claro as frestas por onde espio, janela após janela, a rede e o corpo deitado, também de lado, a tarde silenciosa e algum pano que o encobre. Embaixo, a poesia amassada de algum caderno mal fechado. Qual será, mesmo, a poesia, agora que cena me chama e me amassa feito folha e mistura-me as letras e arrebata-me o olhar? 
A tarde é feita de três, apenas três frestas que filtram o sol e descobrem ... o desejo. Da fresta mãe, a pele guardada entre a sombra e o que deleita os olhos, e tem na tarde este homem em sua rede, motivo suficiente para o sol haver transposto o ápice do céu. Theo é a razão pela qual todas as tardes existem. Tem esse jeito de menino que ainda não acordou por inteiro, o livro da vida aberto sobre ele. Poesia embaixo, a vida em cima. Mas  nem precisava. 
Mas tem essa luz que chama e que não vai abrir janelas. Mas tem esse entrevero de pelos, milharal movendo no vento, o umbigo visto de lado, e eu ainda não aprendi a atravessar paredes. Entre as frestas, essa matéria por demais concreta, que não me deixa avançar... Talvez ainda precise a reza certa, ou o poema declamado por inteiro, ou um pouco que seja do pó mágico que transforma as vontades e que não sei ao certo aonde esqueci. 
Nesta casa tem rede de olhar embaraçado, a cintura desenhada que só entrevejo pela segunda fresta, e sinto no fundo que todas as cinturas deveriam ser assim, desenhadas de lado, emolduradas pelo poente, o flanco exposto arrebatando os olhos de menina que ainda não sabe pedir, mas se soubesse, ah, se soubesse... Amassaria por ele todos os cadernos e a pauta ficaria branca, como é branco o espaço da pele poupada pelo sol, desde a coxa, quando inicia, até aquele tudo que só vejo como num filme em preto-sombra e branco-pele, o mocinho fitando a mocinha, o tempo parando na cena. 
A música agora poderia ser de uma guitarra gitana, o ritmo lento dedilhando os sensos e os olhos, o livro conformado em ficar de lado, o calor de algum feixe maroto do sol incendiando aonde deveria ser intocável, o macho e fêmea da parede, o macho entrando no branco da fêmea, o sol amarelo invadindo as retinas de todos os olhos e permeando as vontades. Margaridas não devem ser colhidas antes do tempo. Na hora certa, ficam mais abertas, o veludo da corola mais macio, os pistilos eriçados, os caules mais tenros.  
Já não tem nesta casa um corpo desenhado de lado por entre as molduras benfazejas das frestas cúmplices. A luz se move na tarde e Theo não se apercebe do sonho, estando por dentro dele. É Theo quem dedilha esta guitarra louca, tocando apenas a superfície do desejo e isso só já basta. E tem esta música ficando rápida, e tem esse jeito de dormir impune sem saber que, daqui há bem pouco, saberei transpor espaços. 
A cena é Theo, quando retorno dos flancos e percorro subindo esse milharal sem vaidades, sem maldade mas obcecada pelas peles ainda não vistas, feitas de ombros e pescoços e maxilas e olhos fechados encontrando poças e ruas que refletem o sono-menino, que são assim todos os homens amados quando dormem. 
 
Não tenho a calma dos tempos pensados. Eu sempre subo, quando mandam parar. E atravesso mais que paredes: milhas. Tenho essa afoiteza de querer ceifar no tempo errado e tem essa vontade que não me deixa pensar. Hipnose ou covardia, mas é aí que entendo quando as flores estão prontas. Neste ponto em que a dança dos olhos vira dança de mãos de menina que já não precisa de frestas, que as cortinas dos olhos entreabertos revelam-no por inteiro, é neste ponto em que a música muda e vem com esse jeito maluco de mexer e remexer a palavra na garganta, esse fôlego inteiro que é a vida numa mesma respiração horizontal. 
Agora, entrego-lhe o presente da dança das peles, da festa das frestas, e meu presente é inteiro e irretocável, é viagem sem volta, porque a cena é completa e devo-lhe a chama para que esquente o seu sonho, sempre que adormecer nesta mesma varanda por milhares de tardes, menino que me dá histórias e contos e taconeados. 
A música cala. Margaridas enfeitam a tarde. 
Texto: Cecilia Cassal - Imagem: Claudio Tarta

sexta-feira, novembro 02, 2012

Avon Chama

Agora que já guardei a última colher do café na gaveta em que se guardam as colheres pequenas de café, e o chão da sala brilha o lustro dado pelas flanelas sobre as quais arrastei os pés durante meia tarde, posso contar-lhe: fui eu que matei Paula Beatriz. 
           Mas deixa que acomode a almofada da sua cadeira, a fim de que não lhe crie vincos nas peles das pernas. Demoram-se, depois, a sair, e por vezes deixam marcas vermelhas que aos outros podem constranger, se ficarem olhando pelo tempo suficiente para descobrir que são só vincos vermelhos causados por uma cadeira. E não é muito decente ficar olhando para as pernas de uma mulher por tanto tempo. Podem pensar maldade. 
           Pernas. Como é mesmo que ele chamou as pernas da Paula Beatriz, na primeira vez em que as viu? Daquela palavra que soa pecado já na hora em que se pronuncia: roliças. Na verdade, ele não viu as pernas daquela. Ela mostrou. 
           Chegou na porta dissimulada, a cara de santa, os cabelos deslambidos, toda rebocada, sorrindo, estudada: “Avon chama”. Quando ele atendeu, ela foi logo insinuando, aproveitando que eu tinha ido até o banco pagar a maldita conta adiantada antes que a conta me roubasse o sono, mas como eu ia dizendo, ela entrou, sentou naquele mesmo sofá ali, de napa vermelha, que você está vendo e deve ter cruzado as ditas pernas que, na noite, depois do terceiro martelinho, rindo largo, ele definiu: roliças! Como é que eu sei que foi assim? Ora, meu marido sempre me conta tudo, depois do terceiro copo. 
           Daí veio para ele com aquela história de que bom marido comprava perfume para a esposa, e – a título de demonstração sem nenhum compromisso – experimentava o perfume no punho e dava-lhe que cheirasse e dizia que imaginasse a mim, a esposa, se ele gostaria que a sua mulher fosse com ele vestindo duas gotas daquele perfume em outras partes... Safada! E desde quando se fala assim com o marido alheio? 
Quando cheguei em casa, suada e esbaforida do calor infernal da rua, lá estava ele, um romantismo fora de hora, me entregando o perfume que ela tinha, convenientemente na pronta-entrega, para vender. 
Já na hora estranhei. Ele, sempre tão contido nas questões de presentes – nunca, que me lembre, presenteou alguém fora das datas obrigatórias, que eu mesma deveria lembrar e advertir mil vezes até que ele abrisse a carteira e me desse o dinheiro do presente do filho, ou da mãe, ou do afilhado. “Mas afilhado precisa de tanto presente assim?” “Cinqüenta reais, uma calça de brim coringa?” Não é brim coringa, eu ensinava. E calava, porque já estava acostumada que ele tinha parado no tempo. Agora me vinha com aquela história de perfume fora de data, que coisa! 
           Depois o encontro no caixa do supermercado do Artur. A mesma micro-saia, dois dedos acima da fenda do pecado, jogou os cabelos para um lado e veio toda sorridente: “então, gostou do perfume que o Amâncio comprou?” Mas então aquilo eram intimidades? Ora, “o Amâncio”. Logo ele, tão rigoroso com os tratamentos, “o senhor”, “a senhora” até para pai e mãe, sendo tratado por “o Amâncio”. Naquela boca parecia coisa ruim, o nome do meu marido. “Gostei”, ainda sorri. Mas não deveria. 
           No outro mês, mal as contas tinham sido pagas e eu depositado os minguados que sobravam na poupança, lá veio ele me dizendo que precisava tirar um dinheiro, “umas despesas extras, não sabe?”. Pois bem na tarde em que eu fui ao banco buscar o dito dinheiro para ele ficar descansando do plantão da noite na refinaria, adivinhe o que aconteceu? “Avon chama”. E era uma chama muito alta, eu imagino, que naquele dia ganhei o colar da página central da revista de pedidos. “Uma jóia para uma jóia”, ele me disse, com sua originalidade de operário da estiva. Sabe Deus quantos colares ela provou! E logo naquela tarde, que a fila dos funcionários públicos no banco estava enorme. 
           Sabe, comecei a somar perfume e colar, um-mais-um, entende? Mas quieta. Um dia, teria uma idéia. Comigo era sempre assim. Deixei os estudos para casar com o Amâncio, mas sempre me informei muito e sou meio esperta para as coisas da vida. Qualquer um sabia do que iria acontecer, no mínimo, no próximo mês. A vendedora de cosméticos iria vender o que, mesmo? 
           Mas o destino é matreiro como mulher, que por sua vez é astuta como o diabo e, mês que chegou, ela teve uma tia doente para visitar no interior. Pois sim, acho é que ela fez o golpe de desaparecer. A velha tática de mulher, para ver se a falta era sentida. Fiquei esperando para ver se ele comentava. Não comentou. 
           Calado ele, muda eu. Tratei de pintar a casa e reformar o sofá da sala, que não queria mais aquele vermelho tão aceso no lar.  
           Passaram-se os meses, um dia ele volta do serviço, o pacote pequeno esticado no comprimento do braço: “Ó, prá você. Um batom. Vermelho.” Desde quando éramos namorados ele me dizia que mulher dele não usava esmalte vermelho. Batom vermelho, então, “coisa de mulher da vida”.  
Mas as pessoas mudam e, a título de comemorar, apressei-me a ir à geladeira, o primeiro martelinho gelado. O segundo, o terceiro, o quarto. Já no quarto, as duas gotas de perfume e o colar arrematando, perguntei assim, de improviso, como ela o tinha convencido a comprar... 
Homem puro, ele é. Nunca me escondeu nadinha nesta vida. Contou: “ela tirou da bolsa um batom com espelhinho, que limpou erguendo a barra da blusa, e abriu o batom. Bem devagar. “Cuidados, ele pode quebrar”, disse ela, enquanto girava a base. Bonita a imagem da ponta vermelha saindo lenta de dentro do tubo dourado. Primeiro a ponta, depois o resto... Então, esfregou lentamente o bastão (não conseguia dizer batom, o coitadinho, pelo álcool), primeiro do meio da boca para um canto do lábio, em cima. Depois, desenhou lentamente a voltinha do boca, o sulco, depois repetiu no outro lado e embaixo. Quando terminou, lambeu a boca bem devagar “para fixar”, ela disse. Daí, mulher, pensei em como ia ficar aquela beleza úmida em você. E comprei. Agora vem cá, que te arranco a saia.”
Eu não usava saia. Pobre do meu marido. Tão tolo. Bêbado por uma e enfeitiçado pela outra. 
Então, hoje de manhã, arrumei as camas e estendi as roupas da máquina de lavar que ganhei dele no último aniversário de casamento. Aproveitei que ele tinha saído cedinho, na madrugada, plantão de dia, desta vez. Passei o pano no chão, que ele não suporta poeira, dei o lustro nos quartos, que as tábuas têm de refletir o capricho da gente, minha mãe ensinou, varri a calçada sabendo que ela passaria por ali. Quando ela veio, chamei para uma compra. Aceitou o branquinho de festa, enrolado na véspera. 
O vidro, moído, parece bastante com açúcar de confeiteiro.
 
(Texto e Imagem: CeciLia Cassal)

 

segunda-feira, novembro 21, 2011

Umas coisas desse tempo, João

João,

É tanto o tempo em que não dou notícias e que deixo o Rio aos seus cuidados, que sequer atrevo a desculpar-me. Quase sempre converso com Helga ao telefone e peço a ela que - como um código cifrado de bem-querença - espalhe sobre seu mate umas flores pequenas de maçanilha, como os que preparaste para mim nas inúmeras manhãs que silenciamos juntos no Rio dos Ameandros. Com Helga, trato das coisas práticas, como não pode deixar de ser às mulheres, mas sinto tua falta, João, quando preciso ser sabida na melhor forma das cumplicidades tácitas.

Mas deixei o rancho por esse tempo que não é longo nem é breve, apenas o justo, para que as coisas se acomodassem e eu pudesse novamente estar entre vocês e pudesse pensar em revelar as coisas lentamente, conforme as demoras no amadurecimento dos frutos do pomar que sei florido, nessa primavera. Deixei-os como quem não pode - por impossibilidade real ou pensada - abraçar a um amor a quem muito se quer: o afastamos com durezas e silêncios e, quando o fazemos, sabemos que sofrerá durante um tempo e que depois reencontrará lugar melhor no mundo do afeto, não havendo nisso grandeza ou abnegação, não sendo marcado por lamento nem covardia, apenas necessidade, ou como quando batemos os pés no chão e ameaçamos com pedras a um cão que insiste em nos acompanhar pela rua e tememos pela sua sorte e não há - na pedra, nem na palavra ríspida, nem no silêncio, a cão ou a ser amado -, mais do que um ato de prevenção, assim foi minha ausência do rancho e de suas vidas: não por grandeza, repito, ou por egoísmo, tampouco por achar-me mais competente em cuidá-los ou cuidar-me do que quando o fazem, em suas minúcias de delicadezas e presença.

João, andei em muitos lugares e tenho pensado demais em vocês e nas coisas todas que fizeram com que acontecesse esse encontro. Pensei na minha responsabilidade diante de tudo e de - por conhecer fatos que vocês talvez apenas intuam sobre o passado recente que também lhes diz respeito - resolvi retornar ao nosso bom convívio. Levarei umas cartas e alguns pertences de teu irmão que ainda estão comigo e a ti, como presente (e um presente a ti, meu bom João, é quase como uma oferenda), uns livros que foram chegando e imediatamente me fizeram lembrar de tua avidez em ler e saber do mundo fora dos limites dessas montanhas e umas sementes de flores diferentes que, sei, encantarão à Helga. Não lhe conte, por favor, de minha chegada, que não é preciso nenhum preparo especial de casa ou comida e pretendo abraçá-la de surpresa, enquanto estiver na cozinha, em qualquer dia de manhã bem cedo, quando tiveres saído para as bandas do rio e que os labradores, ao te acompanhar, não possam perceber a minha chegada.

Até breve, João.

(Texto: Cecilia Cassal - Imagem: Cecilia Cassal, Ollantaytambo, Peru)

quarta-feira, setembro 28, 2011

Primavera

A primavera deitou-se nas folhas dos ipês e seu peso de luz vergou as ramas e verteu húmus sobre o solo ainda úmido e gelado. Germinou liquens, musgos, samambaias, cutucou sementes, expandiu corolas, espreguiçou pistilos, pulverizou polens. Há muito eu tinha icebergs flutuando nos olhos. Há muito a umidade fria do longo inverno me acabrunhara as juntas, compactara os ossos, ressecara as peles. Hoje beijou-me o sol. E eu não sei como a vida seria, não houvesse essa aparição repentina, esse inusitado retesamento de músculos em movimento, uma quase fragilidade de sair às ruas, de tocar o dia, de ouvir de novo a alegria da vida quando se instala e se sabe súbita e se reconhece apenas ... por enquanto. Ah, o medo de recuperar o mundo na plenitude de uma estação. É preciso ver os ipês, os guapuruvus, os jacarandás, as azáleas, as hortênsias... é preciso, é preciso, é preciso ver Porto Alegre, estar em Porto Alegre, viver essa cidade. É preciso ter passado pelo inverno aqui, antes de sentir o beijo que anuncia que a tudo faz rebrotar, tudo renascer, que anuncia que a vida inteira germina nos parques, nos dentros, nas peles, nos seios, nas músicas, na poesia, no sentido que agora faz tudo o que acontece e o que passou. É isso: a primavera, aqui, faz com que todas as coisas, todo o passado, todo o futuro, todo o bem e todo o mal e toda a grandiosidade de tudo o que há, diga: Estou viva! Reconheça-me! É preciso que a Primavera o beije, em Porto Alegre.

(Texto: Cecilia Cassal - Imagem: Cecilia Cassal: Um Tigre entre orquídeas)

quarta-feira, junho 01, 2011

Entreouvido no restaurante


"- ...Então me desculpe, eu simplesmente esqueci, não sei como fazer com essa sua necessidade absurda, ele disse, e alcançou a mão dela sobre a mesa.

- eu já desisti, falou mansamente, sem retirar a mão.

A face dele turvou-se na altura dos olhos, antevendo uma discussão: - Olha, não vamos começar...

- não falaremos nunca mais nisso, esqueça. Antes, todo o possível foi dito. Ninguém faz nada, ninguém muda nada, a menos que seja importante para si mesmo.

- Como, desistiu, o que você quer dizer com isso?

- desistir parece com apagar. Quando desistimos de algo, simplesmente apagamos, matamos, desiluminamos. Assim, apaguei essa expectativa sobre você. De um certo modo, joguei sombra escura sobre uma parte de você em mim.

- Ah, simples assim? Então você não desistiu de mim?

Ela sorriu e pediu mais uma Coca Zero.

(Texto e imagem: CeciLia Cassal) 














terça-feira, maio 24, 2011

Seduções

Não esperava pelo encontro, a Mulher. Não assim. Eram oito da manhã e Ele cantarolava enquanto servia-lhe o café, depois de abraçá-la por mais tempo do que deveria. Mais terno do que deveria, tão pouco perfumado quanto convinha ao horário. Deveria ser proibido tanto bom humor a essa hora da manhã, ela resmungou para si. Mas gostou. A barba feita, era isso, o cheiro da barba recém-feita, ela chegando do sono, ela ainda meio mole do sono, emergida dos lençóis para a reunião vespertina demais. Ele servia o café e murmurava sem letras, ela conhecia a música: “olha você tem todas as coisas que um dia eu sonhei pra mim...”. Ela estreitou a xícara entre as mãos e mergulhou os olhos no negro fumegante do café. Ele não deveria fazer isso, pensou, e pensou no que fazer com aquilo tudo que lhe era entregue. Não deveria, considerou de novo. Quando se deu conta, ele tinha-se abaixado e contorcido até ficar com a face logo abaixo da xícara, olhando-a direto dentro do castanho dos olhos. Ela riu na hora e reprimiu vários sorrisos depois. Agradeceu em segredo, quando a reunião passou sem que ninguém percebesse.
Texto: CeciLia Cassal  Imagem: Litografia de Marilia Fayh

segunda-feira, abril 18, 2011

Eu já sabia!

Eu já sabia. Vejam o Post de 25 de setembro de 2010.

PARABÉNS, Saul ! Parabéns também aos outros participantes e vencedores do Prêmio Sofia de Literatura.

Prêmio Sofia de Literatura 2011 (Resultados)
Depois de um ano de trabalho, as Oficinas Literárias Charles Kiefer e Editora Ltda fez a entrega do Prêmio Sofia de Literatura 2011, no dia 17 de abril, no Restaurante Copacabana, com os seguintes resultados:

Primeiro Lugar: Entre Sombras, de Saul Melo (Prêmio de 3 mil reais)
Segundo Lugar: Moinhos de sangue, de Ana Klein (Prêmio de 1,5 mil reais)
Terceiro Lugar: O quase-nada, de Valmor Bordin (Prêmio de 1 mil reais)
Prêmio Especial (Vencedor da disputa interna): Quero ser Reginaldo Pujol, de Reginaldo Pujol Filho (Prêmio de 500 reais).

Postado por Oficina Literária Charles Kiefer

quinta-feira, abril 07, 2011

O Matador

Precisas facas foram cravadas
nas espaldas da noite.
Sangraram-na à morte
os dardos ferozes
e o dia nasceu tinto
- a dor vermelha inflamando o horizonte.

Nada há que não morra
uma vez surgido.
Silêncio é o que
brota da entranha amarela do dia
quando os panos inertes da noite
denunciam o pesadelo consumado.

A morte de um mistério
não é a sua revelação.
Todo segredo morre mesmo
é quando acaba o amor.

(Texto: CeciLia Cassal Imagem: Hilton Pozza)

domingo, fevereiro 20, 2011

Escuroclaros


"O jeito que você arruma seu cabelo procurando aquele efeito
que o mundo não quer reparar: - revela tanto.
E o tempo que demora para decidir
se aquilo que está ouvindo é convincente para poder concordar
- e me deixa esperando.
Eu posso esperar".


Adentro teu quarto e a claridade tosca, metade janela-metade sensação, sou eu, escuroclara, e és tu, semente de luz germinando bem no meio da carne minha. Adentro tua casa e sou mais do que lume ou breu roto, redundo em incertezas, blasfemo contra a tua calma, me calo. Não sou digna de perquirir da vida as razões, apenas te vejo e quando isso acontece já não sei se sei ouvir, cheirar, tocar. Amplifico-me para além e tua voz me incandesce de uma luz outra, que já não é fria, pois que é tinta de verões. Nenhuma insanidade há no amor, me dirias, se quisesses, mas sem precisão, porque não há que ser assim ou de outro modo e porque o amor é banal como uma roupa e seus prendedores na corda do cair da tarde ou é intenso como as demoras, o amor. E por nunca ter tido essa leveza de andorinha no calor e não ter aprendido a não perguntar, eu perguntaria quando partirias, e tua resposta seria risada aberta e eu teria medo de cair, porque me suspenderias - passarinho ainda incompetente ao vôo -  e trocarias a música no CD. Um dia, adentraria tua casa e as estantes vazias e a mesa vazia e a cama vazia. Inverno. Luz fria.

(Texto e Imagem: CeciLia Cassal - Belém do Pará, Brasil)

segunda-feira, janeiro 24, 2011

Um pouco verdes

Pronto: as pessoas nascem poetas! Dom ou sina, a depender do momento, mas é caminho sem volta. Um jeito especial de olhar o mundo, umas perguntas que mais ninguém faria, e eis um ser em estado de poesia.
No cedo da manhã, Larissa olhava comigo a maré baixa.
- Onde estão seus filhos, agora?
Pensei um pouco. "Estão com as namoradas".
- Qual é a cor dos olhos das namoradas deles?
"Azuis, eu penso. Ou verdes..."
- Os meus olhos são negros.
Os olhos de Larissa eram onix maciços, escondidos por pestanas longas, cortinas contra a maresia.
- E os seus, de que cor são?
Olhando para ela: "marrons, eu acho". Ela considerou em silêncio durante um tempo, então concluiu, mais para si mesma do que para mim:
- Mas são um pouco verdes, também.
Confundia o mar da quarta praia com os meus olhos, a pequena Larissa, 8 anos, negra, nativa da ilha, que nascera poeta.


(Texto e imagem: Cecilia Cassal - Morro de São Paulo - Bahia - Brasil)

quarta-feira, dezembro 08, 2010

Ah, o Amor

"cada ciudad puede ser otra
cuando el amor pinta los muros
y de los rostros que atardecen
uno es el rostro del amor."
Mario Benedetti
A neve escorria dos cumes pelas encostas e jogava, nas lentes da câmera, reflexos perpendiculares de sol e branco. Da janela oposta, ele acompanhava as mudanças do relevo, as cores das rochas, os lagos inesperadamente verdes, as curvas da estrada. Ocupávamos os primeiros assentos da parte superior do ônibus que cruzaria, durante mais de sete horas, cordilheira, fronteira e muita expectativa. Por vezes, apontava-me em silêncio alguma vertente derretendo-se pelos veios das pedras. Não estando indiferente, era antes um enigma alegre que se desenhava no meio sorriso permanente de sua face inteira, onde exibia a barba ainda não de todo cerrada e algumas espinhas. Vinte anos? Talvez.


No tempo de espera na aduana, a possibilidade do diálogo:

- Te vas de vacaciones?
- No, mi novia vive alli. Voy a cada quince dias.

E sorriu um sorriso tanto maior, quanto a alegria indisfaçada nos olhos.

- En su opinión, cuáles son los mejores lugares de Santiago?

Refletiu um instante...
- No lo sé. Todo es hermoso en el lugar donde vive la persona que amas.

(Texto e Imagem: Cecilia Cassal)

quinta-feira, novembro 04, 2010

Ele, meu pai.


Quatro de novembro, dia de meu pai. Hoje - vencedor das imensidades poderosas - completa 80 anos. Sou toda sentimentos, pai, e não sei dizer sem molhar os olhos, as coisas grandiosas que merecerias que te dissesse. E não sei abraçar forte e lenta, do jeito que deveria, e sou tão bobamente frágil que nem ouso te ligar, porque a voz ia ficar esganiçada e eu ia ter de simular uma tosse e desligar antes de dizer o que o meu coração queria... Por isso, hoje só te mandei mensagem no celular, e te imaginei chorando quando leu, como eu, quando escrevi. Somos igualmente bobos e sensíveis, e essa é a melhor inscrição igual do nosso DNA. Por isso também vou te abraçar amanhã meio com pressa, e tu vais sair de lado e mudar de assunto, e vais perguntar algo trivial. Mas ambos saberemos. Um beijo, meu pai. Só isso.


(Texto: Cecilia Cassal - A imagem? presente dele, um dia)

quinta-feira, outubro 28, 2010

N.

Ela é pequena, branca, tem 76 anos e diz que espera ficar velha para ir morar em Caiobá. Empresta a cada coisa um tempo muito menor do que o necessário, assim, tudo o que faz é ágil, ligeiro, como se a vida oferecesse algum apressamento. Porque diz que o riso salvará o mundo, ri sempre. Desde o nosso primeiro encontro, há dois anos, reafirma seu carinho. Abraça-me forte:
- Continuamos grandes amigas de infância?
Sem sair do abraço, respondo:
- E seremos sempre assim, até que ambas estejamos bem velhinhas.
Três décadas nos separam.

sábado, setembro 25, 2010

Entre Sombras

Transita entre ruelas que anoitecem à medida que enveredamos pelas linhas. Palavras-paralelepípedos, a dureza da pedra antes de ser atirada, nas mãos a frieza quadrada da pedra na penumbra. Mulheres. Vultos. Um espectro cavando um poço. Um nada consistente que interroga, lá do fundo, o que vem depois. Diáfano como a noite onírica, pesada como uma pedra na mão pronta para estilhaçar-nos as certezas numa açoriana rua vespertina que vai escurecendo, mulheres que nos tomam – leitores em suspensão – em suas teias, o segundo livro de contos do Saul nos povoa de signos que (in)deciframos e assim se demoram em nós, bem depois da leitura. Falam de vida e morte, música e arte, os contos do Saul Melo. Mas não de uma arte como a que andamos vendo em eventos recentes, essas artes difíceis de entendermos porque mal ajambradas, feitas de uma vontade de provocação que não se completa no olhar do outro. A arte do livro é costurar devagar um presente sempre relativo e os mitos, fiandeiras palavras. Assim, o Entre Sombras é um livro de contos para ser lido lento, um vinho raro que se bebe só, uma luz pequena iluminando o livro, a poltrona no canto do silêncio, o nada escuro no entorno. Eu gosto disso: textos que se entregam aos poucos, em camadas, o encadeamento dos contos quase um rosário, um colar de cont(a)(o)s, uma novela, para quem souber entender. Como a vida, com seus acontecimentos desconexos não se entrega assim, fácil, nem ao primeiro beijo, tampouco a algumas horas sobre um divã. A vida, como no livro do Saul, vem de degustar aos poucos, solene, em um ato onde a avidez só estraga, atropela, profana. Não, não vou falar mais sobre os contos, que isso a excelente Cíntia Lacroix (Sanga Menor, Dublinense, 2009) fez com toda a propriedade do mundo na apresentação do livro que – como se o conteúdo por si só não bastasse - tem um projeto gráfico belíssimo de capa e uma editoração primorosa.

Chega! Vamos ao convite. Volto em breve a essa órbita, num já que nunca sei bem quando.
Abraços em vocês.



sexta-feira, agosto 20, 2010

A Ponte (ou: ainda pensando em Lèvinas)

A Ponte é o abraço do braço de mar com a mão da maré. (Lenine)
Olha-me, o outro, do outro lado da ponte. Nada espera, travessia, gesto, mote. Tudo desperta, resposta, reconhecimento, suporte. O outro anda e seus passos encorajam e libertam. Porque se move, provoca o movimento. Por existir, interroga, brando e silente: a que vem, o encontro? Brinda-me, o outro, com o infinito das possibilidades, brinca com o futuro, dispõe-se a mudar passados. A ponte é o outro. A ponte e o outro. Aponte o outro, para cruzar a vida. Interpela em mim o que ainda não sou. Produz-me, na resposta. O outro é um convite à outra margem, o outro é provocação: ponte a transpor. A ponte, no outro, é o outro lado, um país e suas bandeiras, mistério e possibilidade, o estrangeiro a quem acolho, mas que não fala a minha língua nem atende às minhas leis. Constitui-me, o outro, desde o primeiro olhar; tangencia-me, por vezes me atravessa. Permite passagens, oferece anteparo, cria a possibilidade. Olhar a ponte é nascer do outro, reinventar na memória texturas, vãos, lonjuras, perguntar-se o tamanho do passo, a fundura do rio, a correnteza no abraço. Há ... braço? Olha-me, o outro, do outro lado da ponte. Nada espera, travessia, gesto, mote. Eu atravesso.
(Texto: Cecilia Cassal Imagem: do filme As Pontes de Madison)

segunda-feira, maio 17, 2010

Tarde

A porta se abriu e eu não estava. Logo agora, que tinha chovido novamente sobre as páginas largas dos coqueiros e na areia esculpiram-se incontáveis furos, tais como furnas nos formigueiros, tais como tocas, nos pés dos muros. Logo agora, quando ainda não era a hora que gostarias, mas chegavas e percebias a geografia sublime, logo agora eu já não estava. Todos preparam as suas mortes e o tempo de esperar preparara as suas. No mar vazio além da varanda e na praia oca faltaria o colorido de um vestido distante mas que, em sua memória, voltaria sempre à casa. Como tantas vezes. Logo agora, você pensa, que eu verdadeiramente já queria, agora que já poderia. Então, esbravejaria o engano e a crueldade de seus desejos insatisfeitos: logo agora!, e o batente da porta receberia a raiva de sua mão espalmada e nesse momento talvez minha face esquerda ainda corasse uma derradeira ardência. Logo agora, moço. Logo agora!
(Texto e imagem: CeciLia Cassal)

segunda-feira, abril 26, 2010

Da tirania dos cordeiros

Para entender com outros sensos a alma minha, A minha alma
Tudo o que exagera me enlouquece:
tédio, volumes, vulgaridades
burrices, hormônios, deslealdades.
Nenhuma maldade é suficientemente pequena
(pequena é a alma que a contém).
Tenho vícios de cordeiro
e também sua tirania.
Nunca aprendi a revidar.
Mil vezes, mil vezes
a minha melancolia, essa forma
quase doce de abençoar
quem não fui, embora
por vezes me enjoe.
Tudo quanto não sei
me exaspera. Exagero!

Texto: CeciLia Cassal Imagem: Mario Alexandre

segunda-feira, abril 12, 2010

Notícia

Os pais estão bem e
cultivam em silêncio cúmplice
os mates quentes.
Nem a ira
nem as demasiadas alegrias
roubaram deles
a claridade das manhãs.
.
Sobre amarrotados lençóis
os filhos dormem
o sono dos jovens
tresnoitados.
.
Um gato delineia-se
entre a lua e a vidraça
enquanto em algum lugar
o Amor lê uma história
de que me contará partes.
.
Nem todo o pessimismo
de mil filósofos
arrancaria de mim
essas felicidades.

Texto: CeciLia Cassal - Imagem daqui

terça-feira, março 30, 2010

A propósito,


Imagem e Texto: CeciLia Cassal - Rio de Janeiro, Brasil

quarta-feira, março 24, 2010

Música


Imagem: Steve Hanks Texto: CeciLia Cassal

quarta-feira, março 17, 2010

Porque eu acredito !



Quando escrevi isso era novembro de 2009. Na geladeira, a todos que chegassem, saudando o que estaria por vir. Depois disso, um acidente, um osso partido, uma cirurgia, uma mudança, várias mudanças, uma obra, outras mudanças, cancelamentos, adiamentos, crises cheirando a cimento e gesso...

O importante ficou intacto: a solidariedade de quem me é caro, a confiança em quem merece, o abraço em todas as horas. Nesta retomada de escrita, um agradecimento especialíssimo a quem esteve tão perto a ponto de molhar seu ombro com minhas lágrimas e a quem não esteve perto, mas me sabia, me sabia, me sabia.

Aos que foram meu joelho, minhas muletas, meu sedativo, meu oxigênio, minha transportadora, meus confidentes, meus amados:


MUITO OBRIGADA.


É por vocês que acredito na ESPERANÇA e na POSSIBILIDADE.



Que finalmente inicie 2010. Por todos nós.
(Fotografia: desconheço o autor. Texto: Cecilia Cassal)

sábado, dezembro 19, 2009

A todos vocês, com quem compartilhei 2009

Porque é dessas trocas onde tantas vezes apenas nos lemos, palavras e olhos, de que me alimento. Obrigada a cada um que visitou minha Lua, anônimo ou declarado. Simplesmente obrigada.
CeciLia Cassal
(imagem: CeciLia Cassal - Texto: Manoel de Barros)

terça-feira, novembro 24, 2009

(Texto: CeciLia Cassal Imagem: Pedro Moreira)

quarta-feira, novembro 04, 2009

João Rudá



Rio dos Ameandros, 03 de novembro de 2009.

Senhora,

Não estranhe esta carta, eu apenas não sei falar. Mas escrevo. E graças às coleções de livros e revistas que deixou no rancho nas últimas vezes em que lá esteve, tenho escrito textos cada vez mais longos. Escrever tem me devolvido uma certa espécie de som e também por isso sou-lhe agradecido. Comecei com aquele livro enorme que tem as fotografias sobre as flores, depois o dos legumes, o das cercas vivas, aquele das pequenas frutas vermelhas da França... Quando me dei conta, não tinha passado um único dia destes últimos anos sem que eu sentasse na soleira do seu rancho (aliás, há uma tesoura no telhado sobre a cama que precisa de reparos. Se me autorizar, tratarei de trocá-la) depois das lides do jardim e da horta e lesse muitas daquelas páginas, antes de voltar para a casa. Li aquelas histórias e tratei de imaginar os lugares de que falavam, os tempos onde tinham sido escritos. Um deles lembrou as chuvas deste inverno sem fim e as cheias que enfrentamos no Rio dos Ameandros, as vacas boiando nas águas ligeiras, as barrigas inchadas de enchente e morte. Mas devo confessar-lhe que não gosto das poesias, talvez porque ainda não consiga achar para elas uma utilidade. Um dia, encontrei umas páginas escritas com sua letra. Achei que deveria voltar a dobrá-las e devolver-lhes ao livro. Fique sossegada, não li e nem toquei mais naquele volume.

Mas deixa que retome o que explicava no início, já que sei que deve ter ouvido várias coisas sobre a minha doença no armazém. Como todo mundo sabe, eu desaprendi a falar. E mais, nem eu não sei se sei falar. Há muito, uma doença que nunca me explicaram direito, tirou o som da minha própria voz. Tirou-me o som do mundo que eu conhecia. Contava eu a idade em que os pelos começam a aparecer no corpo de um piá, quando a febre chegou. Lembro da dor em minha cabeça, como se ela tivesse sido sendo aberta com um golpe de machado. Lembro de ter ficado parado por medo de que doesse mais. Nada mais, desse tempo. Dizem que dormi por meses, disso também não sei. Quando acordei, o mundo era feito de um escuro absoluto de ruídos. Não entendia o que aconteceu e, não sabendo se poderiam responder-me, preferi não perguntar, por fraqueza, susto ou abandono. Nada havia a fazer, além de ocupar-me dos dias chegando e morrendo através do vão feito janela aberto na parede de barro e palha do rancho onde morávamos, meus pais e irmão. Tomaram-me por mudo, acatei. Por isso, hoje não sei se sei falar. Aprendi a ler os olhos, muito mais do que os lábios. Sinto, muito mais do que compreendo. Algum tipo de silêncio, (lembre, para mim a vida é essa ausência da maneira mais absoluta que a senhora conseguir imaginar) principalmente aquele que chega cedo na manhã, me encanta e possui pelo dia todo. Ele parece mais completo do que o silêncio das vozes que não ouço. Aprendi a ler cedo, - ainda quando meu irmão freqüentava a escola e não tinha ido embora para a cidade - e a procurar tarde nos livros a relação com o que não ouço, mas pressinto. Com os livros, os bichos e os silêncios, enfrento, sem lutas, uma solidão de que não sofro.

Como a senhora sabe, nos últimos anos Helga preenche os meus dias com suas conversas. A ela pouco importa se eu respondo, se compreendo, se gosto: ela precisa falar e eu a olho. Nada mais é necessário, além de seus temperos plantados em linha sobre os canteiros, do que o cheiro de sua comida, nada mais além das suas panelas areadas e secas ao sol. Existem entre nós cuidados que poderiam evitar as palavras. Sobre Helga, tudo anda bem. Às vezes penso até mesmo que ela esteja feliz, de uma felicidade que eu aprendi definida nas coisas que leio.

Como primeira vez, tomo a liberdade de escrever-lhe para que possa dar-me também uma voz e porque temos sentido a sua falta, neste rancho em que a senhora decidiu colocar o nome do rio. Atrevo-me a mais do que escrever-lhe para – com todo o respeito que me foi ensinado – contar-lhe das últimas estações, do tamanho que as parreiras tomaram, da taipa que foi aprontada lá para o final do terreno, dos cardeais que fizeram ninho no oco queimado do raio, na árvore do fundo, dos alagamentos que arrastaram casas e gado e colheitas pelo rio. Escrevo-lhe por ter pensado e escrito umas impropriedades e dar-me ao desfrute de dizer-lhe, se não for para que se ocupe em corrigir-me, apenas para que talvez algo tente tocar-lhe nestes tempos em que não sabemos da senhora.

Outro dia escrevi assim: Um rio não precisa existir, se ninguém senta às suas margens para contemplá-lo. Um rio não merece existência, sem alguém que nele mergulhe, por necessidade ou gana ou simplesmente por amor à fluidez das águas entre as peles. Um rio não precisa, um rio nem precisa.

Por favor, Helga e eu gostaríamos de saber suas notícias, depois do seu adoecimento. Depois da morte de meu irmão, a senhora entrou em nossas vidas, fez-nos cuidadores de sua propriedade. Também nos afeiçoamos aos labradores e, como eles, nos alegra a poeira levantada pelo seu carro, quando completa a última curva da estrada. Não tome a mal essa carta, não a pense como uma impertinência. Apenas receba nosso reclame de saudade. Helga, se soubesse que lhe escrevo agora, talvez quisesse oferecer-lhe um chá.

Pense sobre o Rio.

João Rudá
(Imagem e Texto: CeciLia Cassal)

sábado, outubro 03, 2009

Um Presente para Vênus

Eu não disse? Esta rede dá peixes-palavras a mancheias. Dá amigos de prosa boa em uma margem de rio caudaloso. E dá adornos à Vênus Libriana que mora em mim.

Ganhei este selo da Jacinta Dantas, de coloridas idéias. Beijo, querida, obrigada pelo mimo.

quinta-feira, outubro 01, 2009

Nós na Rede

Porque, quando a gente silencia, é que a Palavra,
- peixe no fundo, nas margens, nas bocas dos rios, -
se cria.
Quando a gente se solta e mergulha,
sempre alguém de rede boa
captura em nós alguma poesia.
Aqui vai um convite a todos vocês. Este ano NÓS, os nós dessa rede virtual de palavra-poesia, somos quatro. Quem sabe no ano que vem o Porto Poesia albergue Nós-Quatrocentos?
Mara, Juliana e Renato, agradeço honrada o convite. Farei o possível para estar à altura.
Um beijo em vocês,
CeciLia

sexta-feira, setembro 18, 2009

Mistério


O Gato


Ela não me fala, mas sei que está lá. Sei mais, além do fato de que me sonega a tristeza e alguma queixa concreta. Conheço as coisas que insiste em não dizer, embora às vezes chegue a pressentir que ela já sabe. Há uma brincadeira que se desenrola entre um felino que sou eu e uma borboleta: a verdade dela. Posso esperar, também carrego meus inevitáveis segredos. Quase sempre tenho medo de que ela os leia numa melancolia mais densa escondida com cuidados atrás do vidro velado dos meus olhos. Depois acho que não, ela se move superficialmente demais na vida para que possa suspeitar-me. Mas eu queria que ela ou alguma outra me desvelasse um dia. Ah, tal mulher teria mais do que a minha alma, as minhas setenta vidas, todos os meus instintos, os meus melhores sentidos: teria a minha história reinventada exclusivamente pelo seu contentamento. Ela não me fala, mas há um silêncio que perpassa a distância que nos cabe através da mesa, das flores no jarro, dos copos e dos talheres, um oco que me transfixa uma dor e segue além de mim. Atrás da sua verborragia, tem esse silêncio sólido e poderoso que ela tenta esconder, mas eu sei. Sei?



A Borboleta

Ele me olha e eu acho que sabe. (__) Já disse um poeta que há coisas que nunca deveriam precisar ser ditas, em se tratando de amor. Verdades que se envergonhariam, caso não fossem generosamente adivinhadas pelo outro. Há muito temo pela vulgaridade de certas falas; mais prudente – em se tratando de manter a delicadeza - é guardar o segredo e silenciar. Há coisas demais na vida que podem ser ditas: o dia lindo, a decoração agradável, alguma notícia recém lida. Melhor manter a alegria efêmera de uma borboleta: tocar de leve o prato, a frase, os temas... É preciso preservar no outro a liberdade de não saber e, não sabendo, nada necessitar fazer. Desse modo, guardo comigo a dor que não se pode dizer, mistério enjaulado, peixe que raramente sobe bem próximo à superfície para logo em seguida sumir novamente na escuridão do fundo. Só não posso demorar-me demais em seus olhos: tenho as asas demasiado transparentes.
(Texto: CeciLia Cassal - Imagem: Hugo Amador, "Amor em Tons de Branco")

domingo, agosto 09, 2009

Divã. (ou) Um desagravo à desonestidade

Há muito não escrevo nada. No exato momento em que explicito isso, penso nas centenas de prescrições, aulas e listas que vão de supermercado à manutenção da casa, bilhetes e e-mails que andei escrevendo nas últimas semanas. Corrijo: há muito não posto nada. Normal, alguns pensariam e atribuiriam aos lapsos de criatividade que acometem periodicamente a todos que escrevem. É mais. Alguns delicadamente me cobram: “o que acontece, CeciLia, há dias entro aqui no Lua e nada aconteceu?!”

Ainda ontem pensei em escrever um texto iniciado várias vezes penitenciando e – de certo modo – louvando as infinitas distrações da pessoa desse lado do teclado. Não deu. Não era isso. Havia outro assunto que precisava ser olhado, possuído, esgarçado. Passavam todos os temas e ele continuava lá, à espera. Um assunto com o qual não queria nunca mais envolver-me e assim dava um jeito de fechar-lhe a porta. Não adiantou, entrou pela porta dos fundos, como todas as verdades que precisam ser olhadas.

Falo aqui da honestidade. Não da honestidade inexistente e utópica de quem não erra. Falo da possibilidade de errar, explicitar o erro e incorporá-lo ao que se é. De pisar na bola e pedir desculpas. Das meias-verdades, mentiras inteiras, das omissões importantes e que roubam ao outro a possibilidade de julgamento e decisão com o conhecimento todo sobre alguma situação. Falo da insistência que algumas pessoas possuem nas duplas agendas, nas vidas paralelas, na falsidade crônica, na forja estúpida de uma imagem que nunca lhes pertenceu. Falo na necessidade de enganar, ocultar, manipular, optar por caminhos indiretos quando a verdade é tão benéfica, tão simples.

“Mas essa não é a CeciLia, vocês devem estar pensando, ela aqui sempre tão envolvida com coisas mais etéreas e menos mundanas. Por que resolveu fazer essa conversa, logo aqui, lugar de Vênus?”

Explicito um lugar-comum: odeio gente sacana. Assim mesmo: ODEIO! Odeio gente invasiva, inescrupulosa, gente sem limites mínimos de respeito à coisa ou sentimento do outro. À verdade merecida pelo outro. Gente a quem um tratado inteiro de ética aplicada não mudaria nada na vida. Gente para quem os fins – os que trazem benefícios a si próprios, bem entendido – justificam todos os meios. Talvez aceitem um rótulo de compulsivos, sociopatas ou borderlines, porque um diagnóstico da ciência provavelmente mascare e amenize a sordidez da criatura e seus feitos.

Há mais de cinco anos alimento estes diários virtuais. Já escrevi para o Margaridas, meu primeiro blog, para um primórdio de Lua em Libra, quando o Terra resolveu desativar o Weblogger, e hoje alimento este espaço onde vocês me lêem. Não foram poucas as pessoas a questionarem sobre livro que não publico por uma série de razões que não cabem aqui e que – sinceramente - nem sei se conheço todas. Fui selecionada em alguns concursos literários, nesse período, participei de antologias. Para brincar melhor nesse jogo com a Palavra, frequentei oficinas com diversos e bons professores. Sobretudo, interagi aqui. Ganhei amigos a quem conheço pessoalmente e não, elaborei crises, dividi saudades, compartilhei visões. Há muito acredito que, uma vez ministrada uma aula ou publicado um texto, eles pertencem ao interlocutor, o que não elimina o fato de ter sido gerado por alguém. O que alguns nunca aprenderam foi que a gente explicita o autor, quando cita uma produção de outrem. A ciência e a literatura são de domínio público. Ou não se podem chamar assim. Deste modo, e porque nunca me apropriaria de produção alheia sem citar a autoria, publiquei aqui um bocado de coisas.
Esse é o verdadeiro motivo de estirar-me neste divã: há uns meses fui informada de um plágio. Uma presumida distinta senhora, na época à frente de uma associação de escritores, simplesmente roubou-me um poema. Alguém que se propôs, ao menos por um tempo, defender a literatura e seus escritores publicou em seu livro, como se dela fosse, um dos meus poemas mais caros: aquele que escrevi no dia dos meus quarenta anos, no caminho e à frente de uma lagoa que recebeu-me a comemoração solitária por opção e necessidade de recolhimento. Um poema que, dois anos antes do roubo, tinha sido selecionado e publicado na antologia dos Poemas no Ônibus, com a autoria correta. Confesso, há dois meses tento assimilar o fato. Fiz contatos, pedi explicações inexistentes. Nada. Tenho em minha mesa os dois livros, de 2004, com o meu poema e de 2006, com o que ela publicou.

Muitos já o conhecem, mas transcrevo-o mais uma vez aqui, ratificando a autoria.

Não Gosto

Em dias de maior tristeza
permita-me desaparecer
sem deixar bilhetes
sobre a mesa.

Ocorre que nestes dias
ando com a alma aos farrapos
(isso aprendi com os gatos)
não gosto que me vejam
morrer.

CeciLia Cassal

(Texto: CeciLia Cassal. Imagem: José Paulo Andrade. Música: Sonho Impossível, com Maria Bethânia)