Já estava chegando naquela época do ano em que George perdia o sossego. Seu cabelo e barba já estavam grandes e esbranquiçados como mandava a tradição. Era quase natal e mais uma vez ele seria o Papai Marx no vilarejo do Preá Atropelado, em Balneário Fantasma.
Papai Marx era a versão “balneariofantasmiana” de Papai Noel. Adotada em decreto municipal há mais de três décadas como “oposição e resposta à figura capitalista, individualista, neoliberal, consumista e esteticamente escrava da Coca-cola” representada pelo Papai Noel.
Papai Marx fora apenas uma parte do pacote de decretos natalinos. Outra medida determinava o fechamento de lojas e proibia as
compras de natal no mês de dezembro para evitar o consumismo desenfreado. Nesta época só era permitida a troca de presentes manufaturados pelas próprias pessoas (por trabalho não alienado) em clima de camaradagem fraternal.
Era isso que perturbava o velho George. Sem dúvida era uma honra ser o Papai Marx há mais de uma década, mas cabia-lhe também o fardo de fabricar presentes para toda a vila (cerca de 317 pessoas). Nos últimos anos vinha improvisando brinquedos feitos com parafusos retirados das caçambas das fábricas falidas, mas isso já tinha virado até motivo de chacota.
Além dessa preocupação, a pequena empresa Chocolates Fantasma (que George abrira com a verba que recebeu quando foi demitido como cabeça de greve da Sanitários Baunilha) não ia bem das pernas devido à maldita crise. Tocava-a com obstinação que só era possível com a ajuda de seu velho amigo e sócio, o anão Cosme. Velho companheiro desde os púberes tempos dos cursos técnicos.
Era sexta-feira. Como de costume, depois de encerrarem a produção, George e Cosme ficavam papeando nas bancadas da fábrica, lembrando os bons tempos da greve dos trinta dias... Sonhando com o futuro e maldizendo seus desafetos.
Naquele dia específico George estava pensativo, olhando a fábrica em busca de uma solução para o problema dos presentes. Cosme sabia que nessas horas era sensato acompanhar sua quietude. Foi então que George gritou:
-As raspas!
-O quê?
-As raspas, Cosme! Farei algum presente com as raspas de Chocolate! Como não pensei nisso antes...
A noite inteira foi de intenso trabalho na Chocolates Fantasma. Cosme sabia que George era bom com idéias então o ajudou no que pode sem perguntar muito. Quando amanheceu os dois estavam exaustos mas haviam resolvido o problema do presente. George desenvolvera um licor com as raspas de chocolate que sobravam das máquinas misturando-as com cachaça e melado. Não gastaria nada na noite de natal e poderia distribuir o licor em pequenas garrafinhas para todos, que aliás se aqueceriam na densa neblina da noite na festa de natal da praça. Acabaram o serviço e despejaram todo o licor no maior tambor que encontraram (de diesel vazio) para curtir. Cosme foi para a sua casa e George ficou por ali mesmo onde morava, dormindo em cima de uma bancada, utilizando estopas como travesseiro.
Duas semanas depois (uma antes do natal) numa sexta feira, os dois amigos fariam a prova final da bebida curtida e maturada para a eventual correção de algum ingrediente. Fecharam a fábrica e sentaram-se na bancada cada um com um copinho cheio do licor de raspas de chocolate. Beberam.
Um alegre calor tomou conta de cada célula de George e Cosme e suas bochechas enrubesceram imediatamente. A conversa de sexta, que geralmente era mágoa arrastada, foi diferente. Longas elucubrações otimistas. Gargalhadas contagiantes ecoavam no velho galpão. O licor estava perfeito.
O que os dois mal podiam suspeitar é que aquela intoxicação peculiar que o licor propiciava era resultado não só da cachaça, mas principalmente do resto de diesel que se encontrava no tonel.
Noite de natal. Como de costume uma multidão esperava em frente à portinha do sindicato. Papai Marx desceria as escadas e cruzaria a praça até o coreto distribuindo com a ajuda de Cosme (travestido de duende operário) seus mimos manufaturados. Quando apareceram na porta, tinham um sorriso diferente.
Iniciaram então a tradicional marcha, distribuindo aos camaradas as garrafinhas com o licor de chocolate intoxicante. Subiram no coreto onde as crianças do colégio lhe esperavam para o coro com canções anarco-sindical-natalinas.
Cada cidadão presente na praça: fosse criança, velho ou mulher recebera uma garrafinha. Ao tomarem a bebida reproduziam a leve intoxicação já sentida por George e Cosme. E o torpor tomava seus corpos de assalto e era mágico. Toda a praça foi invadida por uma sensação de amor fraternal e leves alucinações faziam com que aquele coro fosse o mais maravilhoso, afinado e celestial. As luzes de natal brilhavam míopes em pequenas brumas coloridas contidas. Papai Marx fez um discurso acertado que tocou o coração de todos. Até o pequeno Cosme parecia-lhes simpático naquela ocasião. E fez muito sentido por um instante para todos morarem no vilarejo do Preá Atropelado. Eram companheiros e camaradas naquela jornada miserável, mas acima de tudo, eram irmãos. Nunca houve noite de natal como aquela...
FIM
EPÍLOGO
(Leitura opcional não recomendada para aqueles que gostam de finais felizes.)
Acabada a festa, todos voltaram para suas casas. Exceto George que só tinha a fábrica. Lá chegando, feliz com o sucesso da festa, bebeu todo o resto do licor. Seu corpo foi encontrado na hora do almoço de natal por Cosme. Foi enterrado com honrarias e muito choro. Existe no vilarejo uma rua com seu nome.
Cosme ficou louco. Depois da morte de George obstinou-se na reprodução do licor maravilhoso, nunca conseguindo reproduzi-lo perfeitamente. Faltava alguma coisa. Talvez se deixasse o licor maturar naquele velho tonel de diesel esquecido no canto da fábrica...
Benigno, um dos poucos capitalistas falidos que não fora banido de Balneário Fantasma, havia guardado um restinho do licor no dia da festa de natal. Após análises no espectro-fotômetro descobriu a fórmula secreta da bebida. E essa bebida, com o ingrediente secreto (óleo diesel) foi batizada ironicamente de Dieselina. E ela que entorpece os sentidos dos ex-operários sem sina de Balneário Fantasma, fornecendo breves consolos aos seus corações amargurados.
FIM
( Dedicado a dois Jorges reais, que ausentes retornam na lembrança nas épocas das festas de finais de ano.)