Oficialmente e com os descontos para a Caixa comecei a trabalhar em 1948. Era jovem e a empresa para onde fui, estava servida com outros da minha igualha. Mais tarde, desenvolveu-se, cresceu e hoje é uma empresa cotada na bolsa.
Tinha cerâmica, carpintaria, serralharia, ambas mecânica e cível, metalização, uma frota de camiões invulgar, serração, estância, etc., etc... Conforme ia crescendo aumentava o numero dos seus trabalhadores e quando um dia, aí talvez por volta de 1966, resolvi mudar de ares, já tinha ao seu serviço cerca de 500 assalariados. Naquele tempo ombreava com as grandes empresas da mesma especialidade.
A telefonista era uma bela rapariga, esbelta, linda, de 17, 18 anos. O Miguel, um dos Engs da empresa poderia confirmar esta verdade (se não tivesse já falecido), pois passava os domingos, no verão, em Sesimbra na praia do porto de abrigo, observando pelo rabinho do olho aquele monumento andante e pelo outro a sua filhota que com uma pazinha se entretinha a fazer castelos de areia, enquanto a sua esposa dava umas mergulhaças à procura de conchinhas e ouriços do mar. A menina fazia castelos na areia, o papá imaginava castelos onde a princesa encantada estaria clausurada e ele com a espada, armadura e elmo, montado num cavalo alado lutaria com o dragão assanhada e a fumegar, ganhando esta luta, caía finalmente a eleita nos seus braços, e a esposa tinha previsto que ao fim do dia iria fazer um docinho de farófias com claras em castelo, para o pai e para a filha, cabendo-lhe mais do que certo somente uma lambedela no “salazar” (salazar é a peça com que se rapa os recipientes onde se amassa a farinha para bolos).
A Joana, nome da moçoila, coitada, sonhava com outros castelos, lá longe, longe, para os lados do Cabo da Boa Esperança, que afinal se tornaram em Cabo das Tormentas e que também não a fizeram feliz. Isso seria outra história mais complicada do que esta, que não sei em pormenor e é do seu foro íntimo.
Em dada altura, o escritório andava em obras e ficou sem casa de banho (ainda hoje se chama não sei bem porquê, a um cubículo onde existe uma sanita e um lavatório, casa de banho), obrigando os empregados daquela secção a usarem uma no rés do chão e que servia simultaneamente para os do armazém.
Tinha dois compartimentos, ambos exíguos, o de entrada com um lavatório pequenito e no outro uma sanita com tampa de madeira pintada de castanho já descolorida das mijadelas que lhe tinham pregado em cima. Para respirar, e propositadamente, a porta de entrada de cor cinzenta não chegava ao chão, com uma diferença talvez de dois palmos bem medidos, tal como a outra que dividia os dois espaços.
No armazém entre outros, havia um aprendiz, rapaz de 15 anos, cujo nome não recordo, sendo fanhoso e por isso tinha a alcunha de “Pica-Pau”, em homenagem a Walt Disney e era familiar de um dos patrões, que ia observando as idas e vindas da “maltinha” ao banheiro, incluindo como será óbvio a nossa Joana.
Até que um dia, a seguir ao almoço, o “Pica-Pau” estava só e vê a sua vénus, vestida, entrar no banheiro; treme, espevita-se, olha para esquerda, para a direita, pró tecto, e achou que tinha chegado a sua ocasião. Em pleno dia D, qual invasão dos aliados na Normandia, abre a primeira porta muito de mansinho, entra, abaixa-se e espreita por debaixo da segunda, vendo as calcinhas da menina junto aos tornozelos. O rapaz perturbou-se, só aquilo não lhe chegava e tentou ver as quedas de água do rio Zambeze.
A moça ao ver uma cabeça a surdir por debaixo da porta, dá um grito, o “Pica-Pau” bate com a nuca na dita e desata a fugir, por cima dos barrotes de madeira. Alguém o viu, denunciou, e o rapazito tremendo e cheio de medo, lá se apresentou ao seu familiar e patrão.
A notícia correu célere, comentando-se de várias formas, entre elas a humorística e num julgamento sumário e imediato (nessa altura quem é que sabia o que era um processo disciplinar), o “Pica-Pau” foi suspenso por um mês.
Nunca um mês demorou tanto tempo a passar, a malta estava cheia de saudades da presença do rapazote, queríamos perguntar-lhe o que tinha visto, como foi, enfim os pormenores bem desenvolvidos.
Pela socapa, foi nomeada uma comissão para quando do seu regresso, se fizesse o acolhimento de boas vindas e chegado o dia fatal, ele, coitado, com um sorriso murcho e as faces vermelhas, recusou um lindo ramo de ortigas, salpicada com azedas (que dá uma flor amarela) embrulhadas em papel celofane com uma fita de serapilheira com a inscrição de “Prémio Nobel da Espreita-dela”. Evidentemente saltou para a ribalta outra bronca e desta vez o julgamento sumário teve como acusados este vosso amigo que assina Zé do Cão e o Manuel José, com a suspensão de 15 dias a cada um.
Naquela altura, que nos importava a nós sermos suspensos 15, 30 ou 60 dias se ao menos tivéssemos visto a barragem do Limpopo. O certo, certo, é que nem vimos a floresta africana.